O caminho da estagnação
Vamos agora comentar sobre outro futuro possível, aquele que nos levaria pelo caminho da estagnação, da exclusão do sistema mundial. Falámos de “ingenuidades” que nos podem induzir a caminhar para uma economia privada, concentradora de riquezas, que ultrapassa e marginaliza a economia estatal socialista, que é aquela que principalmente distribui a riqueza. Mas acontece que também vemos atitudes ingénuas no outro extremo, o da imobilidade e da desconfiança de qualquer transformação possível.
Essas atitudes não ocorrem entre os aspirantes a "empresários" e seus ideólogos, mas entre os burocratas. Conduzem ao risco de tentar resolver tudo com mais regras administrativas e mais controlos, sem nunca sair da "zona de conforto" de cada organização. Isso leva a um modo de pensar e agir em que os procedimentos acabam sendo mais importantes do que os objetivos, aceitando-se adiar ou limitar objetivos em troca de ser rigoroso no cumprimento dos procedimentos estabelecidos. É assim que a sociedade é conduzida, passo a passo, no sentido de abandonar objetivos ousados e visão sonhadora. O exatamente o oposto da atitude revolucionária.
Como seria o futuro ao limitarmos as iniciativas económicas e sociais ao cumprimento das diretrizes que vêm “de cima”? O que aconteceria no médio prazo se insistíssemos em substituir ou sancionar imediatamente o gerente que implementa uma estratégia que acaba falhando e fechando assim o caminho para a exploração audaciosa de alternativas dentro da Revolução? Os quadros com mais iniciativas são os que têm maior probabilidade de empreender alguma que contenha erros. É quase uma lei aritmética. A obsessão por tudo regular leva a um ambiente de “risco assimétrico” em que empreender uma iniciativa – que quase sempre contém incertezas – é muito mais arriscado do que não empreender.
Até onde pode levar a pressão para cumprir dezenas de regras, proibições e controlos em questões específicas, se isso é feito às custas de limitar o pensamento e a iniciativa em processos essenciais? Como motivar os jovens a sonhar com Cuba, em tal ambiente? Numa empresa, como em qualquer organização humana, a partir de um certo grau de complexidade – e a economia moderna tem muita – a soma da otimização das partes não equivale à otimização do todo. A realização de grandes objetivos, dos quais depende o crescimento da economia das empresas e nacional, frequentemente implica que certos componentes do processo funcionem de forma sub ótima. Até onde pode levar a obsessão de regular e controlar separadamente, às vezes por vários órgãos de controle diferentes, cada um dos subsistemas e processos da vida empresarial?
Voltando à visão das ciências naturais, os médicos (como é o caso do autor desta nota) sabem muito bem que existem agressões externas à saúde – principalmente patogénicos – nas quais uma robusta resposta imunológica nos defende. Mas também há situações em que uma resposta imunológica excessiva, supostamente protetora, leva danificar os tecidos saudáveis. São as chamadas doenças auto-imunes, que podem ser fatais. O inimigo também conhece essa analogia, e muitas vezes a intenção de seus ataques é precisamente provocar nossa reação exagerada. Isso já aconteceu anteriormente.
Na União Soviética, após décadas de crescimento económico, superando nas décadas de 1950 e 1960 as taxas de crescimento dos países capitalistas desenvolvidos e alcançando admiráveis realizações industriais; na década de 1970, a economia começou a dar sinais de estagnação. Entre 1979 e 1982, a produção industrial contraiu-se 40%. O planeamento central rígido e os métodos administrativos direcionados verticalmente limitaram o impacto da ciência e da tecnologia na produção. Já em 1965 Che Guevara escreveu numa carta a Fidel: "A técnica permaneceu relativamente estagnada na grande maioria dos setores económicos soviéticos [...] Na Academia de Ciências daquele país acumulam-se centenas, talvez milhares de projetos de automação que não podem ser colocados em prática porque os gerentes das fábricas não podem dar-se ao luxo de que o seu plano caia durante um ano, e como é um problema de cumprimento do plano, se eles fizerem uma fábrica automatizada, vão exigir uma produção maior, e então não estão fundamentalmente interessados em aumentar a produtividade”.
