Cuba e o projecto comunista

por Rémy Herrera [*]

Remy Herrera A adesão de Cuba ao projecto comunista, para ser tomada em toda a sua originalidade e profundidade, não pode ser apreendida fora de uma perspectiva de longo prazo. Se por vezes referimos a «indiferença de Marx quanto à América Latina», devemos notar as poucas ocasiões onde, no decurso da sua obra, este interessa o seu leitor sobre Cuba sugerindo os momentos mais singulares da história dessa formação social.

Em a Rheinische Zeitung , no momento em que esboça o seu conceito de «fetichismo», é o exemplo dos cubano-ameríndios que Marx retém, os quais « vêm no ouro o fetiche dos espanhóis... e o atiram ao mar... para salvar os homens » (A lei relativa ao roubo da madeira, 1842). A integração de Cuba no mercado mundial, primeira grande terra americana «descoberta» em 1492, é realizada, depois da conquista e do caos original que representou o desaparecimento quase total da população autóctone, através de ciclos produtivos, em que o primeiro foi o do ouro, seguido do cobre, da lenha, do couro, do café – Engels descreveu as destruições ecológicas na Dialéctica da Natureza -, onde todos começaram com pilhagens e encerraram com uma desindustrialização. Mais tarde, entre 1750 e 1850, Cuba foi especializada no açúcar por uma aliança entre classes dominantes cubanas (latifundiários e mercadores urbanos) e classes sobre-dominantes centrais (elites dirigentes espanholas e capitalistas mercantilistas anglo-americanos), para se tornar no início do século XIX, o primeiro produtor e exportador mundial de açúcar.

No capítulo VIII, terceira secção do Capital, numa passagem onde Marx sublinha que « a produção capitalista...produz o empobrecimento e a morte precoce da força [de trabalho do homem] encurtando a duração da sua vida », é o sistema de exploração esclavagista cubano, o mais massivo de toda a América hispânica, que ele cita como modelo do género - « mutato nomine » precisa Marx. O desenvolvimento da produção açucareira, sobre o efeito de poderosos choques exógenos (ocupação militar inglesa de 1762, conexão com o mercado norte-americano depois de 1776, revolução haitiana de 1791-1804) sobredetermina as condições endógenas favoráveis ao desenvolvimento em força dos açucareiros e que impulsionou uma inserção no mercado mundial em posição dominada mas dinâmica, foi extremamente violenta para o proletariado cubano: ela repousa sobre uma sociedade inteiramente estruturada pelo esclavagismo em larga escala. Mais de um milhão de africanos foram deportados para Cuba, que contabilizava, oficialmente, na altura do recenseamento de 1841, 436 500 escravos sobre mais de um milhão de habitantes, negros em 60% e que foi, no mundo, a colónia onde a escravatura durou mais tempo (1511-1886).

Em três artigos escritos para o New York Herald Tribune, Marx evoca novamente Cuba, colocada no coração das hipocrisias inglesas face ao tráfico negreiro continuado ao longo do século XIX pelas classes dominantes estatais, espanholas e francesas (Junho de 1858, le Gouvernement britannique et la traite dês esclaves ), relacionado com os coolies chineses (Março de 1857, Les Atrocités anglaises en Chine ), e, completamente dependente do capital hegemónico anglo-americano sobre a forma política da colonização espanhola, a mais longa da história (Junho de 1853, La Campagnie dês Indes orientales ). O sistema esclavagista entrou em crise, pelo facto da impossibilidade de regulação e da multiplicação das sublevações de escravos, Cuba atravessa um longo período de instabilidade, «interregno entre o antigo e o novo», segundo a formulação gramsciana, no decurso da qual «os monstros surgem»: guerra de dez anos (1868-1878, que se seguiu à guerra da sucessão); guerra da independência (1895-1898, as tropas espanholas alcançaram 300 mil soldados, recorde então nunca igualado nos anais da repressão); ocupação militar pelos Estados Unidos (1898-1902, primeira guerra imperialista norte-americana, prolongadas nas intervenções de 1906-12 e 1917 dirigidas contra as mobilizações populares nacionalistas). Cuba transita assim para a dependência total (económica, financeira, política, militar) dos Estados-maiores que durará até à Revolução.

