Os efeitos do embargo dos EUA contra Cuba e as
razões para a necessidade urgente de levantá-lo
Declaração escrita do autor apresentada pelo Centre Europe Tiers
Monde (CETIM),
ONG de carácter consultivo com sede em Genebra,
à
Comissão de Direitos Humanos da ONU,
Subcomissão de
Promoção e Protecção dos Direitos Humanos,
55ª
sessão, 28 de Julho-15 de Agosto de 2003.
1- O embargo dos Estados Unidos contra Cuba é condenado por uma maioria
cada vez maior, e agora esmagadora, de países membros da Assembleia
Geral da Organização das Nações Unidas. Contudo,
continua a ser imposto, apesar das decisões reiteradas da ONU,
especialmente a sua Resolução 56/9 de 27 de Novembro de 2001,
pela vontade isolada, mas obstinada, do governo dos Estados Unidos.
A presente exposição pretende questionar este embargo da maneira
mais firme e denunciar a violação da legalidade que este
representa, assim como sua total ausência de legitimidade. Estas medidas
de coacção arbitrária são assimiláveis a um
acto de guerra não declarada
dos Estados Unidos contra Cuba, cujos efeitos económicos e sociais
são nefastos para o exercício pleno dos direitos humanos, e
naturalmente intoleráveis para o seu povo. Estas medidas pretendem
directamente submeter a um máximo de sofrimentos e atentar contra a
integridade física e moral de toda uma população, em
particular das crianças, das pessoas mais velhas e das mulheres. Neste
aspecto, poderiam ser assimiladas a
crimes contra a humanidade
.
[1]
Votos da Assembleia Geral da ONU
sobre a necessidade de levantar o bloqueio contra Cuba
|
Por
|
Contra
|
Países contra o levantamento do embargo
|
1992
|
59
|
2
|
USA, Israel
|
1993
|
88
|
4
|
USA, Israel, Albânia, Paraguai
|
1994
|
101
|
2
|
USA, Israel
|
1995
|
117
|
3
|
USA, Israel, Uzbequistão
|
1996
|
138
|
3
|
USA, Israel, Uzbequistão
|
1997
|
143
|
3
|
USA, Israel, Uzbequistão
|
1998
|
157
|
2
|
USA, Israel
|
1999
|
155
|
2
|
USA, Israel
|
2000
|
167
|
3
|
USA, Israel, Ilhas Marshall
|
2001
|
167
|
3
|
USA, Israel, Ilhas Marshall
|
2002
|
173
|
3
|
USA, Israel, Ilhas Marshall
|
Nota: em 2002, abstiveram-se quatro países: Etiópia,
Nicarágua, Malawi, Uzbequistão.
Um embargo inaceitável, pois ilegal e ilegítimo.
2- Imposto desde 1962, o embargo estadunidense foi reforçado em Outubro
de 1992 pelo
Cuban Democracy Act
(ou
lei Torricelli
), que pretendia travar a expansão de novos motores da economia
cubana, afectando as entradas de capitais e de mercadorias, por meio: i) da
estrita limitação de transferências de divisas pelas
famílias exiladas; ii) da interdição durante seis meses a
todo navio que tendo feito escala em Cuba quisesse atracar em porto dos Estados
Unidos; iii) de sanções às empresas sob a
jurisdição de Estados terceiros que tenham negócios com a
ilha.
O embargo foi sistematizado pelo
Cuban Liberty and Democratic Solidarity Act (lei Helms-Burton)
em Março de 1996, o qual pretendia endurecer as
sanções "internacionais" contra Cuba.
Seu título I generaliza a proibição de importar bens
cubanos, exigindo, por exemplo, dos exportadores a prova de que nenhum
açúcar cubano está integrado nos seus produtos, tal como
anteriormente aconteceu com o níquel. Ele condiciona a
autorização de transferências de divisas à
criação de um sector privado e do salariato.
Ainda mais atrevido é o título II, que fixa as modalidades da
transmissão para um poder "pós-castrista", assim como a
natureza das relações a manter com os Estados Unidos.
O Título III concede aos tribunais dos Estados Unidos o direito de
julgar a queixa por danos de uma pessoa singular ou colectiva de nacionalidade
estadunidense que se considere prejudicada pela perda de propriedades
nacionalizadas em Cuba e que reclame uma compensação aos
utilizadores ou beneficiários destes bens. A pedido dos antigos
proprietários, qualquer cidadão nacional de um terceiro
país (e sua família) que tenha efectuado
transacções com estes utilizadores ou beneficiários pode
ser processado nos Estados Unidos.
As sanções a que estão expostos encontram-se no
título IV, que prevê, entre outras coisas, a recusa pelo
Departamento de Estado de vistos de entrada no território estadunidense
para estes indivíduos e para suas famílias.
