A produção social de doenças e de crises
por Cássio Arruda Boechat
[*]
Até aqui, o
agronegócio
não parou durante a pandemia de coronavírus e se vangloria de
ser responsável por ter evitado uma crise econômica que chegou a
ser anunciada como a pior da história, com prognósticos que
apontavam para uma queda superior a 8% do PIB no Brasil. Com isso,
reforça-se a ideologia vitoriosa do assim chamado "agro", que
se coloca como a cura para os males nacionais. É bom lembrar,
porém, do
phármakon,
de onde provém a palavra "farmácia", que pode curar
ou intoxicar, sendo ao mesmo tempo remédio e veneno. Ou seja, procuramos
uma reflexão de até que ponto a suposta solução
é parte da causa dos problemas.
Visitando recentemente o interior paulista, em meio a uma seca terrível,
observei alguns poucos trabalhadores aplicando defensivos num canavial
recém-cortado por monstruosas máquinas em terras arrendadas por
uma grande usina francesa. O cenário era inóspito, desabitado e
soando a desértico. Queimadas despontavam no horizonte. Os homens,
irreconhecíveis, caminhavam mascarados sob o sol ardente. Alguns com
tubos de PVC na mão jogavam alguma coisa aqui e ali pelo interior dos
tubos até o chão; outros, com um recipiente atado às
costas, aplicavam um líquido periodicamente. Faziam a chamada
"catação": matavam mato e formigas, respectivamente,
aplicando produtos químicos na entrada dos formigueiros e nas touceiras
de capimcolonião (que tem o hilário nome científico
Panicum maximum
). "Inimigos" persistentes da produtividade da lavoura.
A cena poderia representar a solução para a angústia
antediluviana do lavrador, expressa pelo viajante
Auguste de Saint-Hilaire
(1779-1853), que teria afirmado antes, claro, de ser lembrado por
Macunaíma que "ou o Brasil acaba com a saúva, ou a
saúva acaba com o Brasil". A bem da verdade, como os
próprios mascarados me contaram, não se tratava de acabar com as
formigas ou com as ervas daninhas, mas de controlá-las.
Independentemente de quanto veneno é posto, elas voltam todo ano.
Ingênua pergunta: "Mas e o veneno, para onde vai?".
Silêncio
A solução ali dada, desse modo, não
parece ser suficiente ou definitiva para acabar com "nossos"
problemas, cujas raízes estão muito além das saúvas
e podem estar também nas formas de enfrentarmos as doenças e as
crises.
A memória e os estudos nos permitem voltar no tempo para comparar aquela
cena da profilaxia recente de formigas e mato com algumas outras profilaxias,
inclusive de trabalhadores, de um passado não muito distante, e avaliar
a produção social de doenças e de crises no
agronegócio.
Próximo de onde se encontra aquele canavial, vi quando criança,
assombrado, uma cena semelhante àquela da chegada dos federais
norte-americanos (seriam da Nasa?) para cercar a casa suburbana dos meninos que
acolheram o E.T. no filme de Spielberg. Completamente cobertos, técnicos
da Fundação de Defesa da Citricultura (Fundecitrus) vinham isolar
um pomar e erradicar laranjeiras num enorme raio para evitar a
propagação do cancro cítrico, causado pela bactéria
Xanthomonas citri.
Naquela época, o noroeste de São Paulo tinha mais laranjais do
que canaviais. A paisagem era dominada por laranjeiras enfileiradas até
onde a vista alcançava. Uma medida tão dura como aquela da
erradicação chamava a atenção para a
ocorrência de epidemias que afetavam a
"população" de árvores. Depois de arrancadas as
laranjeiras infectadas e suas vizinhas, a pilha de troncos ainda carregados de
laranjas era incinerada em altas fogueiras. A área isolada ficava em
quarentena, e os técnicos vestidos de branco da cabeça aos
pés rodavam todas as propriedades produtoras em buscas de novos casos.
Ao menor indício de cancro, estava dada a sentença.
Esse controle epidemiológico era mais aceito nos anos 1980 do que nos
dias atuais, em que medidas de quarentena são questionadas, talvez
porque ainda estivesse fresca na memória de muitos citricultores a
lembrança da praga da tristeza, que dizimou rapidamente os pomares
paulistas nos anos 1940. Essa epidemia só chegou a ser
"superada" graças aos estudos de pesquisadores que descobriram
que o enxerto das laranjeiras em raízes de limãocravo as
tornava resistentes ao vírus CTV (
Citrus tristeza virus
). Graças à "vacina" pelas práticas de enxertia,
descoberta pela pesquisa pública, os negócios puderam ser
retomados e a citricultura foi restabelecida em "moldes industriais".
Não parece ter sido cogitado efetivamente que as causas da rápida
proliferação e da alta letalidade da tristeza talvez estivessem
na forma como a monocultura e a busca pela produtividade agrícola haviam
aglomerado espécimes de umas poucas variedades de cítrus em
vastos pomares quase contínuos. Até aproximadamente os anos 1930,
a produção de cítrus era completamente descentralizada e
se dava em pequenos pomares dispersos. O sistema de cultivo havia mudado
radicalmente desde então, incorporando uma busca constante pelo aumento
da produtividade dos pomares, e com ele vieram as primeiras epidemias
fitossanitárias. Como de praxe em nossa sociedade, a busca pela
solução de um problema é procurada num produto
mágico e raramente é apontada uma crítica à maneira
como as mercadorias são produzidas. Reitera-se, na cabeça de
médicos, agrônomos e de quem quer que seja, o fetichismo da forma
social, pautada por relações entre pessoas sempre mediadas por
coisas.
