Travar a queda livre ao invés de um plano para a "Boa Europa":
–A "Modesta proposta" defendida contra a poderosa crítica de C. Flower

por Yanis Varoufakis [*]

C. Flower escreveu uma crítica intitulada "Nova garrafa, velho vinho keynesiano" acerca da minha palestra do Shellbourne Hotel (14/Setembro/2011) bem como ao essencial da nossa "Modest Proposal" . Reproduzo esta crítica aqui, na íntegra, seguida pela minha réplica. Antes de mais nada, deixe-me agradecer a C. Flower por tomar o seu tempo para escrever o que é uma crítica extremamente importante.

O velho vinho keynesiano em nova garrafa (o texto de C. Flower):

Essencialmente, para todos [como Varoufakis) com posição crítica dos economistas da corrente principal, do BCE e do EFSF, o seu próprio ponto de vista é que ainda se pode fazer o capitalismo funcionar através da adopção de soluções técnicas correctas. Ele advoga um título do BCE a 20 anos para limpar toda dívida acima do nível do acordo de Maastricht, juntamente com um banco de investimento apoiado pelo BCE que levante a quantidade de finanças encaixada em firmas europeias. Recomendo a sua palestra, a qual dá um relato histórico influenciado pelo marxismo do desenvolvimento do capital financeiro influenciado que é de leitura muito valiosa, pois mostra os vários meios pelos quais os capitalismo tomou emprestado do futuro e produziu capital fictício numa tentativa de suster um sistema gravemente enfermo, em estado de doença terminal, que atingiu o fim do seu limite histórico.

Mas fico forçosamente impressionado pelo que Varoufakis deixou de fora da sua análise. Ele descreve bem o modo como a bolha de crédito maciça foi criada, numa tentativa de suster o sistema, e que agora está a entrar em colapso, deixando na bancarrota todo banco da Europa. Ele também descreve bem o pânico e perplexidade do "líderes" financeiros da UE. Mas não há qualquer referência para a transferência da indústria manufactureira para o Leste e para o enorme aumento na capacidade produtiva global e o aumento dos custos de produção que veio com a tecnologia. Fundamentalmente, a crise económica mundial é de suber-produção e de taxa média de lucro deprimida, não de sub-investimento. Um par de fábricas chinesas, do tamanho de grandes cidades, pode produzir canecas (mugs) para todas as necessidades do mundo, imediatamente. Mas há tanta produção altamente competitiva, de modo a que muitas companhias sejam expulsas do negócio, que em média muito pouco, se é que algum, lucro é feito. O capitalismo também move constantemente o dinheiro de muitos para poucos, com cada vez maior desigualdade e isto também estrangula a economia pois a maior parte do povo tem cada vez menos para gastar. Mas a redistribuição pela tributação, por si própria, não pode ultrapassar os problemas da super-produção e da taxa de lucro reduzida. E enquanto os capitalistas estiverem no poder, eles resistirão a qualquer redistribuição. Porque o lucro vem do trabalho de pessoas (físico e mental), o único caminho que o capitalismo tem para elevar a taxa de lucro é cortar salários e fazer com que as pessoas trabalhem mais arduamente (idade de reforma reduzida, prolongamento de horas, intensificação do trabalho). Estamos a ver que isto está a ser aplicado por toda a Europa e aos EUA. Temos imensa capacidade produtiva global e meios de financiamento e organização anárquicos e montados na crise.

Assim, no próprio momento histórico no qual a alimentação, educação e habitação para toda a gente parece ser alcançável, números enormes de pessoas anteriormente bem pagas estão a ser lançadas na pobreza. As respostas repousam não na emissão de mais dívida e no financiamento de investimento cada vez mais competitivo. Antes de considerar os bancos, precisamos salvaguardar a produção e as qualificações das pessoas. A produção precisa ser organizada e distribuída de modo a que bastante do que é produzido atenda as necessidades de toda a gente – se isso puder ser feito em dois ou três dias de trabalho por semana, as pessoas deveriam ser capazes de se deterem e brincarem com seus filhos, fazerem desporto e música, voltarem à educação ou o que quer que seja que precisem. Para isto acontecer, os principais meios de produção – fábricas, terra, minerais e recursos petrolíferos – precisam estar sob o controle e a propriedade da maioria e desenvolver-se no interesse da maioria.

Isto é algo que nunca ouvi Varoufakis dizer e estou quase certo de que nunca dirá.


Utilizando o meu direito de resposta, começarei por concordar em que nem a minha palestra no Shellbourne Hotel nem na verdade o texto da nossa Modest Proposal enfatiza os males crónicos do capitalismo. Dito isto, não é verdade que eu não tenha dito (ou que nunca direi) qualquer coisa sobre o assunto. Como prova, ofereço abaixo uma pequena, extremamente eclética, antologia de citações relevantes que me absolvem, confio, do alegado pecado da omissão. Então, por que é que na minha palestra no Shellbourne Hotel deixei a maior parte destas ideias de fora, relegando-as para as margens das minha reflexões?