Fidel Castro, nas suas entrevistas ao jornalista Ignacio Ramonet, fez a seguinte observação: “O curioso é que a União Soviética foi o país que mais criou centros de pesquisa, fez mais pesquisas e, exceto na esfera militar, aquele que aplicou menos em sua economia a riqueza das invenções que desenvolveu”. No século XX, o belo ideal moral do comunismo foi corroído pela disfuncionalidade de um modelo económico de direção administrativa vertical e planeamento rígido, que foi mal adaptado às rápidas mudanças tecnológicas. O planeamento centralizado de materiais, efetivo na economia industrial do século XX, deixou de funcionar na economia de alta tecnologia, flexível e dinâmica que o século XXI exigia.
A estagnação, que sacrifica os objetivos de desenvolvimento em prol de controlos rígidos, é outro futuro possível. O risco é ainda maior agora do que nos anos em que Fidel e Che fizeram as suas observações, porque as mudanças tecnológicas são mais rápidas no século XXI e a globalização da economia implica a urgência de ser competitivo e interligado à escala global.
A aposta com mais regulamentações e mais controlos poria um freio na construção de conexões económicas com outros países (essenciais, embora reconhecidamente arriscadas) e reforçaria o isolamento e a exclusão de Cuba do sistema económico global. O bloqueio do governo dos Estados Unidos contra Cuba visa explicitamente o seu isolamento e exclusão.
Na dinâmica da globalização, o atraso nem sempre é consequência da “exploração” económica de um país. Também ocorre como consequência de um país ser "excluído" da economia global. E estar separado da economia global significa estar separado do futuro. A estagnação é outro "futuro possível". Dessa forma, poderíamos manter a equidade social e a soberania nacional por um tempo, mas não alcançaríamos a prosperidade. Se isso acontecesse, a estagnação da economia abriria a porta, no plano ideológico, para a desconfiança das novas gerações no sistema socialista e para a crença espúria de que as desigualdades sociais são um preço necessário para a dinâmica do crescimento económico.
O recém-concluído 8º Congresso do Partido Comunista de Cuba alertou também para o perigo de trilhar este caminho, afirmando em seu Relatório Central que: “[...] é inevitável provocar um abalo nas estruturas empresariais de alto a baixo e vice-versa, que acabe definitivamente com a inércia, o conformismo, a falta de iniciativa e a comodidade de esperar instruções dos escalões superiores”.
O caminho da cultura
O caminho da cultura, é o único que nos pode conduzir à pátria possível que desejam os cubanos. Não é um ponto médio entre os anteriores, é a superação do dilema. Como o encontramos? Não espere ninguém aqui "receitas". Um poeta disse que "o caminho se faz caminhando", mas isso não significa caminhar sem rumo. É preciso "caminhar" e pesquisar, mas sempre com uma bússola que não pode ser outra senão a da cultura e dos valores construídos pelos cubanos ao longo dos séculos.
Na escolha dos caminhos, através dos problemas concretos muito diversos e das decisões possíveis que surgem todos os dias, quatro equilíbrios subjacentes essenciais são expressos:
● Qual é o equilíbrio adequado entre eficiência económica e igualdade social?
● Qual é o equilíbrio certo entre centralização e flexibilidade adaptativa?
● Qual é o equilíbrio apropriado entre gradualismo e urgência?
● Qual é o equilíbrio certo entre a aceitação ousada do risco e a prevenção responsável das consequências?
Nós, cubanos, nos colocamos com nossas atitudes em relação a cada problema específico, num ou noutro extremo dessas polarizações ou num ambíguo meio justo. O caminho que tomarmos nestas encruzilhadas moldará nosso futuro.
Finalmente, teremos que escolher entre eficiência com desigualdades ou justiça social com deficiências materiais? Teremos que escolher entre um planeamento rígido que sacrifica a criatividade em prol da economia de curto prazo e uma ampla descentralização da gestão que permite a exploração de alternativas de crescimento, mas que, por sua vez, pode abrir espaços para o desperdício e a corrupção?
