Resenha
Livro destaca internacionalismo dos voluntários cubanos em Angola
por Mary-Alice Waters
"De arquivos velhos, nova história sobre o papel dos EUA na guerra
angolana", dizia o título de um artigo de Howard French,
correspondente do
New York Times,
que apareceu com destaque na
edição de 31 de Março. O
International Herald Tribune
apresentou o mesmo artigo a 2 de Abril com o título
"Intervenção em Angola/Novas provas: Arquivos velhos
contradizem versão dos EUA sobre a guerra".
O tema praticamente eclipsou a notícia de que a 30 de Março fora
assinado um cessar fogo preliminar entre os principais comandantes militares do
governo angolano e da União Nacional para a Independência Total de
Angola, ou UNITA como é conhecida. A UNITA, apoiada há muito por
Washington e anteriormente pelo regime do apartheid na África do Sul,
desde 1975 travava uma guerra civil para derrubar o governo angolano. Nem as
eleições celebradas em 1992 nem um acordo prévio subscrito
em 1994 puseram fim à guerra destinada a derrubar ou pelo menos a
enfraquecer o governo angolano, na qual morreram meio milhão de
pessoas, segundo se estima. O novo cessar fogo verificou-se apenas um
mês depois de Jonas Savimbi, dirigente principal da UNITA durante mais de
três décadas, ter morrido numa emboscada preparada pelas
forças do governo.
Ao falar de "novas provas", o jornalista do
Times
referia-se à
extensa documentação recolhida minuciosamente pelo professor
Piero Gleijeses, da Universidade John Hopkins, que contesta duas mentiras
promovidas por Washington e os seus apologistas durante mais de um quarto de
século. Uma destas mentiras é a afirmação de que
Washington interveio em Angola em 1975 só depois de Cuba ter enviado um
grande número de tropas a esse país a fim de apoiar o Movimento
Popular para a Libertação de Angola (MPLA) quando o país
estava em vésperas de independência em relação a
Portugal. A outra é o mito de que não houve
colaboração entre Washington e o regime do apartheid sulafricano,
o qual estava envolvido numa operação maciça para frustrar
a vitória das forças do MPLA. O obra de Gleijeses, com 576
páginas, chama-se
Conflicting Missions: Havana, Washington and Africa, 1959-1976
(Missões em conflito: Havana, Washington e África, 1959-1976)
e foi publicada pela editora da University of North Carolina Press.
Intervenções imperialistas
A 11 de Novembro de 1975 depois de mais de uma década de
crescentes guerras de libertação nacional nas colónias
portuguesas em África, as quais aceleraram a queda da decadente ditadura
fascista em Portugal o derrotado colonialismo português abandonou
a sua antiga possessão africana em Angola. O movimento de
libertação nacional mais forte, o MPLA, controlava a capital,
Luanda, e estava preparado para formar um novo governo. A 18 de Julho desse
ano o presidente americano Gerald Ford, partindo da suposição de
que um governo dominado pelo MPLA não seria suficientemente servil aos
interesses imperialistas norte-americanos na região, autorizou um
programa de operações encobertas para apoiar as forças
anti-portuguesas no país que se haviam mostrado mais dispostas a agradar
Washington e seus aliados.
A decisão de Cuba de enviar uns 480 instrutores militares em resposta
à solicitação de ajuda da direcção do MPLA
foi tomada mais de um mês depois. Não foi senão a partir
de Outubro que chegaram os primeiros voluntários.
A Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), com base no
Zaíre e dirigida por Holden Roberto, foi a principal
beneficiárias do programa ampliado de operações de
Washington, mas também foram incluídas as forças mais
débeis da UNITA com as quais a FNLA estava aliada nessa altura.
"Os restantes nessa companhia", assinala Gleijeses, "eram os
chineses, os quais tinham cerca de 200 instrutores militares que treinavam a
FNLA no Zaíre". Manobrando para se contrapor à
influência soviética na região e demonstrar suas
credenciais a Washington, também forneceram armas tanto à FNLA
como à UNITA.