O conteúdo normativo deste embargo especialmente a
extraterritorialidade das suas regras, as quais pretendem impor à
comunidade internacional sanções unilaterais por parte dos
Estados Unidos, ou a negação do direito de
nacionalização através do conceito de
"tráfico" é uma violação
característica da letra e do espírito da Carta das
Nações Unidas e da Organização dos Estados
Americanos, assim como dos próprios fundamentos do direito internacional.
A extensão exorbitante da competência territorial dos Estados
Unidos é contrária ao princípio da soberania e à
não intervenção nas decisões internas de um Estado
estrangeiro consagrado em jurisprudência pela Corte Internacional
de Justiça , e opõe-se aos direitos do povo cubano à
auto determinação e ao desenvolvimento. Entra também em
contradição surpreendente com as liberdades de comércio,
de navegação e de circulação de capitais, que os
Estados Unidos reivindicam paradoxalmente em toda a parte do mundo.
Além de ilegítimo este embargo é imoral pois ataca as
conquistas sociais realizadas por Cuba há vários anos e
põe em perigo os êxitos reconhecidos por um grande
número de observadores internacionais independentes (especialmente os da
OMC, da UNESCO, da UNICEF e várias ONGs) como são os
sistemas públicos de educação, de
investigação, de saúde e de cultura, e a
participação do pleno exercício dos direitos humanos.
Além disso, a ameaça que este dispositivo de
coacção faz pesar sobre os cidadãos estadunidenses e
estrangeiros estende o alcance prático do embargo a campos
excluídos no todo ou em parte dos seus textos, tais como a
alimentação, os medicamentos ou equipamentos médicos e os
intercâmbios de informação científica.
Os nefastos efeitos económicos do embargo
4- Segundo uma fonte oficial cubana
[2]
, os danos económicos directos causados a Cuba pelo embargo dos Estados
Unidos desde a sua instauração são avaliados em mais de 70
mil milhões de dólares.
Estes compreendem:
i) As perdas devidas aos obstáculos postos ao crescimento dos
serviços e das exportações (turismo, transporte
aéreo, açúcar, níquel, ...);
ii) as perdas registadas após a reorientação
geográfica dos fluxos comerciais (sobrecustos de fretes, de armazenagem,
de comercialização, na compra de mercadorias, ...);
iii) o impacto das limitações impostas ao crescimento da
produção nacional de bens e de serviços (acesso
restringido às tecnologias, insuficiência de peças de
reposição e colocação fora de serviço de
equipamentos, reestruturações forçadas de empresas, graves
dificuldades padecidas pelo sector açucareiro, eléctrico, de
transportes, agrícola, ...);
iv) os entraves de ordem monetária e financeira (impossibilidade de
negociar novamente a dívida externa, proibição de acesso
ao dólar, impacto desfavorável de variações das
taxas de câmbio sobre o comércio,
"risco-país"
, sobrecusto de financiamento por causa da oposição dos Estados
Unidos à integração de Cuba no seio das
organizações financeiras internacionais ...);
v) os efeitos perversos das incitações à
emigração, incluída a ilegal (perda de recursos humanos e
dos talentos produzidos pelo sistema de formação cubano ...);
vi) os danos sociais afectam a população (no que se refere
à alimentação, à saúde, à
educação, à cultura, ao desporto ...).
Se afecta todos os sectores
[3]
, o embargo trava directamente além das exportações
os motores da recuperação da economia cubana, em primeiro
lugar o turismo, os investimentos directos estrangeiros (IDE) e as
transferências de divisas.
Várias filiais europeias de empresas estadunidenses tiveram de romper
recentemente suas negociações para a administração
de hotéis, uma vez que os seus advogaram previram que os contratos
seriam sancionados pela
"lei Helms-Burton"
. Além disso, a compra por grupos estadunidenses de sociedades
europeias de cruzeiros que atracavam em Cuba anulou os projectos de 2002-03.
Os obstáculos postos pelos Estados Unidos, em violação da
Convenção de Chicago sobre a aviação civil, a
compra ou o aluguer de aviões, abastecimento de querosene e o acesso
às novas tecnologias (reservas electrónicas,
radio-localização ...), causaram perdas de 150 milhões de
dólares em 2002.
O impacto sobre os IDE também é muito desfavorável. Os
institutos de promoção dos IDE em Cuba receberam mais de 500
projectos de cooperação de companhias estadunidenses, sem que
nenhum tenha podido realizar-se nem sequer a indústria
farmacêutica e as biotecnologias, em que Cuba dispõe de um forte
potencial atractivo.
As transferências de divisas provenientes dos Estados Unidos continuam
limitadas (menos de 100 dólares por mês e por família) e os
bancos europeus tiveram de reduzir os seus compromissos sob a pressão
dos Estados Unidos, os quais fizeram saber que seriam exigidas
indemnizações se os créditos fossem mantidos.
