A DOLARIZAÇÃO CUBANA

Elementos de reflexão para uma desdolarização

por Rémy Herrera [*]
e Paulo Nakatani [**]

Resumo:
Este artigo coloca em discussão o problema dos regimes cambiais e trata, em particular, da questão da dolarização da economia cubana. Após um pequeno retrospecto histórico, discute as características e particularidades da dolarização cubana e seus impactos sobre o projeto socialista cubano. Dado as características dessa forma de organização social e das intenções oficiais sobre a necessidade de uma desdolarização, o artigo apresenta os pontos principais debatidos em torno da questão e tenta recolocar o tema sob o ponto de vista da construção de uma sociedade mais igualitária.


Introdução
A dolarização recente, parcial, mas crescente, da economia cubana é um fenômeno complexo e efetivamente original. Ela se manifesta no território nacional através da circulação simultânea de três moedas: o peso cubano (moeda nacional que permanece inconversível desde 1959), o dólar norte-americano (que se impôs de fato sobre as outras divisas) e o peso conversível (equivalente interno do dólar). Esta multiplicidade de moedas, associada à uma dupla taxa de câmbio (uma taxa oficial de 1 peso por dólar e uma taxa semi-oficial de 26 pesos por dólar), expressa a separação da economia em diferentes circuitos monetários, relativamente estanques, nos quais os níveis e estruturas de preços dos bens e serviços similares podem ser diferenciados.

A dolarização da economia cubana é a conseqüência direta da grave crise por que ela passou, a partir de 1990, e do desaparecimento do bloco soviético. O ponto mais baixo do PIB foi atingido em 1993-94, com uma queda de 34% em relação ao nível atingido em 1989 (comparável à crise de 1929). Apesar das marcantes dificuldades econômicas da década de noventa, que tornaram inevitável a legalização da moeda americana na ilha, obrigando as autoridades a considerarem a dolarização como um componente de sua estratégia, até o momento o processo foi relativamente bem controlado. Graças a ele, o poder público conseguiu atingir, pelo menos em parte, seu objetivo de conseguir aumentar o ingresso de divisas e, assim, assegurar a recuperação da economia nacional. Esta retomada do crescimento permitiu restabelecer o valor do peso (fortemente depreciado durante a depressão) e até mesmo – este aspecto é destacado por ser suficientemente raro – estabilizar a moeda nacional contra o dólar, entre 1996 e o final de 2001 [1] , a despeito da intensificação do embargo norte-americano. Os poderes públicos cubanos, constrangidos a aceitarem a dolarização, finalmente a colocaram no centro de sua estratégia de recuperação econômica. Mas os efeitos dessa reforma monetária não foram, evidentemente, todos positivos. As ameaças que se colocam sobre a sociedade cubana são tais que as autoridades relembram constantemente seu desejo de acabar com a dolarização, desde que as condições permitam. A questão crucial é a de entender o que significam essas condições.

Este artigo se propõe, na primeira parte, a mostrar, através de uma perspectiva histórica, em que a dolarização do período pré-revolucionário se distingue da atual; na segunda parte, analisa os mecanismos da dolarização atual, acompanhada de uma avaliação dos efeitos econômicos e sociais; e, na terceira parte, uma apresentação do debate em torno à dolarização cubana, em Cuba e no exterior, e algumas opções, raras, mas certamente mais instigantes, para a desdolarização de Cuba.

A dolarização antes da revolução.

A época da dominação americana.
A atual dolarização cubana não tem a mesma natureza daquela que caracterizou a sua história no passado e por isso não pode ser interpretada como um mero retorno à situação que prevalecia antes de 1959. A circulação sem descontinuidade do dólar, entre 1898 e 1959, expressava de facto o papel que ele desempenhava como moeda nacional, em uma economia totalmente submetida aos Estados Unidos depois de 1914. Mais precisamente, ao seu capital financeiro (Morgan e Rockefeller) [2] . A primeira dolarização acompanhou a ocupação militar da ilha pelos Estados Unidos (1898-1902), que favoreceu a penetração dos capitais americanas e lhes assegurou uma posição hegemônica em todos os setores-chave (sobretudo na produção açucareira). A importância dos Estados Unidos era tal que, em 1902, a república cubana nasceu sem que a sua constituição tivesse previsto uma moeda nacional [3] , mas um “tratado de reciprocidade” deu curso legal ao dólar que preencheu, em larga medida, as funções de moeda nacional no território cubano. Foi em 1914, entre duas intervenções armadas dos Estados Unidos (1906-12 e 1917), que o peso foi criado. Esta criação não tinha como objetivo obter a autonomia do sistema monetário cubano (que permaneceu dual) frente aos Estados Unidos, mas, sobretudo o de excluir as moedas concorrentes ainda em circulação (espanholas e francesas) para repousar toda a economia inteiramente sobre o dólar. A lei de liquidação do sistema bancário (1920) marcou a falência dos bancos locais e completou a tomada do controle das finanças cubanas pelos Estados Unidos.

