Cuba e o projecto comunista
A adesão de Cuba ao projecto comunista, para ser tomada em toda a sua
originalidade e profundidade, não pode ser apreendida fora de uma
perspectiva de longo prazo. Se por vezes referimos a «indiferença
de Marx quanto à América Latina», devemos notar as poucas
ocasiões onde, no decurso da sua obra, este interessa o seu leitor sobre
Cuba sugerindo os momentos mais singulares da história dessa
formação social.
Em a
Rheinische Zeitung
, no momento em que esboça o seu conceito de «fetichismo»,
é o exemplo dos cubano-ameríndios que Marx retém, os quais
«
vêm no ouro o fetiche dos espanhóis... e o atiram ao mar...
para salvar os homens
» (A lei relativa ao roubo da madeira, 1842). A integração
de Cuba no mercado mundial, primeira grande terra americana
«descoberta» em 1492, é realizada, depois da
conquista
e do caos original que representou o desaparecimento quase total da
população autóctone, através de ciclos produtivos,
em que o primeiro foi o do ouro, seguido do cobre, da lenha, do couro, do
café Engels descreveu as destruições
ecológicas na Dialéctica da Natureza -, onde todos
começaram com pilhagens e encerraram com uma
desindustrialização. Mais tarde, entre 1750 e 1850, Cuba foi
especializada no açúcar por uma aliança entre classes
dominantes cubanas (latifundiários e mercadores urbanos) e classes
sobre-dominantes centrais (elites dirigentes espanholas e capitalistas
mercantilistas anglo-americanos), para se tornar no início do
século XIX, o primeiro produtor e exportador mundial de
açúcar.
No capítulo VIII, terceira secção do Capital, numa
passagem onde Marx sublinha que «
a produção capitalista...produz o empobrecimento e a morte
precoce da força
[de trabalho do homem]
encurtando a duração da sua vida
», é o sistema de exploração esclavagista cubano, o
mais massivo de toda a América hispânica, que ele cita como modelo
do género - «
mutato nomine
» precisa Marx. O desenvolvimento da produção
açucareira, sobre o efeito de poderosos choques exógenos
(ocupação militar inglesa de 1762, conexão com o mercado
norte-americano depois de 1776, revolução haitiana de 1791-1804)
sobredetermina as condições endógenas favoráveis ao
desenvolvimento em força dos açucareiros e que impulsionou uma
inserção no mercado mundial em posição dominada mas
dinâmica, foi extremamente violenta para o proletariado cubano: ela
repousa sobre uma sociedade inteiramente estruturada pelo esclavagismo em larga
escala. Mais de um milhão de africanos foram deportados para Cuba, que
contabilizava, oficialmente, na altura do recenseamento de 1841, 436 500
escravos sobre mais de um milhão de habitantes, negros em 60% e que foi,
no mundo, a colónia onde a escravatura durou mais tempo (1511-1886).
Em três artigos escritos para o
New York Herald Tribune,
Marx evoca novamente Cuba, colocada no coração das hipocrisias
inglesas face ao tráfico negreiro continuado ao longo do século
XIX pelas classes dominantes estatais, espanholas e francesas (Junho de 1858,
le Gouvernement britannique et la traite dês esclaves
), relacionado com os
coolies
chineses (Março de 1857,
Les Atrocités anglaises en Chine
), e, completamente dependente do capital hegemónico anglo-americano
sobre a forma política da colonização espanhola, a mais
longa da história (Junho de 1853,
La Campagnie dês Indes orientales
). O sistema esclavagista entrou em crise, pelo facto da impossibilidade de
regulação e da multiplicação das
sublevações de escravos, Cuba atravessa um longo período
de instabilidade, «interregno entre o antigo e o novo», segundo a
formulação gramsciana, no decurso da qual «os monstros
surgem»: guerra de dez anos (1868-1878, que se seguiu à guerra da
sucessão); guerra da independência (1895-1898, as tropas
espanholas alcançaram 300 mil soldados, recorde então nunca
igualado nos anais da repressão); ocupação militar pelos
Estados Unidos (1898-1902, primeira guerra imperialista norte-americana,
prolongadas nas intervenções de 1906-12 e 1917 dirigidas contra
as mobilizações populares nacionalistas). Cuba transita assim
para a dependência total (económica, financeira, política,
militar) dos Estados-maiores que durará até à
Revolução.