A boa notícia é que essas dicotomias podem ser superadas. São falsos dilemas, uma vez que o equilíbrio ótimo é mediado pela cultura, em seu sentido ético e jurídico mais amplo; e também depende do desenvolvimento científico e tecnológico. Submeter-se à tirania desses dilemas seria aceitar uma visão cética de nossa cultura.
Vamos começar a explorar o país que queremos com a Constituição da República. Ela nos descreve claramente os objetivos ao estabelecer, no artigo 13, que “O Estado tem como finalidades essenciais: canalizar os esforços da nação na construção do socialismo ...; manter e defender a independência, integridade e soberania da pátria…; garantir a igualdade efetiva no gozo e exercício dos direitos e no cumprimento dos deveres ...; promover o desenvolvimento sustentável que garanta a prosperidade individual e coletiva e obter níveis mais elevados de equidade e justiça social ...¨
É um belo futuro e pode ser alcançado. Mas é a cultura que deve tornar isso possível. Uma revolução é sempre e essencialmente uma conquista da cultura, que amplia o espaço do possível. Martí, referindo-se à nossa revolução de independência, alertava assim numa carta a Máximo Gómez em 1884: “Se a guerra é possível..., é porque antes de existir, trabalhou com muita dor, o espírito que a exige e torna necessário..."
Faz-se o caminho caminhando, mas, embora haja incertezas inevitáveis sobre os métodos específicos, deve-se saber bem para onde se quer ir. Vivemos num momento de grande criatividade legislativa. Basta ver um jornal ou um noticiário para apreciá-lo. Muito terá que ser elaborado e retificado, mas existem algumas verdades essenciais das quais podemos salientar:
● Temos que conseguir uma economia solidária, que distribua o produto do trabalho de maneira equitativa. Somente a equidade garantirá a unidade nacional, e somente a unidade (ou consenso da maioria) garantirá a soberania. E não se trata apenas da igualdade de direitos, que é o ponto de partida, mas também da igualdade substantiva no acesso real de todos ao produto do trabalho social.
● Deve ser uma economia fundamentalmente nas mãos do Estado, garantidor do património distributivo. O mercado constrói desigualdades sempre: nunca gerou equidade em lugar nenhum e menos ainda em Cuba. Foi a propriedade social que permitiu a acumulação de recursos para o investimento em educação, saúde e ciência que vem sendo feito. Com os impostos apenas, não poderia ser alcançado, especialmente partindo de uma economia subdesenvolvida.
● Deve ser uma economia tecnológica que gere bens e serviços de alto valor acrescentado e tenha a capacidade de assimilar tecnologias avançadas, e também de criá-las com base na investigação científica; e isso exige uma força de trabalho de alto nível técnico e cultural.
● Deve ser uma economia nacional ligada à economia mundial e competitiva à escala global porque a globalização é uma consequência objetiva e irreversível do desenvolvimento das forças produtivas. Mas, ao mesmo tempo, deve preservar a soberania e a capacidade de manobra endógena para colocar a economia a serviço dos objetivos sociais, e teremos que aprender a lidar com esta contradição de forma criativa. O capitalismo global permanece essencialmente predatório.
● Deve ser uma economia eficiente nas suas empresas, mas ao mesmo tempo capaz de sustentar um grande setor do orçamento que garanta os “bens comuns” (saúde, educação, seguridade social, cultura) que estão e devem continuar fora do domínio das transações comerciais. Não são mercadorias e não deveriam ser.
● Deve ser uma economia com ampla margem de iniciativa nas empresas, cujo espaço será maior quanto maior o desenvolvimento tecnológico; mas ao mesmo tempo deve ser impulsionado por um planeamento que permita transcender a “racionalidade empresarial” dos lucros de curto prazo, e guiar as grandes decisões por uma “racionalidade social”. Não se pode se basear num planeamento totalizador e centralizado, mas num planeamento que garanta um nível básico de racionalidade na distribuição do rendimento, na estrutura do emprego, nos grandes investimentos e na relação com o meio ambiente, contendo ao mesmo tempo espaço para a investigação.