As conseqüências da submissão (em especial a monetária e financeira) de Cuba se fizeram sentir durante a crise de 1929. A depressão atingiu a sua economia mais duramente do que no resto da América, pois a Ilha era extremamente vulnerável às variações de receitas das exportações e 80% delas era constituída de açúcar, sendo que 75% destinadas aos Estados Unidos. Estes proibiram Cuba de recorrer aos mecanismos de defesa utilizados pelos outros governos latino-americanos. Cuba teve que conceder reduções nas tarifas aduaneiras e manter uma taxa de câmbio de um peso por dólar, o que provocou uma forte deflação, contraiu a massa monetária e esmagou a economia do país. O PIB caiu 36% entre 1929 e 1932. O impacto social foi dramático. Entretanto, havia uma alternativa possível. Ela passava pela conversão dos dólares em circulação em pesos, pela desvalorização dos pesos e pela instauração de controles cambiais, tudo isso apoiado em uma política expansionista com proteção à produção nacional (substituição de importações). Mas ainda faltava que os Estados Unidos aceitassem a constituição de um sistema monetário autônomo em Cuba, o que não foi o caso. Eles favoreceram seus próprios proprietários de centrais açucareiras e limitaram as exportações cubanas ( Jones-Costigan Sugar Act, 1934 ).
Em 1950, entretanto, foram os Estados Unidos que promoveram a entrada em funcionamento do Banco Nacional de Cuba, mas em um contexto mundial e nacional já totalmente transformado. Para eles, interessava inserir Cuba nas novas organizações financeiras internacionais (onde a sua posição era predominante) e controlar as atividades dos bancos cubanos, dinamizados pelo boom açucareiro da segunda guerra mundial e da guerra da Coréia. O papel efetivo deste organismo monetário não era, entretanto, regular a expansão da massa monetária segundo as necessidades do desenvolvimento da economia nacional. Mas de gerir as reservas em ouro e dólares do país, na medida em que se aprofundava a especialização açucareira, cada vez mais imbricada na economia americana, que expandia a diversificação de seus investimentos na estrutura de propriedade do capital e contribuía para promover as despesas militares e de consumo suntuário de Batista. A ilha estava integrada à zona do dólar.

A revolução e o dólar.
A revolução e a instauração progressiva de uma economia socialista deveria romper com este estado de coisas [4] . Foi sob a autoridade do comandante Ernesto Guevara, presidente do Banco Nacional de Cuba de novembro de 1959 a fevereiro de 1961, que o próprio sistema foi bruscamente modificado e engajado na transformação das instituições monetárias e financeiras do país. Pela primeira vez na história do país, após quatro séculos de colonialismo espanhol e seis décadas de dominação norte-americana, elas foram colocadas a serviço dos interesses nacionais. Para evitar uma fuga maciça de capitais e amenizar a penúria de divisas que pesava sobre o balanço de pagamentos, foi instaurado um controle estrito das reservas e do câmbio. Esse controle passava pelo financiamento dos pagamentos em moedas estrangeiras, entradas e saídas de divisas, compras e vendas de dólares por não residentes, licenças para importação, etc. A nacionalização dos bancos (400 estabelecimentos) foi decidida no dia 13 de outubro de 1960, ao mesmo tempo em que foi realizada a dos principais setores industriais, comerciais e de infra-estrutura.
As instituições financeiras especializadas foram integradas no seio das novas estruturas do Estado socialista, principalmente ao Instituto Nacional de Reforma Agrária e ao Ministério de Comércio Exterior [5] . Em fevereiro de 1961, a reestruturação do Banco Nacional de Cuba estava terminada. A partir daí, ele acumulava as funções monetárias, bancárias e de crédito e se tornou um instrumento-chave na consolidação da propriedade social dos meios de produção, na instauração da planificação centralizada e no começo da industrialização do país. O peso novo (assinado com o nome “Che”) expulsava a moeda americana.
O dólar, contudo, não desapareceu completamente durante a revolução. Uma das razões foi a existência das diplotiendas (lojas em dólares para diplomatas e não residentes). Entretanto, seus circuitos mantiveram-se limitados a certos segmentos do setor informal e alimentados pelo envio clandestino de dólares pelos imigrantes cubanos aos seus parentes. A posse de divisas permanece proibida em Cuba até 1993.

A dolarização atual e seus efeitos econômicos e sociais
Causas e mecanismos da dolarização.
Em Cuba, a dolarização atual apresenta particularidades que a distingue tanto daquela dos países latino-americanos, que a adotaram segundo a ótica neoliberal para estabilizarem seus sistemas de câmbio (Equador e Argentina) [6] , como das reformas monetárias dos países “em transição”, levadas a cabo sob a direção de partidos comunistas (China e Vietnã). Ao contrário dos países latino-americanos, a dolarização em Cuba visou favorecer o ingresso de divisas para limitar o déficit nas contas externas, aumentar a capacidade de importação e para evitar uma depreciação muito forte da moeda nacional. O objetivo foi o de fornecer ao Estado os meios de continuar sua intervenção social, para garantir à maioria da população condições de vida e de trabalho que amortecessem os efeitos da crise. Contrariamente à China e ao Vietnã, o Estado cubano conservou para si o impulso à acumulação de capital – que escapa ao setor privado – através de uma estrutura de propriedade dos meios de produção amplamente dominada pela forma pública. As reformas cubanas não implicaram nem privatização nem liberalização financeira como nas transições asiáticas. A penetração de mecanismos de mercado é certamente inegável em Cuba, mas ela permaneceu muito mais limitada do que no Vietnã e, sobretudo, na China. Este aspecto é muito importante, pois o não desenvolvimento de um mercado financeiro mais sofisticado permite, como veremos, encarar de maneira mais realista um processo de reversão da dolarização.

A dolarização em Cuba é o resultado da profunda crise sofrida após a desaparição da URSS e do CAME – Conselho de Ajuda Mútua Econômica. Seus intercâmbios externos estavam estreitamente interligados em condições privilegiadas e protegidos dos acasos do mercado mundial. O colapso das exportações e importações [7] que se seguiu, ampliado pelo reforço do embargo e pelas restrições da dívida externa, conduz a uma queda da produção (menos 34% entre 1990 e 1993), da produtividade, do investimento e do consumo, e ao aumento do déficit orçamentário. Este último, que foi ampliado pela deterioração das contas das empresas públicas, mas também pela decisão política de manter a massa salarial, o nível de emprego e as despesas sociais, provocou um aumento da liquidez em circulação. O valor do peso cubano se enfraqueceu. Entre 1990 e 1994 a taxa semi-oficial de câmbio passou de 7 a 95 pesos por dólar, com um pico de 150 pesos no final de 1994 (Figura 1). É neste contexto extremamente degradado que o Estado iniciou uma série de profundas reformas, uma das quais chave, que foi a descriminalização da posse de divisas (agosto de 1993).