A vanguarda do movimento de emancipação do proletariado
multiracial cubano que encontrou o seu desfecho em 1959 deve ser
inscrito na continuidade das suas revoltas seculares e das guerras da
independência. A história da luta de classes em Cuba, em que as
condições foram durante muito tempo perturbadas por uma
divisão da sociedade segundo critérios de raça, é
ritmada por ondas de levantamentos proletários de frequência e
amplitudes crescentes: rebeliões unindo trabalhadores indígenas
sobre
encomienda
e escravos africanos em
El Cobre
em 1525, e que só foram esmagados em 1532; lutas dos mineiros negros do
Oriente que arrancaram a sua libertação no decénio de
crise de 1730; movimentos nacionalistas de 1795-1820 onde brancos e negros
já combateram lado a lado; revoltas cada vez mais massivas de escravos e
fugas de
cimarrones
a partir dos anos 1830-40; resistências recorrentes de pequenos
camponeses brancos produtores de tabaco contra o latifúndio
açucareiro; ainda os combates do proletariado que foram endurecendo sem
cessar a luta de classes, bem antes da mobilização do movimento
operário propriamente dito. Este último, impulsionado
nomeadamente pelos trabalhadores do tabaco (primeira greve em 1866),
inicialmente portadores de reivindicações reformistas, tomaram,
com o aparecimento de jornais operários (A Aurora, 1865), as
corporações e associações mutualistas (como a
Asociación de Tabaqueros de La Habana
, fundada em 1866). Lentamente, a partir de 1870-80, o proletariado
(estivadores, ferroviários, operários das açucareiras,
cortadores de canas...) começou a organizar-se, tendo os seus primeiros
congressos (com uma dominante anarquista em 1887, favorável à
emancipação nacional em 1892), fixando os seus programas
(«a classe operária não se emancipará se não
abraçar as ideias do socialismo revolucionário», 1892),
multiplicando as greves ( das quais muitas foram gerais, em 1901, 1917-20,
1923-25).
Além da precoce e resoluta combatividade, o que singulariza o movimento
proletário cubano em relação à restante
América latina, é o desdobramento das suas
reivindicações de transformação social radical
inseridas e sempre imbricadas, não sem dificuldades e
contradições, ao mesmo tempo na luta contra o esclavagismo, e na
luta anti-imperialista, para a libertação nacional (que se
reforça depois da asfixia do estado-nação independente com
a agressão norte-americana de 1898). Donde vem, por um lado, que a
consciência de classe do proletariado não se poderia formar em
Cuba fora de uma identidade multirracial, por outro lado, as lutas de classes
sociais eram potencialmente susceptíveis de fazer convergir componentes
com fortes interesses heterogéneos entre os quais os dos
elementos progressistas, nacionalistas ou radicais, da burguesia. A
análise das lutas do proletariado cubano encontra-se todavia
complexificada por três factos. i) O socialismo cubano, cujo caminho foi
na América Latina relativamente autónomo, mergulha as suas
raízes, pela imigração, em Espanha o que explica a
implantação do anarco-sindicalismo e do comunismo
libertário na classe operária urbana (mas não na rural
ganha pelo Partido Revolucionário Cubano independentista de José
Martí) até por volta de 1920. ii) A implantação
largamente rural do proletariado cubano (
macheteros
e operários das centrais açucareiras são assalariados)
coloca no centro das suas reivindicações não apenas a
subida de salários mas também a reforma agrária, que
ameaça directamente o latifúndio açucareiro, vector da
expansão imperialista do capital financeiro dos Estados Unidos (donde um
continuum
temático entre a questão agrária e luta anti-capitalista
e a possibilidade de uma aliança pluriclassista
camponeses-operários). iii) A estratégia dos dirigentes do
Partido Comunista Cubano, criado em 1925 por Júlio António Mella
e Carlos Baliño (co-fundador do PRC com Martí em 1892, seguido do
Partido Operário Socialista em 1904), vê a sua autonomia
continuamente limitada, à esquerda, pelo alinhamento segundo as
posições tácticas da URSS (Cuba torna-se o primeiro
país americano a examinar, em 1940, a participação dos
comunistas em um governo de coligação, seguindo o apelo à
frente anti-fascista lançada pela III Internacional em 1935), à
direita, pela tutela do Partido Comunista dos Estados Unidos sobre
influência Browderiana (o seu secretário geral, Browder, defendia
a colaboração pacifica com o imperialismo, abandona em 1944 o
marxismo-leninismo e dissolve o Partido nos Estados Unidos).