A vanguarda do movimento de emancipação do proletariado multiracial cubano – que encontrou o seu desfecho em 1959 – deve ser inscrito na continuidade das suas revoltas seculares e das guerras da independência. A história da luta de classes em Cuba, em que as condições foram durante muito tempo perturbadas por uma divisão da sociedade segundo critérios de raça, é ritmada por ondas de levantamentos proletários de frequência e amplitudes crescentes: rebeliões unindo trabalhadores indígenas sobre encomienda e escravos africanos em El Cobre em 1525, e que só foram esmagados em 1532; lutas dos mineiros negros do Oriente que arrancaram a sua libertação no decénio de crise de 1730; movimentos nacionalistas de 1795-1820 onde brancos e negros já combateram lado a lado; revoltas cada vez mais massivas de escravos e fugas de cimarrones a partir dos anos 1830-40; resistências recorrentes de pequenos camponeses brancos produtores de tabaco contra o latifúndio açucareiro; ainda os combates do proletariado que foram endurecendo sem cessar a luta de classes, bem antes da mobilização do movimento operário propriamente dito. Este último, impulsionado nomeadamente pelos trabalhadores do tabaco (primeira greve em 1866), inicialmente portadores de reivindicações reformistas, tomaram, com o aparecimento de jornais operários (A Aurora, 1865), as corporações e associações mutualistas (como a Asociación de Tabaqueros de La Habana , fundada em 1866). Lentamente, a partir de 1870-80, o proletariado (estivadores, ferroviários, operários das açucareiras, cortadores de canas...) começou a organizar-se, tendo os seus primeiros congressos (com uma dominante anarquista em 1887, favorável à emancipação nacional em 1892), fixando os seus programas («a classe operária não se emancipará se não abraçar as ideias do socialismo revolucionário», 1892), multiplicando as greves ( das quais muitas foram gerais, em 1901, 1917-20, 1923-25).

Além da precoce e resoluta combatividade, o que singulariza o movimento proletário cubano em relação à restante América latina, é o desdobramento das suas reivindicações de transformação social radical inseridas e sempre imbricadas, não sem dificuldades e contradições, ao mesmo tempo na luta contra o esclavagismo, e na luta anti-imperialista, para a libertação nacional (que se reforça depois da asfixia do estado-nação independente com a agressão norte-americana de 1898). Donde vem, por um lado, que a consciência de classe do proletariado não se poderia formar em Cuba fora de uma identidade multirracial, por outro lado, as lutas de classes sociais eram potencialmente susceptíveis de fazer convergir componentes com fortes interesses heterogéneos – entre os quais os dos elementos progressistas, nacionalistas ou radicais, da burguesia. A análise das lutas do proletariado cubano encontra-se todavia complexificada por três factos. i) O socialismo cubano, cujo caminho foi na América Latina relativamente autónomo, mergulha as suas raízes, pela imigração, em Espanha – o que explica a implantação do anarco-sindicalismo e do comunismo libertário na classe operária urbana (mas não na rural ganha pelo Partido Revolucionário Cubano independentista de José Martí) até por volta de 1920. ii) A implantação largamente rural do proletariado cubano ( macheteros e operários das centrais açucareiras são assalariados) coloca no centro das suas reivindicações não apenas a subida de salários mas também a reforma agrária, que ameaça directamente o latifúndio açucareiro, vector da expansão imperialista do capital financeiro dos Estados Unidos (donde um continuum temático entre a questão agrária e luta anti-capitalista e a possibilidade de uma aliança pluriclassista camponeses-operários). iii) A estratégia dos dirigentes do Partido Comunista Cubano, criado em 1925 por Júlio António Mella e Carlos Baliño (co-fundador do PRC com Martí em 1892, seguido do Partido Operário Socialista em 1904), vê a sua autonomia continuamente limitada, à esquerda, pelo alinhamento segundo as posições tácticas da URSS (Cuba torna-se o primeiro país americano a examinar, em 1940, a participação dos comunistas em um governo de coligação, seguindo o apelo à frente anti-fascista lançada pela III Internacional em 1935), à direita, pela tutela do Partido Comunista dos Estados Unidos sobre influência Browderiana (o seu secretário geral, Browder, defendia a colaboração pacifica com o imperialismo, abandona em 1944 o marxismo-leninismo e dissolve o Partido nos Estados Unidos).