Desconsiderando a desvalorização, o objetivo principal das reformas seria o de permitir ao Estado recolher o máximo de divisas para reduzir os desequilíbrios externos e assim estar em condições de: i) manter o modelo social cubano (educação e saúde públicas, libreta de alimentação, alojamento e transportes a preços reduzidos, etc.); ii) deslocar o centro de gravidade da economia nacional da produção açucareira, que apresentou receitas declinantes, para o turismo e os setores exportadores não açucareiros [8] ; iii) encaminhar para a auto-suficiência alimentar (através das substituições de importações) e energética (petróleo). Para isso, seria necessário apelar para os investimentos diretos estrangeiros (IDE), mas, apesar de não negligenciáveis e diversificados [9] , os ingressos de capitais são insuficientes para cobrir as necessidades das importações indispensáveis ao país e o déficit em conta corrente.

O governo então adotou uma série de medidas institucionalizando a dolarização parcial da economia: i) autorização para o recebimento de divisas provenientes do exterior ( remesas ); ii) descriminalização da posse de divisas e aberturas de contas bancárias em divisas; iii) criação de uma rede de lojas para a venda de bens de consumo durável e não durável exclusivamente em pesos conversíveis ou em dólares (tiendas de recuperación de divisas).

Figura 1

Essas medidas permitiram o ingresso de uma quantidade importante de dólares e o uso legal daqueles que estavam entesourados estimulando a demanda interna por bens e serviços. Isso, junto com a supressão do monopólio estatal do comércio exterior, colocou em concorrência as unidades produtivas locais com os bens importados aos preços internacionais, devendo favorecer uma gestão mais racional das empresas públicas (perfeccionamiento empresarial).

O turismo, o IDE e as remesas tornaram-se, assim, os novos motores da economia cubana, mas também os principais vetores da dolarização que cresceu consideravelmente. Segundo as estimativas da CEPAL (1997) – mesmo que elas tenham permanecido ocasionais –, o montante dos haveres em dólares em Cuba era de 650 milhões, em fins de 1996. Em 1998, os rendimentos privados em dólares poderia ter ultrapassado um bilhão (ESCAITH, 1999).

A dolarização foi, então, sentida pela economia cubana como algo ligado ao desaparecimento de seus antigos mercados externos, mas, também, foi integrada pelo governo [10] no centro de um conjunto de reformas. Estas admitiram o retorno provisório de mecanismos de mercado, mas definiam que esses continuariam fortemente controlados. A dolarização é inseparável da mutação sofrida nesses últimos anos pelo sistema de planificação da economia, a partir daí, descentralizada e de natureza principalmente monetária e financeira. A gestão racional e eficaz da liquidez exigia a introdução de mecanismos apropriados e por isso uma série de profundas transformações, introduzidas em 1997, acabou com o sistema de banco único (separando as funções de banco central, banco de investimentos e de banco comercial) pela instauração de uma rede descentralizada de instituições financeiras especializadas dependentes do Banco Central de Cuba. Entretanto, este permaneceu o órgão diretor no novo dispositivo, colocado sob controle do Estado. Por outro lado, um novo regime fiscal também foi instalado.

Frente a essas mudanças, a manutenção do sistema social cubano deve-se em parte, à instauração de um dispositivo de transferências inter-setoriais utilizando as duas taxas de câmbio em vigor: uma, seguramente, super avaliada (a taxa oficial), a outra, sem dúvida, sub-avaliada (a taxa semi-oficial). As antigas subvenções diretas do Estado para as empresas públicas foram reduzidas e substituídas em grande parte por um sistema de equalização entre as empresas. As empresas do setor chamado de “emergente” ( joint-ventures , turismo, unidades dolarizadas...) são beneficiadas prioritariamente pelos investimentos estatais e por uma autonomia de gestão, em particular para a utilização das divisas que elas dispõe. Em contrapartida, elas drenam para o Estado rendimento em dólares, seja transferindo os excedentes de seu balanço de divisas para a Caja central de divisas , seja recolhendo através de “entidades-ponte” os salários em dólares de seus empregados, seja pela via fiscal. O setor de exportação historicamente dominante, o açucareiro, também contribui para bombear dólares, mas não dispõe da mesma liberdade para a utilização deles. Seu dinamismo é controlado pelo Estado de maneira a dominar da melhor forma a orientação do crescimento para os novos motores da economia. O dispositivo é concebido de maneira a que as empresas estatais dos setores tradicionais (sistemas sociais, alimentação, infra-estrutura...) possam financiar a aquisição de insumos (nacionais ou importados) em dólares, comprando dólares com pesos cubanos não conversíveis, junto à Caja central de divisas , à taxa oficial de um por um, e vender uma parte de sua produção em dólares. Assim, elas podem continuar a fornecer para a população cubana o grosso de sua produção, seja gratuitamente (educação e saúde, por exemplo), seja a preços extremamente baixos (alimentos, transportes, alojamentos, eletricidade, cultura, esportes, etc.). Portanto, a dolarização tem uma influência decisiva sobre a evolução da planificação cubana, que não foi abandonada, mas mudou a sua natureza e seus instrumentos.