A violência do choque social provocada pela crise de 1929, que atinge
Cuba mais do que qualquer outro país latino-americano, lança as
bases de uma passagem à ofensiva das classes populares e de uma
articulação das acções operárias e
camponesas. Os movimentos insurreccionais de 1933, apoiados sobre estruturas
partidárias e sindicais integradas à escala nacional
(criação da Confederação Nacional Operária
de Cuba em 1925, do Sindicato dos operários da indústria
açucareira em 1932) e dominadas nomeadamente pelas figuras de Ruben
Martínez Villena e António Guiteras Holmes, conduziram à
greve geral, perturbando a ditadura
de
compradores
, e chegando mesmo a constituir-se sovietes (em umas trinta açucareiras,
em Mabay, Jaronú, Santa Lúcia...) com luta de armas na mão
de camponeses sem terra de
realengos
, com antigos
mambises
independentistas de 1895, contra a expansão do latifúndio no
Oriente. O poder, sob a tutela dos Estados Unidos de Roosevelt e de seguida ao
golpe de Estado militar de Batista, endureceu então a repressão:
assassínios de líderes operários, camponeses, estudantes,
intelectuais (Guiteras, Jesus Menéndez, Aracelio Iglesias, Niceto
Peres...depois Alfredo López, Mella...mais tarde Frank País...),
prisões e torturas, fuzilamento de manifestantes e esmagamento das
ocupações de terras, infiltração e
corrupção das direcções sindicais... A
acção revolucionária tornou-se extremamente difícil
e clandestina com o terrorismo de Estado (os aderentes do PCC eram de 150 mil
em 1945 e de 12 mil em 1958), e pelo seu trabalho de formação do
povo e de selecção dos seus dirigentes na luta, trará os
seus frutos alguns anos mais tarde. Era necessário ainda
«adicionar as forças» por um lado, ultrapassar as
divisões trabalhando sobre a constituição de uma frente de
classes congregando mesmo a burguesia mais radical, por um outro lado,
fragilizar e isolar a ditadura acentuando as contradições entre
as classes dominantes (latifundiários, açucareiros, exportadores)
nacionais e estrangeiras -, mas, sobretudo, lançar a luta armada cuja
dinâmica deveria
in fine
surpreender os Estado Unidos. É a esta tarefa que se dedica Fidel
Castro Ruz.
Após uma tentativa infrutífera (Moncada, 1953) e num contexto de
forte agitação social (greve dos operários do
açúcar em 1955, desemprego em 25-30%, miséria do
campesinato...), a vanguarda do movimento armado revolucionário
começa o combate em fins de 1956. A guerrilha, activada a partir das
montanhas da Sierra Maestra sob o comando militar e político integrado
de Castro, desenvolve uma guerra popular, de fundamento essencialmente
campesino, pouco a pouco apoiada pela estrutura experimentada e disciplinada
das organizações operárias. Patriotas humanistas e
democratas, resolutamente anti-imperialistas, acima de tudo preocupados com a
independência nacional e a justiça social (na verdade, já
comunistas), os guerrilheiros do Exército Rebelde que triunfaram em 1 de
Janeiro de 1959 conquistando o poder de Estado do «primeiro
território livre da América» evoluem rapidamente, sobre a
pressão de franjas cada vez mais largas de população
ganhas para a Revolução para as suas «medidas
incontestavelmente justas» e a notoriedade de dirigentes
inflexíveis e íntegros (Fidel e Raúl Castro, Camilo
Cienfuegos, Juan Almeida, Ernesto Guevara...), colocaram mão à
obra num projecto revolucionário profundamente original. Este,
inventado na acção, sem modelo teórico preconcebido nem
«filosofia revolucionária que justificaria a
inacção», mostrar-se-ia tendencialmente (necessariamente?)