Os governantes norte-americanos aumentaram em simultâneo a sua
colaboração encoberta com o regime do apartheid da África
do Sul, o qual havia escolhido a UNITA como sócio preferencial. Desde
carregamentos de armas até assessores, missões de treinamento e
operações em pequena escala no sul de Angola, a
intervenção sulafricana cresceu rapidamente a partir de meados de
1975, emparelhada com as acções de Washington.
A 14 de Outubro as Forças de Defesa Sul Africanas (SADF), fazendo-se
passar por mercenários, enviaram a coluna "Zulú" em
direcção ao norte de Angola rumo a Luanda, numa tentativa de
tomar a capital antes da data limite de independência de 11 de Novembro.
Ao mesmo tempo, as forças da FNLA, apoiadas por Washington,
avançavam para o sul a partir do Zaíre com o mesmo objectivo.
As tropas da FNLA apoiadas pelo imperialismo foram derrotadas decisivamente
pelas forças combinadas do braço militar do MPLA reforçado
por centenas de voluntários cubanos que haviam começado a chegar
a Luanda apenas 72 horas antes da batalha decisiva de Quifangondo. Ali
travaram o avanço da FNLA no dia 10 de Novembro, a poucos
quilómetros de Luanda, quando a bandeira portuguesa se levantava pela
última vez no palácio do governo. À meia noite, Agostinho
Neto, principal dirigente do MPLA, proclamou a independência de Angola.
Em fins de Dezembro, depois de as forças encabeçadas pelos
voluntários cubanos lhes terem infligido fortes derrotas, as tropas
sulafricanas viram-se obrigadas a retroceder. A 27 de Março de 1976, os
últimos veículos militares sulafricanos retiraram-se cruzando a
fronteira com a Namíbia. Foi no mesmo dia em que o Conselho de
Segurança da ONU, por uma votação de 9 a 0, com a
abstenção do aliado da África do Sul, Washington, condenou
o "acto de agressão cometido pela África do Sul contra a
República Popular de Angola" e exigiu-lhe que pagasse
indemnização a Angola pelos danos bélicos.
A "notícia"
A guerra estava longe de terminada. Somente 12 anos depois a África do
Sul foi forçada a retirar-se definitivamente, após
inúmeras batalhas e da mais esmagadora de todas as derrotas infligidas
às SADF, na batalha de Cuito Cuanavale em 1988, com as forças
combinadas do governo angolano e de voluntários cubanos. A
Namíbia obteve a sua independência e por todo o mundo ouviu-se o
estertor da morte do regime do apartheid.
A "notícia" apresentada pelo
New York Times
é que estes
factos, muitos do quais porta-vozes proeminentes de Washington haviam negado
durante muito tempo, agora são aceites como verdades estabelecidas.
"Historiadores e ex-diplomatas que estudaram os documentos dizem que estes
demonstram definitivamente que os Estados Unidos intervieram em Angola semanas
antes da chegada de qualquer cubano, e não depois conforme alega
Washington. Além disso, ainda que "naquela época se tenha
negado categoricamente uma ligação entre Washington e a
África do Sul, os documentos parecem demonstrar sua ampla
colaboração", informa French.
"A intervenção cubana verificou-se em resposta a uma
invasão encoberta financiada pela CIA através do vizinho
Zaíre, agora conhecido como República Democrática do
Congo, e da ofensiva da África do Sul em direcção
à capital utilizando tropas que se faziam passar por mercenários
ocidentais", assinala French. E mais: "a investigação
documenta uma coordenação significativa entre os EUA e a
África do Sul, desde missões conjuntas de treinamento até
pontes aéreas, e contradiz claramente o testemunho que Henry A.
Kissinger apresentou nessa época e em suas memórias", o
então secretário de Estado do presidente Gerald Ford.
No seu testemunho perante o Congresso norte-americano, em Janeiro de 1976,
Kissinger afirmou que "em Agosto [de 1975] os relatórios de
inteligência indicaram a presença de assessores, treinadores e
tropas militares soviéticas e cubanas, incluídas as primeiras
tropas cubanas de combate". Isto contradizia totalmente os
relatórios da CIA e outros relatórios de inteligência dessa
época que agora estão desclassificados, assinala Gleijeses.
Kissinger estava "rescrevendo a história".