A violência do choque social provocada pela crise de 1929, que atinge Cuba mais do que qualquer outro país latino-americano, lança as bases de uma passagem à ofensiva das classes populares e de uma articulação das acções operárias e camponesas. Os movimentos insurreccionais de 1933, apoiados sobre estruturas partidárias e sindicais integradas à escala nacional (criação da Confederação Nacional Operária de Cuba em 1925, do Sindicato dos operários da indústria açucareira em 1932) e dominadas nomeadamente pelas figuras de Ruben Martínez Villena e António Guiteras Holmes, conduziram à greve geral, perturbando a ditadura de compradores , e chegando mesmo a constituir-se sovietes (em umas trinta açucareiras, em Mabay, Jaronú, Santa Lúcia...) com luta de armas na mão de camponeses sem terra de realengos , com antigos mambises independentistas de 1895, contra a expansão do latifúndio no Oriente. O poder, sob a tutela dos Estados Unidos de Roosevelt e de seguida ao golpe de Estado militar de Batista, endureceu então a repressão: assassínios de líderes operários, camponeses, estudantes, intelectuais (Guiteras, Jesus Menéndez, Aracelio Iglesias, Niceto Peres...depois Alfredo López, Mella...mais tarde Frank País...), prisões e torturas, fuzilamento de manifestantes e esmagamento das ocupações de terras, infiltração e corrupção das direcções sindicais... A acção revolucionária tornou-se extremamente difícil e clandestina com o terrorismo de Estado (os aderentes do PCC eram de 150 mil em 1945 e de 12 mil em 1958), e pelo seu trabalho de formação do povo e de selecção dos seus dirigentes na luta, trará os seus frutos alguns anos mais tarde. Era necessário ainda «adicionar as forças» – por um lado, ultrapassar as divisões trabalhando sobre a constituição de uma frente de classes congregando mesmo a burguesia mais radical, por um outro lado, fragilizar e isolar a ditadura acentuando as contradições entre as classes dominantes (latifundiários, açucareiros, exportadores) nacionais e estrangeiras -, mas, sobretudo, lançar a luta armada cuja dinâmica deveria in fine surpreender os Estado Unidos. É a esta tarefa que se dedica Fidel Castro Ruz.