comunista: «um sistema marxista, coerente, ou aproximativamente coerente,
onde colocamos o homem no centro» (E.Guevara). Os comunistas declarados
eram portanto raros nas fileiras da guerrilha: Raúl Castro, Guevara;
outros juntar-se-ão: Carlos Rafael Rodríguez em seguida
Raúl Roa (dois universitários marxistas); em alguns meses quase
todos o virão a ser. «Em Cuba, o socialismo, no início da
rebelião, não poderia ser outra coisa que o fruto de um
diálogo não institucionalizado, de homem para homem, entre a
vanguarda e o povo... Tudo isto não é conforme ao esquema de
Karl Marx, eu bem o sei. Nós violámos as leis da história
fazendo a nossa Revolução. Convinha não a fazer?»
(F.Castro).
Se por projecto comunista entendemos projecto marxista de
transição para o comunismo (com a abolição do valor
e do salário, abolição do Estado e
auto-organização dos produtores...) seja em Cuba, na União
Soviética na China popular ou outro país do «socialismo
realmente existente», essa não é verdadeiramente a
questão pois a luta dos povos em armas, para a sua
sobrevivência, contra a agressividade imperialista e os constrangimentos
provocados pelo sistema mundial capitalista devém um processo permanente
e a luta de classes continua a operar na Revolução, para
além da tomada do poder do Estado nacional. Um Estado é
(re)instituído em Cuba que se reclama, portanto, no termo de uma
radicalização da lógica do processo revolucionário,
do comunismo sem que seja possível de discernir um simples
reflexo de sovietismo. As grandes medidas da Revolução foram
levadas a cabo desde o início, antes da revelação do seu
«carácter socialista», tanto sobre o aparelho de Estado do
capital como sobre a estrutura de propriedade do capital, os quais, em Cuba,
estavam sob controlo dos Estados Unidos. Eles destruíram, em primeiro
lugar, o aparelho repressivo do anterior regime: dissolução do
exército, da polícia, dos partidos políticos,
instituição de tribunais populares para julgar os crimes da
ditadura sem «purgas», luta contra a corrupção e a
máfia... Eles transformaram de seguida, rápida e radicalmente,
as estruturas da formação social através: i) de escolhas
sociais fundamentalmente éticas: erradicação das casas de
jogo, da prostituição, do tráfico de droga, dos bairros de
lata, da mendicidade, do trabalho de crianças, da
discriminação racial; ii) de uma forte
redistribuição das riquezas: recuperação dos bens
adquiridos de modo ilícito; diminuição das rendas, do
preço dos medicamentos e dos livros, das tarifas dos telefones, da
electricidade, dos transportes, aumento do poder de aquisição das
camadas populares, contracção do leque salarial,
absorção do desemprego por grandes obras, racionamento e
distribuição igualitária dos produtos básicos com a
libreta
, supressão das importações de luxo,
instauração de sistemas de segurança social e de
pensões universais, campanha de alfabetização, gratuidade
do ensino; e, sobretudo, iii) de uma reforma agrária levada ao seu
término.