Robert Hultslander, chefe da estação da CIA em Luanda entre
Agosto e Novembro de 1975, depois de ler o capítulo escrito por
Gleijeses acerca destes acontecimentos, enviou-lhe uma carta citada pelo
autor nas páginas de
Conflicting Missions
em que dizia: "Estou de acordo com a história conforme o
senhor a apresenta e com a sua conclusão acerca da ajuda proporcionada
pela forças cubanas, as quais, segundo creio, não chegaram em
números importantes até que nós tivéssemos partido
[a 3 de Novembro]... Ainda que desesperadamente desejássemos encontrar
cubanos sob cada arbusto, sua presença durante o meu exercício
foi invisível e limitou-se indubitavelmente a uns quantos
assessores". Hultslander obtivera aprovação da CIA para
esta carta antes de enviá-la, disse Gleijeses.
Cuba decidiu por sua própria conta
Conflicting Missions
também impugna o argumento promovido pelos apologistas de Washington de
que as tropas cubana na África actuavam como substitutos da União
Soviética, assinala French. Gleijeses documenta o facto de que a
direcção cubana tomou a decisão de enviar tropas para
ajudar as forças do MPLA na véspera da independência sem
consultar o governo soviético, e que o informou desta decisão
só umas horas antes que decolasse o primeiro avião com
voluntários. "Ansiosos para não descarrilar uma
distensão com Washington", escreve French, "os
soviéticos limitaram-se a oferecer 10 voos charter para transportar os
cubanos para Angola em Janeiro de 1976. No ano seguinte, Havana e Moscovo
apoiaram lados opostos numa tentativa de golpe de Estado em Angola",
quando forças do MPLA que pretendiam relações mais
estreitas com a União Soviética tentaram derrubar o governo de
Agostinho Neto. "Os cubanos desempenharam um papel decisivo na derrota da
rebelião", escreve Gleijeses.
Na preparação de
Conflicting Missions,
Gleijeses foi o primeiro académico não cubano que teve acesso
aos arquivos secretos das Forças Armadas Revolucionárias de Cuba.
Obteve uma vasta quantidade de documentos através da Lei de Liberdade
Informação, e trabalhou nos arquivos dos governos da
Bélgica, Grã-Bretanha, Alemanha Oriental e Ocidental. Realizou
inúmeras entrevistas com os principais protagonistas nos Estados Unidos,
em Angola, Cuba e em outros países, tais como Jorge Risquet, um membro
do Comité Central do Partido Comunista de Cuba que ocupou um papel
central na política africana de Cubana desde 1965 até hoje,
Lúcio Lara, dirigente do MPLA, e Joseph Sisco, subsecretário de
Estado norte-americano para assuntos políticos entre 1974 e 1976.
Congo
Um dos dirigentes cubanos com que Gleijeses falou diversas vezes, e passou a
respeitar profundamente, foi Victor Dreke. Em 1975 Dreke foi o segundo chefe
abaixo do comando de Ernesto Che Guevara no Congo durante a primeira
missão internacionalista de Cuba na África subsaariana. Em 1966
e 1967 foi chefe da missão militar cubana na Guiné-Bissau e na
República da Guiné, lutando junto às forças de
libertação nacional da Guiné-Bissau e Cabo Verde antes da
sua independência de Portugal.
Conflicting Missions
documenta a contribuição de Cuba a ambas as lutas.
O novo título de Pathfinder,
"Da serra de Escambray ao Congo"
cobre grande parte desta mesma história, até a missão
internacionalista com Che Guevara, num relato com o testemunho do
próprio Victor Dreke. O livro de Dreke é um bom ponto de partida
para os leitores de Perspectiva Mundial que desejem uma
introdução sólida não só sobre a
Revolução Cubana e os homens e mulheres que a fizeram como
também sobre a amplitude e a envergadura do compromisso de Cuba com as
forças de libertação nacional na África. É
não só uma documentação demolidora, redigida com
clareza excepcional, como também se lê como se fosse uma
história de aventuras.
Resenha publicada em
Perspectiva Mundial
, Junho de 2002, vol. 26, nº 6
O capítulo 1 do livro pode ser visto em
http://www.ibiblio.org/uncpress/chapters/gleijeses_conflicting.html
Clique aqui
para ver o mapa do centro-sul da África (38 kB).
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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