Os efeitos da dolarização.
Inegavelmente, a gestão da dolarização realizada pelo governo cubano permitiu a recuperação da economia – mesmo sem ter ainda atingido o seu nível de 1989 –, mas ela igualmente produziu uma série de efeitos considerados indesejáveis [11] . A dolarização cavou um fosso preocupante no seio da população entre aqueles que têm e aqueles que não têm acesso a fontes de receitas em dólares, produzindo uma nova diferenciação social, inaceitável pelas autoridades cubanas no longo prazo. Trabalhadores que desempenham funções indispensáveis para a sociedade (operários, assalariados agrícolas, professores, médicos, pesquisadores) são penalizados, sendo remunerados em pesos, em relação às pessoas que têm acesso aos dólares. As fontes de obtenção dos dólares são variadas: remesas , rendimentos obtidos com o turismo, prêmios e estímulos materiais, rendimentos obtidos nas atividades por conta própria e operações de câmbio no mercado de câmbio criado para a população (como as CADECA ou no setor informal) [12] . A estrutura igualitária dos salários e a existência de um sistema completo de serviços públicos constituem o sucesso (amplamente reconhecido no plano internacional) e um dos fundamentos do processo revolucionário. Inevitavelmente, este é desestabilizado pelo fato de que o rendimento de uma parte da população possa não repousar mais sobre o trabalho ou sobre um direito social. Ao mesmo tempo, os incentivos ao trabalho e ao aumento da produtividade do trabalho são embaralhados pela dolarização.

A política de manutenção dos empregos e dos salários mesmo com a queda da produção, elevou fortemente a quantidade de moeda em mãos da população cubana e a legalização da posse de dólares contribuiu para o aumento das reservas em moeda. A figura 2 mostra o crescimento da quantidade total de moeda e da participação dos dólares nesse total.

Figura 2

Mesmo entre aqueles que têm acesso ao dólar (cerca de dois terços da população) existem as desigualdades que devem ser procuradas nos depósitos bancários. Com efeito, estima-se que, em 1999, 12,0% das contas bancárias concentravam 80,0% dos depósitos, contra 15,0% e 70%, respectivamente, em 1994. O surgimento de uma nova camada social, muito mais rica, pois dispõem de uma quantidade importante de dinheiro acumulado, em dólares, aguçam as contradições internas. O desenvolvimento dessas contradições poderia consolidar as forças anti-socialistas, hostis ao projeto social cubano. Aos níveis econômicos e político, a dolarização pode engendrar maior instabilidade no país. Neste contexto, uma das chaves do dispositivo introduzido pelo governo cubano é um bloqueio à acumulação privada de capital.

Apesar do retorno dos mercados livres, principalmente de produtos agrícolas, da permissão para a abertura de restaurantes (comedores) e do trabalho por conta própria, nenhuma dessas atividade pode empregar legalmente o trabalho assalariado. Com isso, o Estado restringe a acumulação privada de capital e pode manter o controle da produção através da planificação centralizada.

O debate sobre a dolarização e alternativas para uma desdolarização.
Os termos do debate sobre a dolarização.

Os países capitalistas, particularmente os subdesenvolvidos e com políticas de ajuste sob as regras do FMI, sofreram graves crises financeiras nos últimos anos. Essas crises são provocadas, freqüentemente, pelas saídas de capitais ou por ataques especulativos nos mercados financeiros internacionais, produzindo enormes pressões para a desvalorização de suas moedas. Tais desvalorizações modificam os preços relativos internos, aumentam a taxa de inflação e as taxas de juros, portanto, também aumentam a dívida. Esta aumenta igualmente a fragilidade das condições de crescimento, produzindo mais desemprego e mais pobreza. Os fundamentos mesmos de uma política econômica soberana é que são postos em questão. Os economistas ortodoxos, e alguns heterodoxos, opõem-se sobre a escolha da “melhor política cambial” no atual contexto de liberalização dos fluxos de capitais: taxas fixas ou flexíveis.

O regime de taxa fixa de câmbio pode ser mais ou menos rigoroso. A forma mais rígida é a utilização de uma “caixa de conversão”, o currency board, como a que foi implementada na Argentina. No Brasil, o Plano Real utilizou um regime mais flexível, o sistema de bandas cambiais até janeiro de 1999. Em qualquer dos casos, a exigência principal é a manutenção de um elevado volume de reservas cambiais para fazer face aos ataques especulativos, quase inevitáveis com a liberalização dos fluxos de capitais. A experiência recente desses países mostrou que esse regime de câmbio acaba sendo inviável a longo prazo, principalmente quando o país necessita manter taxas elevadas de juros como meio para atrair capitais externos.

No outro extremo, um regime de taxa flexível ou flutuante de câmbio, sem a intervenção do Estado no mercado cambial, eleva os riscos decorrentes das desvalorizações cambiais nos países subdesenvolvidos. Esse regime pode gerar uma grande instabilidade e a volatilidade das taxas de câmbio, estimulando continuamente a especulação nesse mercado. Devido à condição subordinada das economias periféricas, esse regime de câmbio costuma exigir contínua intervenção no mercado cambial, exaurindo as reservas internacionais, e taxas de juros reais bastante elevadas, sem a qual não haveria o ingresso de capitais na magnitude necessária para saldar a conta de transações correntes.