Após uma tentativa infrutífera (Moncada, 1953) e num contexto de forte agitação social (greve dos operários do açúcar em 1955, desemprego em 25-30%, miséria do campesinato...), a vanguarda do movimento armado revolucionário começa o combate em fins de 1956. A guerrilha, activada a partir das montanhas da Sierra Maestra sob o comando militar e político integrado de Castro, desenvolve uma guerra popular, de fundamento essencialmente campesino, pouco a pouco apoiada pela estrutura experimentada e disciplinada das organizações operárias. Patriotas humanistas e democratas, resolutamente anti-imperialistas, acima de tudo preocupados com a independência nacional e a justiça social (na verdade, já comunistas), os guerrilheiros do Exército Rebelde que triunfaram em 1 de Janeiro de 1959 conquistando o poder de Estado do «primeiro território livre da América» evoluem rapidamente, sobre a pressão de franjas cada vez mais largas de população ganhas para a Revolução para as suas «medidas incontestavelmente justas» e a notoriedade de dirigentes inflexíveis e íntegros (Fidel e Raúl Castro, Camilo Cienfuegos, Juan Almeida, Ernesto Guevara...), colocaram mão à obra num projecto revolucionário profundamente original. Este, inventado na acção, sem modelo teórico preconcebido nem «filosofia revolucionária que justificaria a inacção», mostrar-se-ia tendencialmente (necessariamente?) comunista: «um sistema marxista, coerente, ou aproximativamente coerente, onde colocamos o homem no centro» (E.Guevara). Os comunistas declarados eram portanto raros nas fileiras da guerrilha: Raúl Castro, Guevara; outros juntar-se-ão: Carlos Rafael Rodríguez em seguida Raúl Roa (dois universitários marxistas); em alguns meses quase todos o virão a ser. «Em Cuba, o socialismo, no início da rebelião, não poderia ser outra coisa que o fruto de um diálogo não institucionalizado, de homem para homem, entre a vanguarda e o povo... Tudo isto não é conforme ao esquema de Karl Marx, eu bem o sei. Nós violámos as leis da história fazendo a nossa Revolução. Convinha não a fazer?» (F.Castro).

Se por projecto comunista entendemos projecto marxista de transição para o comunismo (com a abolição do valor e do salário, abolição do Estado e auto-organização dos produtores...) seja em Cuba, na União Soviética na China popular ou outro país do «socialismo realmente existente», essa não é verdadeiramente a questão – pois a luta dos povos em armas, para a sua sobrevivência, contra a agressividade imperialista e os constrangimentos provocados pelo sistema mundial capitalista devém um processo permanente e a luta de classes continua a operar na Revolução, para além da tomada do poder do Estado nacional. Um Estado é (re)instituído em Cuba que se reclama, portanto, no termo de uma radicalização da lógica do processo revolucionário, do comunismo – sem que seja possível de discernir um simples reflexo de sovietismo. As grandes medidas da Revolução foram levadas a cabo desde o início, antes da revelação do seu «carácter socialista», tanto sobre o aparelho de Estado do capital como sobre a estrutura de propriedade do capital, os quais, em Cuba, estavam sob controlo dos Estados Unidos. Eles destruíram, em primeiro lugar, o aparelho repressivo do anterior regime: dissolução do exército, da polícia, dos partidos políticos, instituição de tribunais populares para julgar os crimes da ditadura sem «purgas», luta contra a corrupção e a máfia... Eles transformaram de seguida, rápida e radicalmente, as estruturas da formação social através: i) de escolhas sociais fundamentalmente éticas: erradicação das casas de jogo, da prostituição, do tráfico de droga, dos bairros de lata, da mendicidade, do trabalho de crianças, da discriminação racial; ii) de uma forte redistribuição das riquezas: recuperação dos bens adquiridos de modo ilícito; diminuição das rendas, do preço dos medicamentos e dos livros, das tarifas dos telefones, da electricidade, dos transportes, aumento do poder de aquisição das camadas populares, contracção do leque salarial, absorção do desemprego por grandes obras, racionamento e distribuição igualitária dos produtos básicos com a libreta , supressão das importações de luxo, instauração de sistemas de segurança social e de pensões universais, campanha de alfabetização, gratuidade do ensino; e, sobretudo, iii) de uma reforma agrária levada ao seu término.

