Aprofunda-se a crise da dívida da Europa
No último fim de semana, a Fitch a grande companhia de
classificação que, com as suas duas companheiras, a Moody's e
a Standard and Poor's, dominam o negócio da avaliação do
risco de instrumentos de dívida deu um passo altamente
publicitado. Ela degradou a possibilidade de crédito das dívidas
soberanas de muitos países europeus. Que espectáculo! Estas
companhias de classificação distinguiram-se pelas suas
risíveis imprecisões (para ser extremamente polido) nas
avaliações dos riscos associados a títulos apoiados por
activos. Aquelas avaliações contribuíram para a crise
económica que estamos a atravessar. Agora supõe-se que o mundo
esteja pendente ao invés de se rir dos seus
relatórios de crédito.
Não há dúvida de que as dívidas da Europa e
as tensões sociais que giram em torno delas são problemas.
Governos a entrarem em colapso na Grécia, Itália e Espanha
mostram isso, dentre outros sinais do óbvio. Degradações
da dívida europeia feitas pelas companhias de
classificação são como degradar a probabilidade de bom
tempo quando todos nós já estamos a correr para fechar as janelas
para impedir a entrada da chuva.
Pior ainda são os habituais relatos dos media e as discussões
quanto à acção da Fitch. Eles mais uma vez estão
cheios de lúgubres referências de passos que os governos europeus
devem tomar para "satisfazer os mercados". Esta estranha
abstracção metafórica "os mercados"
é retratada como uma espécie de monstro Frankenstein que
ameaça comer os filhos da Europa a menos que os pais apoiem programas de
austeridade do governo. Esses programas de austeridade, naturalmente, já
estão a fazer sofrer os pais e os seus filhos.
Vamos por um momento dar um passo atrás quanto à
utilização ideológica ou melhor,
propagandística da expressão. "Os mercados"
é um dispositivo conceptual que serve para esconder e disfarçar
aquelas corporações particulares que estão atrás e
trabalham os mercados para perseguirem os seus interesses. A linguagem dos
políticos e dos mass media faz isto aparecer como se a busca do
auto-interesse daquelas corporações fosse operações
maquinais de alguma instituição fixa inalterável.
Precisamos lembrar que mercados, tal como todas as outras
instituições, são invenções humanas
compostas por uma mistura de aspectos positivos e negativos e abertas à
mudança. Afinal de contas, os efeitos mistos dos mercados tornou-os
objectos de profunda suspeição e cepticismo pelo menos desde
Platão e Aristóteles que há milhares de anos criticaram os
mercados como inimigos da comunidade.
Hoje os principais credores de governos europeus são bancos, companhias
de seguros, grandes corporações, fundos de pensão, alguns
outros governos (principalmente não europeus) e indivíduos ricos.
Quando os políticos e os media falam da necessidade de governos europeus
para "satisfazer os mercados", o que eles querem dizer é
satisfazer aqueles credores. As influências principais entre aqueles
credores são os grandes bancos que representam e/ou aconselham todos ou
a maior parte dos restantes. Os grandes bancos europeus foram e são os
principais receptores dos custos salvamentos efectuados pelos governos europeus
desde 2008. Na verdade, aqueles salvamentos aumentaram gravemente o
endividamento de governos europeus porque estes pagaram tais salvamentos
através da tomada de empréstimos.
Os salvamentos funcionaram na Europa em grande medida tal como nos EUA. Bancos
que haviam especulado gravemente em títulos apoiados por activos e seus
derivativos associados até o fim de 2008. Quando tomadores de
empréstimos (ex. devedores hipotecários nos EUA) incumpriam cada
vez mais empréstimos a que estavam associados títulos apoiados
por activos, os valores destes últimos entraram em colapso. Os bancos
cessaram de confiar uns nos outros quanto ao reembolso dos empréstimos
feitos entre si o que é central para o sistema global de
crédito porque todos os bancos sabiam que todos eles
possuíam enormes quantias de títulos apoiados por activos cujos
valores haviam entrado em colapso. Cada grande banco temia que os outros
tal como ele próprio pudesse ter de incumprir nas suas
dívidas.