● Nosso planeamento deve ser capaz de lidar com relações probabilísticas entre ações e resultados, superando o antigo determinismo do planeamento mecanicista. Muitas das decisões da economia acelerada, tecnológica e globalizada do século XXI geram probabilidades, não certezas. Isso não é motivo para abandonar a ideia de planeamento, muito pelo contrário, mais uma evidência de sua importância e da necessidade de seu aprimoramento em bases científicas. A tarefa é construir e enriquecer o contexto jurídico e metodológico desse planeamento, dentro do qual uma cultura de criatividade e investigação pode desenvolver-se.
O grande desafio de uma economia socialista é (sempre foi) conseguir dissociar nas motivações do indivíduo o seu interesse pelo trabalho e a sua criatividade do interesse para ganho privado imediato. E isso depende diretamente da cultura construída. Já temos um longo caminho nessa estrada.
A ciência e os produtos e serviços de alta tecnologia que ela gera devem garantir um alto valor agregado que sustente a prosperidade de uma pequena população e de idade média elevada como a de Cuba; e têm que garantir os excedentes económicos que financiam um grande setor subvencionado distribuidor dos bens comuns. A ciência também deve funcionar como uma arma de defesa da soberania, criando condições vantajosas nas necessárias negociações internacionais das quais, como consequência da globalização, depende cada vez mais a eficiência de nossa economia interna.
A cultura, e a consciência social que ela gera, deve garantir uma elevada motivação e criatividade no trabalho nas entidades de propriedade social, e deve também garantir um elevado repúdio às desigualdades sociais. O limiar de rejeição das desigualdades na sociedade cubana é baixo, fruto cultural da consciência gerada pelo processo revolucionário, e assim deve ser mantido. As atitudes sociais dos cubanos deverão vincular o tempo livre principalmente ao gozo da cultura e não ao consumo material supérfluo.
Não há nada de natural na conexão entre tempo livre e consumo: é uma conexão construída pela propaganda alienante da sociedade capitalista. A construção permanente da consciência social (que em Cuba chamamos de “Batalha de Ideias”) não pode ser negligenciada. Não poderemos vencer a batalha económica se não vencermos a batalha das ideias ao mesmo tempo, justamente porque queremos construir uma economia culta, livre da tirania da exploração do trabalho alheio e das leis do o mercado. E precisamos construí-lo num mundo de intensa e crescente circulação de ideias e imagens, ainda dominado por quem controla os media globais, que operam de acordo com os valores do capitalismo.
A visão de uma nação é essencialmente um projeto de convivência humana. E o projeto socialista cubano é alcançável. Munidos dessa convicção, às vezes armados apenas dela, sucessivas gerações de cubanos defenderam a soberania e a justiça, que não existem sem a outra. Agora temos outra coisa. Seis décadas de construção revolucionária nos mostram que esse futuro pode ser conquistado. Mas não surgirá das leis espontâneas da concorrência e do mercado que, embora pareçam “racionais” localmente e no curto prazo, apenas geram mais desigualdades e novas dependências. E não surgirá da tentativa fútil de regular tudo e controlar tudo, fechando os espaços a uma experimentação económica que é essencial, porque o mundo real sempre contém incertezas.
Na situação mundial atual, muitos países estão tentando redefinir suas visões de futuro e suas trajetórias. O futuro contém incertezas e procura de criatividade. Em muitos países existem experiências para estudar, mas não podemos copiar ninguém. A trajetória histórica de Cuba e o contexto geopolítico que nos cerca é muito especial, e devemos entendê-los bem, para escolher bem. Haverá experiências, avanços e retrocessos, diversidade de opiniões, polémicas e críticas. São bem vindas. Sempre existiram em todos os processos de transformação da História e também aqui. Mas terão que estar dentro do apego à soberania nacional e à justiça social.
Não vivemos no planeta Marte. Também há inimigos, dentro e fora, que tentarão usar nossas polémicas e nossas deficiências para corroer os nossos alicerces como nação e como projeto social. E quando eles tentarem, encontrarão os punhos do povo.