Além da alternativa entre regimes de taxas fixas ou flutuantes de câmbio, com suas respectivas variantes, a dolarização foi uma das alternativas apresentada como a solução para a instabilidade cambial. Este é o caso da América Latina, em particular entre aqueles que são favoráveis à constituição da ALCA – Área de Livre Comércio das Américas –, tal como está sendo proposta. A dolarização completa da economia permitiria a superação dos constrangimentos devidos à política cambial. Ela suprimiria o dilema da escolha do regime cambial com o abandono da moeda nacional, mas, ao mesmo tempo, o que permite a soberania monetária (portanto, nacional) do país. Não se trata, aqui, da defesa de que a existência de uma moeda nacional permite uma larga margem de manobra e que é fácil superar as restrições externas, mas que tais margens existem e, mesmo que sejam mínimas, podem ser utilizadas no interesse do país. Da mesma forma, está longe de ser seguro que a dolarização seja a panacéia em matéria de estabilidade das economias dependentes da periferia do sistema capitalista mundial. As experiências recentes na América Latina (Argentina, Equador, Guatemala, El Salvador) mostram que a dolarização não garante a estabilidade dos preços internos nem a do balanço de pagamentos e muito menos um fluxo de ingresso de capitais monetários internacionais [13] . Ela assegura ainda menos o crescimento sustentado dos setores produtivos da economia. Basta olhar para a Argentina, o país que estava mais avançado nesta via: lá reina o caos.

O debate sobre a dolarização da economia cubana é intenso. Primeiro, ele ocorre fora de Cuba, especialmente nos Estados Unidos, em especial nos Congressos da Association for the Study of Cuban Economy [14] . O espírito de seus trabalhos foi divulgado desde 1990, com a palestra de Pazos (1990), ex-presidente do Banco Nacional de Cuba, que tinha sido substituído pelo Comandante Che Guevara. Esperando a queda inevitável e rápida de Fidel Castro, Pazos apresentava uma série de propostas para o período de transição a respeito do sistema de preços e da reconversão do sistema produtivo, mas, também, a restituição das propriedades nacionalizadas pela revolução e a retomada das relações com os Estados Unidos.

Moreno-Villalaz (1992), por seu lado, propunha o que ele chama de “um sistema monetário ótimo” para Cuba. Para tanto, toma como exemplo o dispositivo monetário praticado no Panamá, com a livre entrada e saída de mercadorias, capitais e moedas. Segundo ele, todos os preços, decorrentes do confronto entre oferta e demanda, deveriam ser convertidos em dólares e o sistema financeiro cubano aberto aos capitais estrangeiros. O sistema apresentado previa o abandono da política monetária, somente o mercado deveria regular automaticamente os fluxos de moeda em função das necessidades internas pela “criação endógena de moeda”. O excesso de liquidez em pesos seria absorvido pelas privatizações e impostos – que seriam pagos com pesos. Todos os pesos recebidos pelo Estado cubano seriam destruídos e o peso seria substituído pelo dólar. Todavia, devemos destacar que o Panamá não é o melhor para ser utilizado como exemplo, como o faz Moreno-Villalaz. Nas últimas décadas, o Panamá teve que se submeter a mais de 15 programas de estabilização do Fundo Monetário Internacional. Este país também não é conhecido por ser um campeão no que diz respeito à soberania nacional.

Outra proposta, com aparência menos “radical” do que a de uma dolarização completa foi apresentada por Sanguinetty (1994). Mas ela também diz respeito às questões monetárias na transição de Cuba para o capitalismo. Ele propõe a liberalização total da circulação do dólar paralelamente à circulação do peso cubano e que o valor relativo das moedas seja determinado somente através do jogo do mercado. O resultado esperado é uma concorrência entre moedas. Os agentes econômicos poderiam, assim, escolher livremente em qual moeda denominar seus contratos. As empresas seriam livres para pagarem os salários de seus empregados em pesos ou em dólares. A mobilidade dos trabalhadores entre empresas faria coincidir as decisões de uns e de outros. Os trabalhadores que preferissem receber em dólares procurariam as empresas que pagassem nessa moeda e os que quisessem receber em pesos, às outras empresas. Para o capital seria permitido uma liberdade total, em uma economia semelhante àquela idealizada por Hayek, na qual a moeda é desestatizada. A idéia, provocadora, é de refletir sobre um regime de câmbio a ser adotado na espera de uma (inevitável) união monetária entre os Estados Unidos e Cuba.

Mas as críticas dirigidas ao governo revolucionário não são o privilégio dos exilados cubanos, elas provêm, igualmente, de outros estrangeiros. Miranda (1999) recomenda uma mudança no curso das reformas no sentido de uma maior liberalização. Uma das medidas propostas – e compartilhada, como veremos, com cubanos (Carranza et alii , 1995) – é a autorização para a criação de pequenas e médias empresas privadas. Segundo o autor, os germes do capitalismo já existem, em Cuba, pela existência de desigualdades de oportunidades para o desenvolvimento de negócios privados. Ele considera, ainda, que o progresso do setor privado poderia dinamizar a economia através da utilização dos dólares entesourados. No plano monetário, o caminho desejado é o da unificação das taxas de câmbio, pois a sua dualidade prejudica o comércio exterior e o conjunto da economia, e a fixação de uma nova taxa de câmbio, durante um período transitório, antes que o dólar, no seu “valor real de mercado”, finalmente sirva como âncora ao peso. O objetivo fundamental, segundo uma interpretação tipicamente neoclássica da moeda, é que a economia disponha de um sistema monetário confiável, tanto no interior quanto no exterior, e que ela convirja para uma forma capitalista.

Sem discutir diretamente o processo de desdolarização, a economista cubana Hidalgo (2002) centra sua análise sobre a escolha do regime de câmbio a ser adotado em Cuba na saída da dolarização. As distorções produzidas pela dolarização são tais que exigem a passagem para um outro regime de câmbio. Mas uma desdolarização que suprimisse ao mesmo tempo o dólar e o peso conversível produziria ganhos e perdas cuja amplitude e distribuição seriam diferentes segundo o regime e a taxa de câmbio adotados. Uma desvalorização inevitável da taxa oficial de câmbio produziria ganhos para os setores emergentes e perdas para os outros setores, devido à supressão das transferências intersetoriais. Mas, se Hidalgo, ela mesma, não faz uma escolha de qual regime de câmbio a ser adotado, ela sugere que o novo regime deveria, em qualquer das opções, obter a “confiança” dos mercados internacionais.