Na concepção da reforma agrária, os revolucionários cubanos tiveram em conta tanto os riscos que lhe eram inerentes (o guatemalteco Arbenz foi derrubado cinco anos mais cedo por ordem dos Estados Unidos) como os sucessos tácticos das redistribuições de terras operadas em 1958 pelo Exército Rebelde nas zonas libertadas que reuniu à guerrilha os guajiros pobres contribuindo para a neutralização dos latifundiários hesitantes. Embora ela não previsse a estatização da propriedade fundiária – transferida para pequenos camponeses e para cooperativas -, a lei da reforma agrária de 17 de Maio de 1959 suprime o latifúndio, atingindo frontalmente os interesses dos grandes proprietários. A oposição, essa sim violenta, nacional e estrangeira, ameaça com a asfixia não apenas o campesinato, suporte vital para a Revolução, mas toda a economia, se os Estados Unidos decidissem a não renovação da quota açucareira, principal reserva de divisas do país. Sob vivas tensões internas (atentados contra-revolucionários, sabotagem da reforma agrária, exílios) e da pressão crescente dos Estados Unidos (suspensão dos créditos comerciais, exigência de indemnizações imediatas), um acordo de troca de açúcar por petróleo é assinado com a União Soviética em Fevereiro de 1960. A engrenagem de desafios e respostas que se segue, a partir de Junho de 1960, e no decorrer da qual os Estados Unidos resvala da extorsão económica (supressão do Sugar Act, embargo sobre o comércio) à agressão militar (bombardeamentos, infiltrações armadas, tentativa de desembarque), tem um efeito irreversível sobre o curso da Revolução: o de aproximar Cuba da União Soviética, o de acelerar a liquidação do capitalismo e a estatização dos meios de produção – pela radicalização da reforma agrária, nacionalizações maciças e centralização sob a égide da Junta Central de Planificação – e pela consolidação do poder do exército e das milícias revolucionárias – reforço das forças armadas revolucionárias, criação dos Comités de Defesa da Revolução, acordo de defesa com a União Soviética. De «nacional-libertadora», a Revolução cubana torna-se numa das maiores apostas da confrontação entre as duas superpotências, ao ponto de deslocar a guerra-fria até à beira de uma guerra nuclear (crise dos mísseis, 1962).

Logo em 1960, Guevara declarou: «A Revolução cubana é marxista». E F. Castro acrescentou, no mesmo ano: «ser anti-comunista é ser anti-revolucionário». Em 16 de Abril de 1961, no momento em que, na Praia Gíron, os cubanos fizeram recuar, pela primeira vez os Estados Unidos na sua zona de maior influência, o carácter socialista da Revolução é proclamado: «Companheiros, operários e camponeses, esta é a Revolução socialista e democrática dos pobres, para os pobres, pelos pobres» (Castro), «a Revolução anti-imperialista é a Revolução socialista». As forças que contribuíram para derrubar a ditadura, Movimento 26 de Julho (fidelista, proveniente da guerrilha da Sierra Maestra ), Partido Socialista Popular (comunista, de raiz operária) e Directório 13 de Março (estudantes e guerrilheiros essencialmente urbanos), vão-se aproximar – por iteração: Organizações Revolucionárias Integradas, depois Partido Unido da Revolução Socialista –, para finalmente se fundirem, em 1965, no seio do novo Partido Comunista de Cuba. «Pela primeira vez na história do movimento e depois da III Internacional, um partido comunista aceitou uma direcção política diferente na luta pelo socialismo. E permanecerá para sempre inolvidável o dia em que, com Blas Roca à cabeça, nós [comunistas] apresentámo-nos todos diante de Fidel Castro como simples soldados duma causa comum na qual ele foi para nós, como para todo o povo revolucionário, o comandante em chefe...destinado a levar a bom termo por um lado as tarefas ideológicas e políticas de Martí e, por outro, as militares, de Gomez e Maceo [chefes da guerra da independência de 1895-98]» (C. R. Rodríguez). «A Revolução está para lá do que cada um de nós fez, para lá das organizações que nós temos» (Castro). Em Cuba, a Revolução teve necessidade de persistir martista para se tornar marxista.