Na concepção da reforma agrária, os revolucionários
cubanos tiveram em conta tanto os riscos que lhe eram inerentes (o guatemalteco
Arbenz foi derrubado cinco anos mais cedo por ordem dos Estados Unidos) como os
sucessos tácticos das redistribuições de terras operadas
em 1958 pelo Exército Rebelde nas zonas libertadas que reuniu à
guerrilha os
guajiros
pobres contribuindo para a neutralização dos
latifundiários hesitantes. Embora ela não previsse a
estatização da propriedade fundiária transferida
para pequenos camponeses e para cooperativas -, a lei da reforma agrária
de 17 de Maio de 1959 suprime o latifúndio, atingindo frontalmente os
interesses dos grandes proprietários. A oposição, essa
sim violenta, nacional e estrangeira, ameaça com a asfixia não
apenas o campesinato, suporte vital para a Revolução, mas toda a
economia, se os Estados Unidos decidissem a não renovação
da quota açucareira, principal reserva de divisas do país. Sob
vivas tensões internas (atentados contra-revolucionários,
sabotagem da reforma agrária, exílios) e da pressão
crescente dos Estados Unidos (suspensão dos créditos comerciais,
exigência de indemnizações imediatas), um acordo de troca
de açúcar por petróleo é assinado com a
União Soviética em Fevereiro de 1960. A engrenagem de desafios e
respostas que se segue, a partir de Junho de 1960, e no decorrer da qual os
Estados Unidos resvala da extorsão económica (supressão do
Sugar Act,
embargo sobre o comércio) à agressão militar
(bombardeamentos, infiltrações armadas, tentativa de
desembarque), tem um efeito irreversível sobre o curso da
Revolução: o de aproximar Cuba da União Soviética,
o de acelerar a liquidação do capitalismo e a
estatização dos meios de produção pela
radicalização da reforma agrária,
nacionalizações maciças e centralização sob
a égide da Junta Central de Planificação e pela
consolidação do poder do exército e das milícias
revolucionárias reforço das forças armadas
revolucionárias, criação dos Comités de Defesa da
Revolução, acordo de defesa com a União Soviética.
De «nacional-libertadora», a Revolução cubana torna-se
numa das maiores apostas da confrontação entre as duas
superpotências, ao ponto de deslocar a guerra-fria até à
beira de uma guerra nuclear (crise dos mísseis, 1962).
Logo em 1960, Guevara declarou: «A Revolução cubana é
marxista». E F. Castro acrescentou, no mesmo ano: «ser
anti-comunista é ser anti-revolucionário». Em 16 de Abril
de 1961, no momento em que, na Praia Gíron, os cubanos fizeram recuar,
pela primeira vez os Estados Unidos na sua zona de maior influência, o
carácter socialista da Revolução é proclamado:
«Companheiros, operários e camponeses, esta é a
Revolução socialista e democrática dos pobres, para os
pobres, pelos pobres» (Castro), «a Revolução
anti-imperialista é a Revolução socialista». As
forças que contribuíram para derrubar a ditadura, Movimento 26 de
Julho (fidelista, proveniente da guerrilha da
Sierra Maestra
), Partido Socialista Popular (comunista, de raiz operária) e
Directório 13 de Março (estudantes e guerrilheiros essencialmente
urbanos), vão-se aproximar por iteração:
Organizações Revolucionárias Integradas, depois Partido
Unido da Revolução Socialista , para finalmente se
fundirem, em 1965, no seio do novo Partido Comunista de Cuba. «Pela
primeira vez na história do movimento e depois da III Internacional, um
partido comunista aceitou uma direcção política diferente
na luta pelo socialismo. E permanecerá para sempre inolvidável o
dia em que, com Blas Roca à cabeça, nós [comunistas]
apresentámo-nos todos diante de Fidel Castro como simples soldados duma
causa comum na qual ele foi para nós, como para todo o povo
revolucionário, o comandante em chefe...destinado a levar a bom termo
por um lado as tarefas ideológicas e políticas de Martí e,
por outro, as militares, de Gomez e Maceo [chefes da guerra da
independência de 1895-98]» (C. R. Rodríguez). «A
Revolução está para lá do que cada um de nós
fez, para lá das organizações que nós temos»
(Castro). Em Cuba, a Revolução teve necessidade de persistir
martista para se tornar marxista.