A resposta é: Porque estes não são tempos revolucionários. Alguns podem pensar que chegámos a um momento da história em que é imperioso os progressistas emitirem um toque de clarim para a substituição do capitalismo por um modo de organizar a produção social mais racional e mais justo. Que chegou um momento do socialismo ressuscitado. Não é a minha visão.

Por que não? Primeiro, porque a esquerda permanece derrotada, a seguir a 1989. Nossa visão é que o sistema sócio-económico mais racional para substituir realmente o capitalismo existente permanece nublado e inconvicente. Segundo, e crucialmente, porque um período durante o qual o capitalismo está em queda livre não é um período afável para projectos progressistas. As únicas forças que podem ganhar impulso, organizar e conquistar são as forças da xenofobia, discórdia e regressão. Isso é o que 1929 no ensina [1] . Foi também uma lição que muitos de nós aprenderam, de modo duro no Reino Unido, durante o fim da década de 1970 e princípio da de 1980 quando a ascensão do desemprego debilitante (sob a orientação capaz da sra. Thatcher) liquidou toda a oposição social aos parasitas no poder e a uma bolha financeira-imobiliária maciça que efectuou uma igualmente maciça redistribuição do rendimento sob o disfarce da modernização e "racionalidade".

Se estiver certo, o custo humano de permitir que o capitalismo atire no seu próprio pé (do modo como está a fazer hoje) será enorme e, no fim, quando o pó tiver assentado, restará muito pouca energia entre aqueles que poderiam efectuar mudanças progressistas avançarem.

Por esta simples razão, tenho de tornar-me um advogado da importância de salvar estruturas que desprezo, como o euro-sistema. Pois se o euro entrar hoje em colapso, acena uma década de 1930 pós-moderna durante a qual prevalecerá a mais asquerosa parte da Europa. Em suma, sinto nos meus ossos que, tal como durante a Segunda Guerra Mundial progressistas e conservadores esclarecidos tinham uma tarefa comum (unirem-se contra o nazismo), assim também agora precisamos urgentemente construir uma vasta coligação que detenha a queda livre. Uma vez detida, e este é precisamente o objectivo da Modest Proposal, podemos retomar o debate entre membros daquela coligação, mesmo nos hostilizarmos, ao examinar o que vem a seguir; ao que deve assemelhar-se a Boa Sociedade.

Em resumo, a Modest Proposal não é um plano para uma Europa melhor e racional. Ela é ao invés um plano para deter a queda livre no buraco negro no fundo do qual jaz apenas a xenofobia e a miséria agravada. Ela procura utilizar as instituições existentes, muitas vezes ridículas (exemplo: o EFSF, mesmo o cronicamente regressivo BCE) para esse objectivo. Posso estar errado na minha estimativa do que precisa ser feito. Mas, em minha defesa, não é pelo hábito de ignorar irracionalidades inerentes ao capitalismo.

Segue-se a prometida curta antologia das minhas visões sobre os viéses inerentes do capitalismo.

  • Em 1991 publiquei um livro, Rational Conflict (Blackwell), destinado a argumentar que conflito, ineficiência e restrições à liberdade são os resultados inevitáveis (e portanto racionais ) da irracionalidade fundamental do capitalismo.

  • Em 1995 concluí assim um documento publicado na Science&Society (intitulado "Freedom within Reason" ): "Naturalmente todos nós oprimimos e fomos oprimidos em alguma etapa das nossas vidas. Mas o ponto crucial é a presença de padrões sistemáticos de exploração construídos no interior de relações sociais relativamente primitivas. A estrutura de tais relações sociais alimenta os componentes de interpretações constitucionais não livres, ou axiomáticos, liberdade simbólica do que é inatingível sob a organização sócio-económica existente. Se a Razão é o produto da História, como Hegel afirmaria, então o capitalismo estabelece limites dentro dos quais Liberdade e Razão não podem respirar".

  • No meu livro de 1998, Foundations of Economics: A beginner's companion (Routledge) argumentei (ver Capítulo 10) que a ambição social-democrata de civilizar o capitalismo corre contra uma parede de tijolo porque "... tentativas para abrandar a fome do capitalismo por desigualdade danifica a maquinaria da acumulação de capital que a mantém em andamento. Portanto eles nunca terão êxito em civilizar a besta porque as intervenções do Estado serão simultaneamente demasiado fracas como um contra-peso à exploração sistemática que avança e excessivas desde que eles venham a atrapalhar o mecanismo de auto-correcção natural do capitalismo (isto é, as altas periódicas de desemprego e a desigualdade/pobreza resultante)".