As transacções inter-bancárias cessaram e com isso
produziram um "congelamento" de crédito ou
"esmagamento". Nas economia capitalistas modernas, negócios,
governos e consumidores tornaram-se todos mais dependentes do crédito do
que nunca. Tal congelamento ou esmagamento ameaçava portanto um
maciço não funcionamento económico (colapso).
A solução foi governos intervirem maciçamente para
descongelar o sistema de crédito. Eles fizeram-no em múltiplas
frentes simultaneamente, tão grave era a crise. Primeiro, governos
emprestaram gratuitamente aos grandes bancos que não podiam tomar
emprestado uns com os outros. Segundo, governos garantiram várias
espécies de empréstimos e dívidas de modo a que bancos que
temiam conceder empréstimos retomassem a operação.
Terceiro, governos tomaram emprestado maciçamente a prestamistas
privados especialmente bancos de modo a que estes tivessem uma
saída segura e lucrativa para os seus fundos emprestáveis. Destas
maneiras, como agente do povo, governos europeus descongelaram e
relançaram um sistema de crédito privado em colapso com enorme
despesa pública. Eles portanto permitiram a sobrevivência e a
lucratividade contínua dos bancos e dos seus grandes clientes.
Durante os últimos 12 meses, aproximadamente, aqueles bancos e seus
clientes libertos pelos salvamentos dos governos de
preocupações acerca de empréstimos uns aos outros
começaram a preocupar-se quanto aos seus empréstimos aos governos
europeus. Eles temem uma coisa: públicos excitados e raivosos. O povo
nas ruas pode não permitir que os seus governos imponham
"austeridade". O povo pode não aceitar cortes do governo no
emprego e serviços públicos básicos para poupar dinheiro e
reembolsar credores que foram salvos a expensas públicas apenas um
momento atrás.
Assim, os credores agora estão a pressionar governos para garantir a
segurança da dívida nacional (para si próprios). A
degradação da Fitch faz parte dessa pressão. As
referências a "satisfazer os mercados" simplesmente
disfarçam o processo totalmente ultrajante. O drama da crise
aprofunda-se: a pressão dos credores sobre os governos aumenta
políticas de austeridade que aumentam a oposição em massa
que assusta os credores os quais aumentam a sua pressão sobre os
governos...
As contradições condutoras deste ciclo vicioso agitam tudo na
sociedade europeia e na economia ligada inter-ligada à Europa. Governos
europeus temem os credores e temem o aumento das suas oposições
internas à austeridade. Eles manifestam irritação contra a
Fitch e outras companhias de classificação por tornarem o seu
dilema pior. Mas não têm solução, inclinam-se a
"satisfazer os mercados" e portanto prosseguem com a austeridade aos
trancos e barrancos. Tal como animais congelados diante de faróis no
desastre que se aproxima, os actores neste absurdo drama europeu emitem
relatórios de crédito redundantes (Fitch), mantêm
infindáveis e infrutíferas conferências e cimeiras
(Sarkozy, Merkel et al.), crispam-se com ansiedade quando proliferam greves
gerais e governos cambaleiam e caem. Enquanto isso, fantasmas como "os
mercados" assombram as análises dos media e as
declarações de políticos, o que serve principalmente para
fragmentar e ocultar o que está a acontecer.
21/Dezembro/2011
[*]
Professor emérito da Universidade de Massachusetts-Amherst e professor
visitante no Programa de Graduação em Assuntos Internacionais da
New School University, Nova Yok. Autor de New Departures in Marxian Theory
(Routledge, 2006) e do filme documentário Capitalism Hits the Fan,
www.capitalismhitsthefan.com
. Sítio web:
www.rdwolff.com
.
O original encontra-se em
http://mrzine.monthlyreview.org/2011/wolff211211.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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