Certos autores estrangeiros não apresentam, todavia, essa prudência. Kildegaard e Orro Fernandez (1999), por exemplo, se colocam explicitamente a favor de um regime de câmbio fixo, o mais rígido, com uma caixa de conversão e a ancoragem do peso ao dólar, “a melhor opção para Cuba em matéria de política monetária seria o currency board (p.33)”. O regime de câmbio visualizado para o futuro de Cuba é, então, exatamente aquele que era aplicado, no passado, pela Inglaterra em suas colônias.

As discussões a respeito da desdolarização.
Resta, então, que o governo cubano e numerosos analistas, tanto em Cuba como no exterior, estão de acordo sobre a necessidade de uma desdolarização. Infelizmente, ainda não há um debate amplo e aberto sobre esta questão fundamental. Alguns partidários da desdolarização sustentam que ainda não é o momento de efetuar esta reforma, pois é complexa e necessita como pré-condição que o balanço de pagamentos esteja equilibrado e a recuperação completa da economia, ao nível em que ela se encontrava antes da crise. A situação é tanto mais difícil quando os autores que defendem a desdolarização, o mais rápido possível, parecem que não entram em acordo sobre as medidas a serem adotadas e nem mesmo sobre um quadro coerente que permita levar a cabo este projeto. Por outro lado, está claro que uma parte da população, aquela que foi mais diretamente beneficiada pela dolarização durante quase dez anos, não está disposta a aceitar um processo de desdolarização da economia, o que coloca, evidentemente, um problema político delicado para a continuidade das políticas desenvolvidas pelo governo.

Em Cuba, Carranza, Gutiérrez e Monreal (1995) estão entre os primeiros a formularem uma proposta concreta de desdolarização. A dimensão monetária da reestruturação global da economia que eles apresentam apóia-se sobre uma dupla constatação: o de um excesso de liquidez e o da concentração dessa liquidez [15] . A proposta monetária que eles apresentam para solucionar esses dois desequilíbrios é considerada, por eles, como condição sine qua non para as reformas mais amplas, em particular a autorização para a criação de pequenas e médias empresas com capitais privados cubanos [16] . O projeto propõe a supressão simultânea do dólar e do peso conversível, ao mesmo tempo em que reduz as desigualdades. A posse de divisas permaneceria legal, mas todos os residentes cubanos, da mesma forma que os residentes estrangeiros, assim como os turistas, seriam obrigados a utilizar a moeda nacional dentro do território cubano. A medida crucial que os autores propõe consistiria em uma substituição dos bilhetes em circulação e dos depósitos em contas de poupança por uma nova moeda, cuja emissão seria acompanhada por um confisco realizado segundo uma escala regressiva. Taxa de um por um até um certo teto e, a partir daí, quanto maior a quantidade possuída de liquidez, além desse teto, mais a taxa de conversão seria desfavorável.

Tal solução se choca, segundo nosso ponto de vista, contra três problemas importantes. Primeiro, o dispositivo em seu conjunto comporta a incoerência de querer conciliar o autoritarismo de uma medida de confisco com o liberalismo de uma abertura para o setor privado a qual, podemos imaginar, produziria um efeito exatamente contrário. O impacto total poderia, então, ser o de acumular os efeitos perversos das duas medidas propostas. Segundo, mesmo se os autores fundamentam o confisco sobre um princípio de justiça, ele comportaria o risco – além de suscitar a hostilidade política dos mais afortunados – de uma perda de confiança nas autoridades monetárias. Tal cenário tornaria extremamente delicadas suas decisões posteriores e teria os piores efeitos psicológicos sobre os agentes. Terceiro, a reforma monetária proposta deveria ser realizada de surpresa para ser eficaz. Na ausência da surpresa, se a reforma for anunciada com antecedência, parece que seria difícil de evitar uma vaga de conversão de pesos em dólares, ou seja, de comportamentos especulativos sobre a taxa de câmbio. Admitindo que se consiga, a reforma ainda permaneceria incompleta, pois ela não atingiria a liquidez possuída pelos agentes que estivesse fora dos estabelecimentos bancários. O fato é que essas propostas não foram implementadas pelo governo cubano, que preferiu escolher a opção de gerir os mercados dolarizados e de desenvolver o turismo e os IDE, a fim de aumentar suas receitas em dólares e de manter o controle estatal sobre a economia.

Johsua (2001) formula uma via alternativa de desdolarização, considerada como uma das tarefas mais importantes, no médio prazo, para a economia cubana. Mas, ao contrário dos três economistas cubanos, ele pensa que “restabelecer a proibição da posse de divisas seria ineficaz, perigoso (para a retomada já obtida) e pouco desejável (pois apresenta a imagem de um retrocesso)”. A análise de Johsua parte da constatação que “a fonte da dolarização é a fraqueza do peso” e que esta “aparece como um excesso de liquidez”. Para ele, a prioridade seria começar pela correção dos desequilíbrios que originaram o excesso de liquidez (limitar os déficits públicos e a emissão monetária) para continuar a estabilizar o peso e consolidar, assim, a confiança da população no peso. As medidas prévias à desdolarização, visando a “enxugar uma parte da liquidez”, poderiam ser a emissão de títulos de dívida do Estado, a longo prazo e em pesos, a taxas de juros suficientemente atrativas e de criar contas de poupança, com taxas de juros superiores àquelas dos depósitos à vista. Os depósitos bancários em divisas, naturalmente, continuariam. Sobre esta base, a medida fundamental consistiria em “converter as lojas de recuperação de divisas aceitando, em um primeiro momento, o pagamento em pesos ou dólares, em seguida, somente em pesos, tudo na base da taxa de câmbio do mercado”. O anúncio dos preços seria feito em pesos cubanos, pela conversão dos preços à taxa de mercado, e o ritmo de crescimento da economia permitiria a redução progressiva dos preços, de início excessivamente elevados, para permitirem o acesso à toda à população. Durante um período intermediário, uma política de redistribuição de renda dos setores dolarizados para os outros setores, através do aumento dos salários e prêmios aos trabalhadores, jogaria um papel fundamental.