Em Cuba, o embargo penaliza as actividades da banca, as finanças, os
seguros, o petróleo, os produtos químicos, a
construção, as infra-estruturas e os transportes, os estaleiros,
a agricultura e a pesca, a electrónica e a informática, bem como
os sectores de exportação (nos quais a propriedade estadunidense
foi dominante antes de 1959), como os do açúcar, cujo
restabelecimento é bloqueado pela proibição de acesso
à primeira bolsa mundial de matérias-primas (Nova York) de
níquel, de tabaco, de rum, ...
Os efeitos sociais do embargo
6- Os anúncios do governo estadunidense dando a entender que seria
favorável a uma flexibilização das
restrições relativas aos produtos alimentícios e aos
medicamentos ficaram letra morta e não podem esconder na prática
Cuba foi vítima de um embargo
de facto
nestes campos. A redução da disponibilidade deste tipo de bens
exacerba as privações e as necessidades da
população e ameaça permanentemente sua segurança
alimentar, seu equilíbrio nutricional e seu estado de saúde.
Um drama humanitário que parece ser o objectivo implícito
do embargo foi evitado apenas graças à vontade do Estado
cubano de manter a todo custo os pilares do seu modelo social, o qual garante a
todos uma alimentação de base a preços módicos e um
acesso gratuito às creches, às escolas, aos hospitais, aos lares
para idosos... É a afirmação da prioridade dada pelos
poderes públicos ao desenvolvimento humano o que explica a
excelência confirmadas dos indicadores estatísticos de Cuba em
matéria de saúde, educação,
investigação, cultura... e isto apesar dos recursos
orçamentais extremamente restritos e dos múltiplos problemas
decorrentes do desaparecimento do bloco soviético. Contudo, a
evolução dos progressos sociais em Cuba está comprometida
pela extensão
efectiva
do embargo.
7- As pressões exercidas pelo Departamento de Estado e do
Comércio estadunidense sobre os fornecedores de Cuba abrangem uma vasta
gama de bens necessários ao sector da saúde (medicamentos
destinados a mulheres grávidas, produtos de laboratório,
materiais de radiologia, mesas de operações e equipamentos de
cirurgia, anestésicos, desfibriladores, respiradores artificiais,
aparelhos de diálise, stocks farmacêuticos ...) e foram até
ao ponto de impedir o abastecimento livre de alimentos para recém
nascidos e de equipamentos de cuidados intensivos pediátricos
[4]
. As capacidades de produção de vacinas de
concepção cubana foram obstaculizadas pelas faltas frequente de
peças de reposição e de componentes essenciais importados,
assim como os centros de depuração de água. Este embargo
submete hoje o povo cubano a sofrimentos injustificáveis. A escassez
que afecta numerosos medicamentos não fabricados em Cuba complica a
imediata colocação em marcha dos protocolos de tratamento do
câncer do seio, da leucemia infantil, de enfermidades cardiovasculares ou
renais e da SIDA, por exemplo.
Como agravante, os atentados das autoridades estadunidenses à liberdade
de circulação das pessoas e dos conhecimentos científicos
(restrição de viagens de investigadores estadunidenses,
não respeito dos acordos bilaterais relativos a vistos de investigadores
cubanos, recusa da concessão de licenças de software e em
satisfazer os pedidos de livros, revistas, disquetes ou CD Rom de literatura
científica especializada das bibliotecas cubanas ...) levaram a que de
facto fosse incluído no perímetro do embargo campos formalmente
excluídos pela lei. Deste modo, encontra-se bloqueada uma das
oportunidades mais fecundas de desenvolver numa base solidária e
humanista a cooperação entre as nações.
8- Finalmente, o embargo entra em contradição com os
princípios de promoção e de protecção dos
direitos do Homem aos quais aspira o povo dos Estados Unidos para si
próprio e para o resto do mundo.
9- Por todos estas razões, este embargo inaceitável deve cessar
imediatamente.
Julho de 2003
[*]
Economista. Investigador do CNRS, França.
___________
NOTAS
1- Sobre o contexto histórico ver: Herrera, R. (dir.) (2003), Cuba
révolutionnaire, L'Harmattan, Forum del Tercer Mundo, Paris.
2- Relatório de Cuba ao secretário-geral das Nações
Unidas sobre a resolução 56/9 da Assembleia Geral da ONU
(Novembro de 2002),
Necesidad de levantar el bloqueo aplicado a Cuba
.
3- Herrera, R. « Cuba : Une Résistance
socialiste
en Amérique latine »,
Recherches internationales
, Paris (publicado em Setembro de 2003). Disponível em
http://www.rebelion.org
.
4- American Association of World Health (1997), The Impact of the US Embargo on
Health and Nutrition in Cuba, The Association, Washington.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
|