Este marxismo, inventivo, praticado antes de teorizado, compreendeu o restabelecimento dos laços com a firmeza revolucionária: «Fechar o marxismo em um catecismo é anti-marxista...o marxismo não é uma propriedade privada inscrita numa conservatória [nem] uma doutrina religiosa..., é a doutrina dos revolucionários, escrita por um revolucionário, para os revolucionários» (F. Castro). O acento é colocado sobre o povo, lutando de fim em fim, só um revolucionário vai até ao fim: «Um dia, o povo revolta-se contra a tirania, um dia o povo está unido, um dia o povo já venceu, mas essencialmente o povo trabalhador, o povo camponês, o povo estudante...a Revolução é a libertação do enorme potencial revolucionário do povo». Condições subjectivas e o humanismo são ali reexploradas: «prosseguindo a quimera de realizar o socialismo com a ajuda das armas apodrecidas legadas pelo capitalismo (mercadoria, rentabilidade, interesse material individual, etc.), arriscamos a chegar a um impasse... Para construir o comunismo, é necessário transformar o homem [formar o «homem novo»] em simultâneo com a transformação da base económica», «o marxista deve ser o melhor, o mais completo dos seres humanos, mas acima de tudo um ser humano, o militante de um partido que vive e vibra no contacto com as massas, trabalhador infatigável que dá tudo ao povo, paciente mas nunca indiferentes ao calor do contacto humano» (Guevara). Uma posição democrática radical é aqui plenamente assumida: «Nós dizemos que o nosso sistema é uma democracia porque ele se apoia sobre todo o povo, porque ele oferece ao povo uma participação sem equivalente em qualquer outra sociedade, porque nele há discussão com o povo sobre todas as questões essenciais... Embora se possa chamar de ditadura da imensa maioria do povo ou ainda democracia operária ou popular» (F. Castro). A ligação directa e constante entre os dirigentes e as massas são aqui apresentados como uma condição sine qua non do aprofundamento do processo revolucionário. Segundo Raúl Castro, «não existe um outro caso na história onde uma revolução e a direcção de uma revolução gozem de um suporte tão massivo do povo, de uma confiança e de um entusiasmo tão inesgotável da parte das massas, de uma unidade tão completa, que esta que nosso povo apresenta à sua revolução, aos seus dirigentes». Mas sabemos por experiência o que tais proclamações podem custar quando elas não colocam simultaneamente a questão de uma participação popular nas decisões, condição de um processo de democratização efectivo, na ausência da qual toda a revolução corre os mais graves perigos.

Cuba socialista, ajudada pela União Soviética permaneceu não obstante uma economia mono-exportadora de açúcar. Donde alguns concluirão um pouco apressadamente que a «dependência» perdurou para além da mudança da potência tutelar mesmo através ou transversalmente à Revolução. É o que revela o «retorno ao açúcar» (após um ensaio de diversificação), é o peso das estruturas disformes e ossificadas do subdesenvolvimento herdado do passado e os poderosos mecanismos de envolvimento do mercado mundial. O esforço de desconexão operada pela Revolução teve que levar em conta as múltiplas e cumulativas restrições, de ordem económica (pressão da falta de divisas sobre a balança de pagamentos), técnica (falta de quadros e de experiência de planificação), política (necessidade de preservar a unidade camponeses-trabalhadores do açúcar como base social da Revolução). Face ao bloqueio do Ocidente, a ajuda solidária da União Soviética significou para Cuba o esboço de desenvolvimento auto-centrado, não desarticulado, e a realidade de um crescimento sustentado do produto durante um longo período (em média anual e em termos reais superior a 3% per capita de 1960 a 1985), devido nomeadamente: ao controle nacional integral da propriedade dos meios de produção e de acumulação, à estabilidade das trocas e da cooperação no seio da CAME (que integrou em 1972), à engrenagem de uma industrialização adaptada às condições de um pequeno país (industria agro-alimentar complexo mecânico-mineiro-metalúrgico), à matriz de repartição da mais valia e de importação viradas para um progresso homogéneo da sociedade, a uma formação técnica e científica colocada ao serviço das necessidades do país...ou seja, exactamente o contrário do que é oferecido à periferia pelas leis do sistema mundial capitalista.