  • Além disso, no mesmo livro de 1998, escrevi: "A capacidade contínua [do capital internacional] para extrair ... 'rendas' depende de uma colcha de retalhos de países anteriormente subdesenvolvidos em industrialização os quais coexistem com a maciça pauperização do Terceiro Mundo bem como com a des-industrialização das regiões industriais mais antigas do Primeiro Mundo. Através deste prisma, o comércio internacional é uma das tábuas de um sistema capitalista internacional que tem êxito sobre a exploração e o desperdício dos recursos naturais e humanos do mundo em proporções monumentais".

  • Em outro ensaio também publicado em Science&Society (2008) e intitulado "Capitalism According to Evolutionary Game Theory", escrevi: "A noção de que o capitalismo é eficiente mais injusto é afastada furiosamente, substituída pelo retrato de um sistema social que está uma etapa evolucionária atrás da capacidade produtiva da maquinaria que ela, por si própria, trouxe à realidade. Devido a este 'retardamento evolucionário", o capitalismo desperdiça recursos humanos (na forma de desemprego crónico e flutuante), desvaloriza a humanidade (ao reduzir nossas relações ao fetichismo da mercadoria), restringe a liberdade real para a maior parte e exige sacrifícios humanos sobre o seu altar (ex. guerra) a fim de manter algum grau de compatibilidade entre (i) o que a economia pode produzir e (ii) o que os consumidores têm poder de compra para absorver".

  • Construindo sobre este argumento, o Capítulo 4 do nosso livro recente Modern Political Economics: Making sense of the post-2008 world (Routledge, 2011, em co-autoria com J. Halevi e N. Theocarakis), afirma que: "Ninguém concebeu (designed) o capitalismo. Ele simplesmente evoluiu, libertando-nos no processo de formas mais primitivas de organização social e económica. Ele promoveu máquinas e métodos que nos permitiram assumir o comando do planeta. Autorizou-nos a imaginar um futuro sem pobreza em que a nossa vida já não está à mercê de uma natureza hostil. Mas, ao mesmo tempo, assim como a Natureza desovou Mozart e o HIV utilizando o mesmo mecanismo indiscriminado, o capitalismo também produziu forças catastróficas de discórdia, alienação e degradação ambiental. Gerou crise agudas (como o próximo capítulo ilustrará) e produziu, na mesma cavalgada, novas formas de riqueza e de privação. Em termos evolutivos, o capitalismo, e em particular o modo como enforca a produção no trabalho no contrato de trabalho, é um sistema demasiado primitivo. Como o próximo capítulo argumentará, calamidades como o Crash de 2008 e o colapso da Conferência de Copenhagen em 2009 [NR] são o topo do iceberg que se funde. Menos bem visto é o esbanjamento de recursos naturais e humanos do capitalismo, assim como sua invasão da liberdade genuína. A razão principal? Porque o capitalismo está numa etapa evolutiva e por trás da capacidade produtiva da admirável 'maquinaria' que ele próprio criou. A tarefa actual da humanidade é, portanto, fazer o que um vírus não pode fazer: Conceber nossa evolução contínua e dirigir o seu caminho numa direcção da nossa escolha, ainda que apenas em benefício do planeta.

  • Finalmente, no meu livro mais recente, The Global Minotaur: America, the True Origins of the Financial Crisis and the Future of the World Economy (Zed Book, 2011), escrevi (ver Capítulo 2): "Se o valor requer agência humana, então acabámos de localizar uma grande fonte de instabilidade enterrada profundamente nos fundamentos das nossas sociedades de mercado: Quanto maior êxito tiverem as corporações na substituição de trabalho humano por máquinas magníficas, e ao disciplinar o trabalho humanos para cumprir a eficiência da máquina, mais baixo o valor que as nossas sociedades estarão a produzir. Eles podem deitar cá para fora enormes quantidades de bens e brilhantes artefactos que todos nós almejamos. Só que o valor desta avalanche de coisas boas estará tendendo a zero, assim como a economia da máquina em The Matrix é uma zona de livre de valor, apesar do vasto produto elaborado pela sua força de trabalho mecanizada.

[1] Deixe-me também dizer que rejeito a visão simplista de que 1020 e 2008, as duas principais crises do capitalismo, possam ser explicadas adequadamente como o resultado da queda da taxa de lucro. Não quero aborrecê-lo aqui mais do que já o fiz, os leitores interessados podem ver o Capítulo 5 de Modern Political Economics: Making sense of the post-2008 world , Routledge, 2011.

[NR] É absurdo por lado a lado e em pé de igualdade, como faz o autor, um problema crucial como o crash de 2008 e um falso problema como o do mítico aquecimento global tratado na conferência de Copenhaga. Ver A impostura global .


O original encontra-se em yanisvaroufakis.eu/2011/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
29/Set/11