Esse raciocínio, todavia, deixa indeterminado: a amplitude das margens de manobra à disposição do governo em termos de endividamento, a justificativa de uma supressão imediata do peso conversível (simultânea à do dólar, segundo o autor) e a avaliação do risco de redução das remesas . Nós achamos, sobretudo, que ela necessita de algumas observações. Em primeiro lugar, é preciso compreender que o excesso de liquidez não é a única causa da fraqueza do peso, esta deve ser buscada na crise decorrente do colapso da URSS e nas deficiências produzidas na estrutura produtiva cubana. O excesso de liquidez é o resultado de uma política econômica desejada pelo governo revolucionário – déficit orçamentário e criação monetária – visando, apesar da crise, a manutenção dos salários e dos empregos para limitar as conseqüências sociais negativas da crise. Em seguida, a análise proposta pelo autor concentra-se sobre as formas de dolarização da liquidez mantidas pela população, que diz respeito, no essencial, à esfera do consumo. A supressão das tiendas é, então, prioritária para ele. Com isso, “o que resta da dolarização perderá progressivamente sua razão de ser (...) e o financiamento das empresas, pelos bancos, poderá ser feito cada vez mais exclusivamente em pesos”. Ora, a dimensão do financiamento dos setores produtivos pela dolarização joga um papel fundamental no exame de qualquer reforma monetária (conforme os subsídios inter empresas). Enfim, as transformações propostas por Johsua aplicam à economia cubana as categorias, os constrangimentos e as instituições típicas das economias capitalistas e não os mecanismos em vigor em economias socialistas, ou “mistas”. Nessas últimas, as políticas monetárias, financeiras e bancárias obedecem a objetivos diferentes daqueles do capitalismo. Tal é o caso, em particular, do papel atribuído aos bancos e à sua política de depósitos e empréstimos a juros. No esquema proposto, o objetivo não é o de abolir a função de reserva de valor da moeda, ao contrário, sua propriedade de ser capital-dinheiro não desaparece, mas é reforçada.

É necessário que se elabore um outro projeto para a desdolarização da economia cubana, um que atribuísse ao peso conversível um papel-chave durante um período transitório, antes que seja possível sua própria supressão. A moeda escolhida para o mercado interno deveria ser o peso cubano. A manutenção do peso conversível como meio de circulação interno em substituição ao dólar, eventualmente desvalorizado em relação ao peso cubano, permitiria, na medida em que houvesse uma recuperação econômica, e evitando uma corrida ao dólar, modificar os mecanismos de subsídios entre empresas e de reforçar, progressivamente, os mecanismos de planificação em moeda nacional. Tal dispositivo teria várias vantagens, como o de ampliar o controle do Banco Central sobre o mercado de câmbio e sobre a entrada e saída de divisas, de aumentar o montante de dólares recuperados pelo Estado, de reduzir o mercado negro de divisas, o desvio de mercadorias e de amenizar os riscos de crises financeiras engendradas pela criação de créditos em dólares pelos bancos cubanos para as empresas nacionais.

Por seu lado, González Gutiérrez (1997) considera que “para fazer recuar a dolarização seria necessário colocar em ação uma série de ações coordenadas. Entre elas (...): a) restituir à moeda nacional o maior número de funções possíveis, compatíveis com a coexistência de uma regulação econômica realizada de forma predominante através de divisas; b) transformar os esquemas de financiamento de caráter particular em divisas, em mecanismos financeiros-bancários de tipo geral; c) transferir progressivamente a regulação econômica em direção à moeda nacional (reforço dos mecanismos de gestão financeira e planificação em moeda nacional); d) avançar gradualmente para a conversibilidade da moeda nacional”. Se o caminho escolhido for o de um reforço da moeda nacional, sincronizada com a planificação, a questão da escolha do regime de câmbio perde a sua importância, na medida em que o Banco Central seria encarregado de fazer respeitar um controle estrito do câmbio, nas relações com o exterior, e de introduzir no interior da economia um sistema de taxas fixas de câmbio, podendo ser múltiplas segundo as necessidades dos diferentes setores a serem desenvolvidos. Essa orientação exigiria, naturalmente, um amplo processo de discussão das reformas no seio mesmo da população.

Conclusão.
Em um discurso sobre a situação da crise internacional (02/Nov/2001), o Presidente Fidel Castro declarava que “a revolução, forte pela autoridade moral que lhe é própria, garante a todos os cidadãos: 1. que as CADECA s não serão fechadas; 2. que todos os depósitos, que eles sejam em pesos cubanos, em pesos conversíveis ou em dólares, serão absolutamente respeitados; 3. que as lojas que vendem em divisas e às quais todos têm acesso em maior ou menor medida em função de seus rendimentos em uma moeda ou outra, não serão fechadas; 4. (...) que os preços oficiais dos bens e serviços fornecidos à população, sejam aqueles sob racionamento ou os demais, não aumentarão nem um centavo (...); 5. que o valor do peso será absolutamente defendido”. A firmeza do governo revolucionário foi, portanto, reafirmada. Mas a gama de possibilidades é grande no interior do quadro fixado, indo desde a manutenção da dolarização durante o período em que for julgado necessário, até o engajamento em uma estratégia de desdolarização, tão esperada e sempre anunciada como prioritária.