O reconhecimento do apoio material e humano considerável e completamente decisivo da União Soviética ao projecto de sociedade cubana (F. Castro: «sem a ajuda resoluta e generosa do povo soviético, a nossa pátria não poderia sobreviver ao confronto com o imperialismo... nossa dívida de gratidão não se apagará em nossos corações») não é recordado para deitar um véu sobre sérias dificuldades encontradas na realização do projecto: tendências para a centralização administrativa e para o dogmatismo académico, problemas de motivação e de eficácia, complexidade de levar a cabo o poder popular e a descentralização, imperfeição do controlo colectivo real sobre a utilização dos meios de produção sob propriedade estatal e problemas relacionados com o domínio do devir pelos trabalhadores. Estas dificuldades, partilhadas por todos os países do «socialismo real», representa para a revolução cubana uma tarefa prática e teórica das mais urgentes se ela pretende evitar a sorte dos países do ex-bloco de Leste. É de sublinhar que, após 1994, a rectificação impressionante da economia – não obstante mergulhada em uma crise gravíssima após o desaparecimento do bloco de Leste – transportando, mais uma vez, a prova do compromisso de Cuba para com o projecto comunista e da sua autonomia relativa em relação ao modelo soviético não permite subestimar a amplitude dos desafios com que Cuba está confrontada hoje em dia. Apesar do aperto do bloco norte-americano ( Torricelli Act [1992], Helms-Burton Act [1995-96]) e dos perigos de abertura do mercado («período especial»: turismo, transferências monetárias do exterior, investimentos estrangeiros, com as suas consequências em termos de dolarização e de desigualdades, até mesmo o risco da reconstituição de uma burguesia nacional), Cuba moderna não está desprovida de vantagens: massificação da formação e dinamismo criativo, unidade nacional e enraizamento do anti-imperialismo, consciência lúcida das aquisições da revolução.

Visto que o produto mais tangível de quatro decénios de poder revolucionários diz respeito às condições de vida concretas, transparece nos dados estatísticos das organizações internacionais sobre o desenvolvimento humano (PNUD, OMS, FAO, UNESCO, ONU, BIT, CEPAL...). As suas classificações colocam Cuba nos melhores lugares da América Latina, e mais geralmente, do Sul, em matéria de: 1. saúde: segurança social, esperança de vida, médicos, farmácias... 2. educação: taxa de escolarização, êxito nos exames, testes internacionais de conhecimento, bolsas... 3. investigação: financiamento público, investigadores a tempo inteiro, pesquisa fundamental, I&D aplicado... 4. igualdade: igualização dos ganhos e dos patrimónios, promoção social... 5. condição feminina: diplomadas, professoras universitárias, parlamentares, assistência à maternidade, direito a abortar... 6. situação da infância: cuidados pré natais, creches, vacinação, inactividade profissional... 7. trabalho: negociações colectivas, protecção contra acidentes de trabalho, reformas, pouco desemprego... 8. segurança: muito fracas taxas de mortalidade por homicídio ou delinquência... 9. diferença campo-cidade: acesso das zonas rurais à saúde, a água potável, saneamento, demografia urbana moderada... 10. ambiente: projectos ecológicos, repovoamento florestal... 11. cultura: bibliotecas, publicações de livros e de jornais quotidianos, filmes, desportos... e mesmo 12. alimentação: consumo garantido a preços módicos, ligação disponibilidades-necessidades, não há mortalidade por má nutrição ou carências nutricionais (apesar da queda brutal do número de calorias por habitante entre 1991-94).