Este marxismo, inventivo, praticado antes de teorizado, compreendeu o
restabelecimento dos laços com a firmeza revolucionária:
«Fechar o marxismo em um catecismo é anti-marxista...o marxismo
não é uma propriedade privada inscrita numa conservatória
[nem] uma doutrina religiosa..., é a doutrina dos
revolucionários, escrita por um revolucionário, para os
revolucionários» (F. Castro). O acento é colocado sobre o
povo, lutando de fim em fim, só um revolucionário vai até
ao fim: «Um dia, o povo revolta-se contra a tirania, um dia o povo
está unido, um dia o povo já venceu, mas essencialmente o povo
trabalhador, o povo camponês, o povo estudante...a
Revolução é a libertação do enorme potencial
revolucionário do povo». Condições subjectivas e o
humanismo são ali reexploradas: «prosseguindo a quimera de realizar
o socialismo com a ajuda das armas apodrecidas legadas pelo capitalismo
(mercadoria, rentabilidade, interesse material individual, etc.), arriscamos a
chegar a um impasse... Para construir o comunismo, é necessário
transformar o homem [formar o «homem novo»] em simultâneo com a
transformação da base económica», «o marxista
deve ser o melhor, o mais completo dos seres humanos, mas acima de tudo um ser
humano, o militante de um partido que vive e vibra no contacto com as massas,
trabalhador infatigável que dá tudo ao povo, paciente mas nunca
indiferentes ao calor do contacto humano» (Guevara). Uma
posição democrática radical é aqui plenamente
assumida: «Nós dizemos que o nosso sistema é uma democracia
porque ele se apoia sobre todo o povo, porque ele oferece ao povo uma
participação sem equivalente em qualquer outra sociedade, porque
nele há discussão com o povo sobre todas as questões
essenciais... Embora se possa chamar de ditadura da imensa maioria do povo ou
ainda democracia operária ou popular» (F. Castro). A
ligação directa e constante entre os dirigentes e as massas
são aqui apresentados como uma condição
sine qua non
do aprofundamento do processo revolucionário. Segundo Raúl
Castro, «não existe um outro caso na história onde uma
revolução e a direcção de uma
revolução gozem de um suporte tão massivo do povo, de uma
confiança e de um entusiasmo tão inesgotável da parte das
massas, de uma unidade tão completa, que esta que nosso povo apresenta
à sua revolução, aos seus dirigentes». Mas sabemos
por experiência o que tais proclamações podem custar quando
elas não colocam simultaneamente a questão de uma
participação popular nas decisões, condição
de um processo de democratização efectivo, na ausência da
qual toda a revolução corre os mais graves perigos.
Cuba socialista, ajudada pela União Soviética permaneceu
não obstante uma economia mono-exportadora de açúcar.
Donde alguns concluirão um pouco apressadamente que a
«dependência» perdurou para além da mudança da
potência tutelar mesmo através ou transversalmente à
Revolução. É o que revela o «retorno ao
açúcar» (após um ensaio de
diversificação), é o peso das estruturas disformes e
ossificadas do subdesenvolvimento herdado do passado e os poderosos mecanismos
de envolvimento do mercado mundial. O esforço de desconexão
operada pela Revolução teve que levar em conta as
múltiplas e cumulativas restrições, de ordem
económica (pressão da falta de divisas sobre a balança de
pagamentos), técnica (falta de quadros e de experiência de
planificação), política (necessidade de preservar a
unidade camponeses-trabalhadores do açúcar como base social da
Revolução). Face ao bloqueio do Ocidente, a ajuda
solidária da União Soviética significou para Cuba o
esboço de desenvolvimento auto-centrado, não desarticulado, e a
realidade de um crescimento sustentado do produto durante um longo
período (em média anual e em termos reais superior a 3%
per capita
de 1960 a 1985), devido nomeadamente: ao controle nacional integral da
propriedade dos meios de produção e de acumulação,
à estabilidade das trocas e da cooperação no seio da CAME
(que integrou em 1972), à engrenagem de uma
industrialização adaptada às condições de um
pequeno país (industria agro-alimentar complexo
mecânico-mineiro-metalúrgico), à matriz de
repartição da mais valia e de importação viradas
para um progresso homogéneo da sociedade, a uma formação
técnica e científica colocada ao serviço das necessidades
do país...ou seja, exactamente o contrário do que é
oferecido à periferia pelas leis do sistema mundial capitalista.