Paradoxalmente, o fato de Cuba não fazer parte do FMI, do Banco Mundial e nem da OMC, portanto, que o país não tenha nem dívida junto aos organismos internacionais nem restrições de ajustamento estrutural dirigidas por eles, pôde abrir, em certa medida, margens de manobra para as autoridades cubanas, o que explica a realidade da recuperação econômica. Se é claro que o embargo imposto à Cuba – em violação ao direito internacional e contra a opinião de quase a totalidade da Assembléia Geral da Nações Unidas – reduz essas margens de manobra, entretanto, elas existem, e parecem terem sido utilizadas de forma inteligente para enfrentar a mais grave crise desde 1959. Pois, ao contrário dos países em desenvolvimento submetidos às políticas neoliberais, o governo cubano pôde, custasse o que custasse, manter a sua prioridade absoluta com as despesas sociais (educação, saúde, pesquisa, etc.), seu sistema de alimentação universal a preços módicos ( libreta ) e as desigualdades sociais mais baixas possíveis – ou seja, os deveres mesmos da revolução desde as suas origens.

Conviria acrescentar ainda, para concluir sobre um ponto da atualidade, que Cuba tolera atualmente uma quarta moeda em seu território, pois o euro foi efetivamente autorizado a circular localmente, nas áreas turísticas, desde junho de 2002. Frente às dificuldades do processo de desdolarização, a questão se coloca sobre os benefícios eventuais de uma “ euroização ” da economia cubana que mereceria um exame particular. Essa questão foi discutida recentemente por Ritter e Rowe (2000). Segundo esses autores canadenses, a passagem da dolarização para a euroização traria mais inconvenientes do que vantagens para Cuba, e produziria mais problemas do que a dolarização atual. Nessas condições, a única solução seria, segundo eles, de fazer tudo que for necessário para reforçar o peso cubano como moeda nacional, o que passa pela supressão do dualismo do sistema monetário e da taxa de câmbio.




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NOTAS
1- No início de novembro de 2001, o dólar variou de 21 para 28 pesos e se estabilizou em 26 pesos.
2- Herrera, 2002.
3- O Banco Nacional de Cuba era o nome de uma filial de um banco comercial norte-americano.
4- Herrera, 2001.
5- Entre 1963 e 1964, se desenrola um debate teórico sobre questões financeiras, especialmente o “sistema orçamentário de financiamento”. Ele opõe Guevara (Ministro da Indústria), Alvarez Ron (Ministro das Finanças) e Mandel de um lado, e Rodriguez (INRA), Mora (Ministro do Comércio Exterior) e Bettelheim, de outro.
6- MORANDI e alii.
7- As exportações e as importações caíram 78,6% e 72,9%, respectivamente, entre 1990 e 1993. Entre as importações, os itens que mais sofreram foram as matérias primas, máquinas, equipamentos de transporte e combustíveis. O governo esforçou-se ao máximo para preservar as importações de produtos alimentares.
8- Níquel, tabaco, frutos do mar, entre outros. As exportações de produtos médicos (vacinas e equipamentos) são prejudicadas pelo embargo.
9- Os IDE ingressaram na atividade turística, na mineração e na produção de petróleo, mas também na indústria, na construção civil e na agricultura.
10- A Resolução Econômica do Partido Comunista de Cuba, de 1997, afirma que, “... sem ignorar os seus inconvenientes, a dolarização das relações inter-empresas apresentou efeitos líquidos positivos, pois nós conseguimos manter o funcionamento da economia e a relançar seu crescimento, também conseguimos re-dinamizar as exportações e diminuir os custos, se bem que ainda seja insuficiente para atender nossas necessidades. Essa dolarização não é o estado normal da economia e nós sairemos dela desde seja economicamente factível”.
11- Um efeito negativo imediato da dolarização é a perda de receita de senhoriagem (estoque e fluxo) por parte do Estado cubano.
12- Segundo a CEPAL, os recebimentos de dólares têm como fontes as remesas (64,6%), as vendas privadas (19,0%), o mercado de câmbio (19,8%), e somente 1,6% dos prêmios e estímulos.
13- Também não estamos defendendo que o ingresso de capitais estrangeiros seja a solução, aliás, esse ingresso é muito mais um problema na medida em que agrava ainda mais o déficit da conta de transações correntes.
14- Entre suas atividades, somente o projeto “ Transition in Cuba ”, da Universidade Internacional da Flórida, foi financiado pelo Departamento de Estado do Governo dos Estados Unidos em cerca de meio milhão de dólares.
15- A rigor não podemos utilizar o conceito de liquidez para o caso cubano. O excesso de moeda não é decorrência de uma demanda monetária no sentido keynesiano, pois esse dinheiro está acumulado porque não pode consumido devido a insuficiência de bens no mercado, por um lado. Por outro, ele não pode ser convertido em ativos rentáveis ou em aplicações financeiras para a obtenção de juros.
16- Essa idéia de abrir um espaço ao capital privado é desenvolvida em Carranza, Gutiérrez e Monreal, 1999.


[*] Pesquisador do CNRS (UMR 8595 MATISSE, Universidade de Paris 1, Panthéon Sorbonne).
[**] Professor da Universidade Federal do Espírito Santo, bolsista da CAPES em estágio de pós-doutorado na Universidade de Paris 13, 2001-02.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
04/Abr/03