Nestes tempos de expansão ilimitada das grandes plataformas digitais, um novo espectro assombra o mundo do trabalho: o espectro da uberização. O que provocou o surgimento desse novo fenômeno global, que afeta tão profundamente o mundo do trabalho?
Sua gênese tem várias causas, mas remonta sobretudo à crise estrutural do capital, desencadeada em 1973, após a derrota das lutas operárias e sociais de maio de 68 na França (ações que se estenderam a vários países), o ano que chocou o mundo. Esta crise agravou-se entre 2008 e 2009 e agravou-se, mais recentemente, com o surto da pandemia da COVID-19.
As consequências deste cenário estão a espalhar-se como uma praga. Impulsionados por uma tríade destrutiva que combina neoliberalismo, reestruturação produtiva permanente e financeirização, assistimos à explosão do desemprego e à expansão das grandes plataformas digitais, uma simbiose responsável pelo surgimento da uberização.
Os resultados são evidentes: informalidade ilimitada e absoluta falta de proteção social em matéria de legislação trabalhista, que nos empurraram para o trabalho uberizado, um modelo de trabalho que serviu de bálsamo para as grandes plataformas digitais, ao reintroduzir jornadas de trabalho ilimitadas que evocam os séculos XVIII e XIX, o que acarretou, entre muitas consequências prejudiciais, a destruição sistemática do corpo produtivo dos trabalhadores. [1]
Basta observar o número de acidentes e mortes diárias na cidade de São Paulo, ou mesmo a precariedade das suas condições alimentares: uma aberração, exemplificada pelo facto de os trabalhadores distribuírem comida cujo aroma só podem cheirar.
Assim, pouco a pouco, em silêncio e sem alarde, nasceram as «novas» formas de trabalho. A jogada mestre veio depois, pois era urgente iniciar uma «nova» fase, ainda mais precária, impulsionada por grandes escritórios de advocacia corporativa global, sem mencionar a compulsão apressada dos diretores executivos, uma combinação que finalmente consumou o engano.
Para que o golpe fosse bem-sucedido, era necessário criar uma aparência de autonomia, mascarando o trabalho assalariado e apagando a sua verdadeira natureza. Assim foi criada a uberização do trabalho.
Beneficiando-se diretamente da expansão dos algoritmos e do trabalho digital, as grandes plataformas enfatizaram simultaneamente a heterogeneidade presente nos diferentes tipos de trabalho, para melhor “ocultar” a característica nefasta de homogeneidade que as distingue: o exercício da precariedade ilimitada da força de trabalho.
É compreensível, então, que as plataformas de predação «moderna» se recusem a respeitar os direitos laborais e, portanto, degradem atividades que já eram limitadas e intensifiquem ainda mais os seus níveis de exploração.
Considere o testemunho de um entregador de motocicleta do Rio de Janeiro sobre trabalhar em plataformas:
“… as empresas eram subcontratadas e prestavam serviços a grandes redes de entrega, como Bob’s, McDonald’s e Girafas. Então, tínhamos direitos trabalhistas e ganhávamos R$4 500 [€720] a cada duas semanas. Hoje, para ganhar R$4 000 [€640], tenho que trabalhar dois turnos. (…) Trabalhava até às quatro da manhã. Porquê? Porque hoje ganhamos o equivalente a uma gorjeta. Para que saibam, ontem fui buscar uma encomenda no centro do Rio de Janeiro para levar a Humaitá, Lagoa e Zona Sul por R$ 4,90”.[2]
Mais uma vez, o testemunho de um motorista de transporte:
“Hoje trabalho pelo menos 12 horas. Normalmente, ultrapasso esse número e chego às 16 ou 18 horas. Já houve dias em que cheguei a trabalhar 32 horas seguidas. Mas às vezes é uma questão de objetivos; numa semana você tem uma conta extra, tem algo com um propósito, e acabo duplicando um pouco mais. Mas pelo menos são 12 horas”. [3]
O que as grandes plataformas digitais não imaginaram é que, ao introduzir a escravidão digital [4] no século XXI, poderiam impulsionar ações e lutas promovidas pelo novo proletariado dos serviços da era digital, como o encerramento de aplicações em 1 de julho de 2020, iniciado em plena pandemia, e, mais recentemente, em 31 de março e 1 de abril de 2025, esta última data simbolicamente escolhida por ser o Dia da Mentira.
Se o novo espectro da uberização permeia o mundo do trabalho, surge outro espectro: o da insubordinação presente nos freios dos aplicativos.
[1] Ver a investigação realizada pelo Grupo de Investigação Metamorfose do Mundo do Trabalho (GPMT) do IFCH/UNICAMP, em Antunes, R. (org.), Icebergs à deriva: trabalho em plataformas digitais (São Paulo, Boitempo, 2023) e Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0 (São Paulo, Boitempo, 2020).