O reconhecimento do apoio material e humano considerável e completamente
decisivo da União Soviética ao projecto de sociedade cubana (F.
Castro: «sem a ajuda resoluta e generosa do povo soviético, a nossa
pátria não poderia sobreviver ao confronto com o imperialismo...
nossa dívida de gratidão não se apagará em nossos
corações») não é recordado para deitar um
véu sobre sérias dificuldades encontradas na
realização do projecto: tendências para a
centralização administrativa e para o dogmatismo
académico, problemas de motivação e de eficácia,
complexidade de levar a cabo o poder popular e a
descentralização, imperfeição do controlo colectivo
real sobre a utilização dos meios de produção sob
propriedade estatal e problemas relacionados com o domínio do devir
pelos trabalhadores. Estas dificuldades, partilhadas por todos os
países do «socialismo real», representa para a
revolução cubana uma tarefa prática e teórica das
mais urgentes se ela pretende evitar a sorte dos países do ex-bloco de
Leste. É de sublinhar que, após 1994, a
rectificação impressionante da economia não
obstante mergulhada em uma crise gravíssima após o
desaparecimento do bloco de Leste transportando, mais uma vez, a prova
do compromisso de Cuba para com o projecto comunista e da sua autonomia
relativa em relação ao modelo soviético não permite
subestimar a amplitude dos desafios com que Cuba está confrontada hoje
em dia. Apesar do aperto do bloco norte-americano (
Torricelli Act
[1992],
Helms-Burton Act
[1995-96]) e dos perigos de abertura do mercado («período
especial»: turismo, transferências monetárias do exterior,
investimentos estrangeiros, com as suas consequências em termos de
dolarização e de desigualdades, até mesmo o risco da
reconstituição de uma burguesia nacional), Cuba moderna
não está desprovida de vantagens: massificação da
formação e dinamismo criativo, unidade nacional e enraizamento do
anti-imperialismo, consciência lúcida das aquisições
da revolução.
Visto que o produto mais tangível de quatro decénios de poder
revolucionários diz respeito às condições de vida
concretas, transparece nos dados estatísticos das
organizações internacionais sobre o desenvolvimento humano (PNUD,
OMS, FAO, UNESCO, ONU, BIT, CEPAL...). As suas classificações
colocam Cuba nos melhores lugares da América Latina, e mais geralmente,
do Sul, em matéria de: 1. saúde: segurança social,
esperança de vida, médicos, farmácias... 2.
educação: taxa de escolarização, êxito nos
exames, testes internacionais de conhecimento, bolsas... 3.
investigação: financiamento público, investigadores a
tempo inteiro, pesquisa fundamental, I&D aplicado... 4. igualdade:
igualização dos ganhos e dos patrimónios,
promoção social... 5. condição feminina:
diplomadas, professoras universitárias, parlamentares, assistência
à maternidade, direito a abortar... 6. situação da
infância: cuidados pré natais, creches, vacinação,
inactividade profissional... 7. trabalho: negociações
colectivas, protecção contra acidentes de trabalho, reformas,
pouco desemprego... 8. segurança: muito fracas taxas de mortalidade
por homicídio ou delinquência... 9. diferença
campo-cidade: acesso das zonas rurais à saúde, a água
potável, saneamento, demografia urbana moderada... 10. ambiente:
projectos ecológicos, repovoamento florestal... 11. cultura:
bibliotecas, publicações de livros e de jornais quotidianos,
filmes, desportos... e mesmo 12. alimentação: consumo garantido
a preços módicos, ligação
disponibilidades-necessidades, não há mortalidade por má
nutrição ou carências nutricionais (apesar da queda brutal
do número de calorias por habitante entre 1991-94).