Esta lista não exaustiva (poderíamos ajuntar os recuos do racismo, da corrupção, ou da desvalorização do trabalho manual), demonstra que o que muitos preconizam em vão para o Sul foi realizado, com sucesso, por Cuba – a seu modo. A despeito do bloqueio e da crise, que afectou negativamente certos indicadores citados sem alterar as prioridades da Revolução, Cuba continua um país onde as condições de existência, de trabalho, de desenvolvimento da esmagadora maioria da população são as mais seguras e as mais justas.

Uma das dimensões mais originais e audaciosas do projecto comunista cubano reside na sua concepção do «internacionalismo proletário» e na condução de uma política externa ao mesmo tempo suficientemente autónoma em relação à União Soviética, e por ela sustentada financeiramente, onde foi encontrar uma fonte de dinamização do próprio compromisso revolucionário. A revolução cubana foi – por causa da inspiração ideológica do seu movimento de libertação nacional (cristalizada no pensamento anti-imperialista de Martí, mas igualmente no de Bolívar), por causa da essência mestiça da sua herança cultural (latino-africana), também por causa da sua força de integração (Che foi internacionalista mas «estrangeiro» até 1959) – chamada a sair espontaneamente das suas fronteiras. Também a determinação terceiro-mundista dos seus chefes conduziram-nos à procura do confronto com os Estados Unidos directamente à escala planetária, em múltiplas frentes. « O imperialismo é um sistema mundial, é necessário combatê-lo mundialmente...são necessários muitos vietnames », declara Guevara em acordo com Castro, que contende, também ele, contra a coexistência pacifica e legalista, segundo a via foquista até 1967 (ou seja, o revés boliviano e a criação das OLAS, um ano após a Tricontinental em Havana). Face ao desencadeamento da repressão contra as guerrilhas latino-americanas, e da falta de uma resposta sino-soviética unida contra a agressão dos Estados Unidos ao Vietname, é em África que se desenvolve a estratégia internacionalista ofensiva de Cuba desde muito cedo (Janeiro de 1962): ajuda à FLN de Ben Bella, à MNC de lumumbista, ao PAIGC de Cabral... bem antes do MPLA de Agostinho Neto, dos revolucionários etíopes, da SWAPO namibiana, da FRELIMO de Machel, da Polisário sahauri, do CNR de Sankara (e mesmo das revoltas eriteias, à qual Cuba reconheceu o direito à existência nacional)...De Abril de 1965 (entrada da 1ª coluna no Congo) a Maio de 1991 (retirada dos soldados de Angola), um pouco mais de 380 mil cubanos combateram ao lado dos revolucionários africanos -- «pela independência, a liberdade, a justiça», dirá Mandela em 1991. Os seus últimos sucessos comuns foram, após a vitória definitiva de Cuito Cuanavale (1988), a manutenção da soberania de Angola, a autodeterminação da Namíbia e o impulso dado à luta do povo sul-africano para o fim do apartheid. Cuba conseguiu desenvolver uma política externa excepcionalmente activa e ambiciosa, desorientando as estratégias das superpotências, levantando muitas vezes pelo seu valor emblemático a admiração dos povos periféricos, conservando pilares princípios políticos e éticos situados nos antípodas do cinismo.

Esses mesmos princípios, os do internacionalismo proletário e da defesa dos humildes de todos os países (em que a «variante económica» foi durante muito tempo o de levar o combate contra as oligarquias latino-americanas e os oligopólios imperialistas até ao mercado mundial do açúcar) situa-se hoje nos fundamentos das missões de assistência conduzidas por Cuba – envio de médicos, professores, técnicos em uma trintena de países pobres, ajuda técnica em caso de catástrofe natural, formação de estudantes estrangeiros em Cuba – e das suas propostas de transformação radical da ordem capitalista mundial – anulação da dívida do «Terceiro Mundo», erradicação total da fome no mundo, condenação sistemática da hegemonia unipolar dos Estados Unidos da América...

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[*] Economista, investigador no CNRS. In Dictionnaire Marx Contemporain, PUF, 2001. Tradução de Paulo Maurício.


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07/Jul/02