Esta lista não exaustiva (poderíamos ajuntar os recuos do
racismo, da corrupção, ou da desvalorização do
trabalho manual), demonstra que o que muitos preconizam em vão para o
Sul foi realizado, com sucesso, por Cuba a seu modo. A despeito do
bloqueio e da crise, que afectou negativamente certos indicadores citados sem
alterar as prioridades da Revolução, Cuba continua um país
onde as condições de existência, de trabalho, de
desenvolvimento da esmagadora maioria da população são as
mais seguras e as mais justas.
Uma das dimensões mais originais e audaciosas do projecto comunista
cubano reside na sua concepção do «internacionalismo
proletário» e na condução de uma política
externa ao mesmo tempo suficientemente autónoma em relação
à União Soviética, e por ela sustentada financeiramente,
onde foi encontrar uma fonte de dinamização do próprio
compromisso revolucionário. A revolução cubana foi
por causa da inspiração ideológica do seu movimento de
libertação nacional (cristalizada no pensamento anti-imperialista
de Martí, mas igualmente no de Bolívar), por causa da
essência mestiça da sua herança cultural (latino-africana),
também por causa da sua força de integração (Che
foi internacionalista mas «estrangeiro» até 1959)
chamada a sair espontaneamente das suas fronteiras. Também a
determinação terceiro-mundista dos seus chefes conduziram-nos
à procura do confronto com os Estados Unidos directamente à
escala planetária, em múltiplas frentes. «
O imperialismo é um sistema mundial, é necessário
combatê-lo mundialmente...são necessários muitos vietnames
», declara Guevara em acordo com Castro, que contende, também ele,
contra a coexistência pacifica e legalista, segundo a via
foquista
até 1967 (ou seja, o revés boliviano e a criação
das OLAS, um ano após a Tricontinental em Havana). Face ao
desencadeamento da repressão contra as guerrilhas latino-americanas, e
da falta de uma resposta sino-soviética unida contra a agressão
dos Estados Unidos ao Vietname, é em África que se desenvolve a
estratégia internacionalista ofensiva de Cuba desde muito cedo (Janeiro
de 1962): ajuda à FLN de Ben Bella, à MNC de lumumbista, ao PAIGC
de Cabral... bem antes do MPLA de Agostinho Neto, dos revolucionários
etíopes, da SWAPO namibiana, da FRELIMO de Machel, da Polisário
sahauri, do CNR de Sankara (e mesmo das revoltas eriteias, à qual Cuba
reconheceu o direito à existência nacional)...De Abril de 1965
(entrada da 1ª coluna no Congo) a Maio de 1991 (retirada dos soldados de
Angola), um pouco mais de 380 mil cubanos combateram ao lado dos
revolucionários africanos -- «pela independência, a liberdade,
a justiça», dirá Mandela em 1991. Os seus últimos
sucessos comuns foram, após a vitória definitiva de Cuito
Cuanavale (1988), a manutenção da soberania de Angola, a
autodeterminação da Namíbia e o impulso dado à luta
do povo sul-africano para o fim do apartheid. Cuba conseguiu desenvolver uma
política externa excepcionalmente activa e ambiciosa, desorientando as
estratégias das superpotências, levantando muitas vezes pelo seu
valor emblemático a admiração dos povos
periféricos, conservando pilares princípios políticos e
éticos situados nos antípodas do cinismo.
Esses mesmos princípios, os do internacionalismo proletário e da
defesa dos humildes de todos os países (em que a «variante
económica» foi durante muito tempo o de levar o combate contra as
oligarquias latino-americanas e os oligopólios imperialistas até
ao mercado mundial do açúcar) situa-se hoje nos fundamentos das
missões de assistência conduzidas por Cuba envio de
médicos, professores, técnicos em uma trintena de países
pobres, ajuda técnica em caso de catástrofe natural,
formação de estudantes estrangeiros em Cuba e das suas
propostas de transformação radical da ordem capitalista mundial
anulação da dívida do «Terceiro Mundo»,
erradicação total da fome no mundo, condenação
sistemática da hegemonia unipolar dos Estados Unidos da
América...
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Economista, investigador no CNRS. In Dictionnaire Marx Contemporain, PUF,
2001. Tradução de Paulo Maurício.
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