Assim, uma enxurrada de novas pestes se acumularia posteriormente nos pomares,
que, desde os anos 1960, já eram regularmente "tratados" com
pesticidas químicos, apontados corriqueiramente como os
"remédios" do cotidiano da agricultura. Desse modo, a
citricultura moderna paulista convive com epidemias devastadoras desde sua
instalação. As "vacinas" científicas solucionam
temporariamente o problema, que retorna rápida e periodicamente, na
forma de crises sanitárias agravadas, com variedades resistentes de
ácaros, insetos (moscas e cigarrinhas sugadoras), vírus (CVC) e
bactérias (como a causadora do
greening
), desafiando as soluções de agrônomos e vendedores de
agrotóxicos, ao mesmo tempo que justificam a própria
existência desses profissionais especializados. No entanto, a
gestão disso implica custos crescentes que nem sempre podem ser
externalizados da contabilidade das firmas, como o são no caso da
pesquisa pública.
A crise da citricultura tem outra dimensão quando observamos a
eliminação recente de mais de 20 mil citricultores (dados da
Associtrus), em geral pequenos sitiantes que trabalhavam com suas
famílias, excluídos do setor nos últimos vinte anos por
não darem conta dos custos crescentes de manutenção dos
pomares diante dos preços decadentes da laranja paga pelas
indústrias de suco, altamente concentradas nas mãos de dois
grupos econômicos.
A eliminação acelerada dos citricultores mais vulneráveis
também teve uma conotação higienista, na
alegação de que eram aqueles agricultores familiares que cuidavam
menos de seus pomares e, assim, aceleravam a proliferação das
pragas. Ao lado da imputação de falta de controle
sanitário, a citricultura tentava lidar com a
superprodução não exatamente de pragas, mas também
de laranjas e do próprio suco de laranja. A disputa com outras
mercadorias industrializadas (refrescos, refrigerantes etc.) e a crescente
produtividade dos pomares adensados anunciavam certa saturação do
mercado.
Desse modo, foram os pequenos e médios agricultores os escolhidos para
ser tratados como sendo a própria "praga" e efetivamente
"erradicados", com contratos que pagavam menos que os custos de
produção mais básicos e com a imputação de
novos custos, como os da colheita, antes a cargo das indústrias.
Contraditoriamente, eram eles os que entregavam laranjas a preços mais
baixos às agroindústrias e ao mercado em geral, porque se valiam
do trabalho familiar e não precisavam remunerar alguns "fatores de
produção". Com sua eliminação, as pragas em si
não foram eliminadas é, inclusive, questionável que
a situação esteja mais controlada , mas uma importante
fonte de acumulação das próprias indústrias deixou
de existir.
O exemplo mostra como os preconceitos e as soluções fetichistas
dos gestores do agronegócio reproduzem às suas costas as
doenças e também as crises. Como consequência, tornaram-se
frequentes novas fogueiras de laranjeiras, empilhadas nos pomares por todo o
noroeste paulista. Dessa vez, a "epidemia" não era de cancro,
como em minha lembrança de infância, mas de laranjas e
citricultores mesmo. A própria fruta, que supostamente traz saúde
a quem a consome, se tornara uma praga para quem a produzia. A
erradicação partia agora não mais da Fundecitrus, e sim
dos próprios produtores, cansados dos prejuízos quantos
não terão adoecido com a situação? , e o
arrendamento das terras às usinas de cana surgia como
"remédio" para uma sobrevida das famílias, ao longo dos
anos 2000. O carvão de laranjeira ainda é vendido em
supermercados para fazer churrasco.
De 2002 a 2010/2011, os preços internacionais das commodities atingiram
altas históricas.
(Thomas Bauer)
A utilização de tratores, arados, adubos e pesticidas
químicos, expressão da indústria nacional que se
desdobrava sobre o campo, altamente fomentada pelo crédito rural
subsidiado pelo Estado, foi uma grande novidade dos anos 1960/1970. São
Paulo assumiu aí a dianteira na adoção da chamada
Revolução Verde. Embora ainda não se autoproclamasse
assim, era o surgimento do "agro" com as feições que
hoje são positivadas em propagandas televisivas.
O trabalhador de turma, assalariado precariamente e tornado boia-fria
irreconhecível perante os próprios patrões, também
foi novidade na época. O adoecimento do boia-fria se dava
corriqueiramente na forma de lesões pelo trabalho repetitivo, embora
também fossem (e ainda sejam) comuns as intoxicações por
agrotóxicos. Porém, o não pertencimento à
comunidade local, a pressão por trazer dinheiro de volta à
família e cidade de origem e o ritmo ditado pelas máquinas
agrícolas ou pelas esteiras das agroindústrias também
compunham um contexto de gradativa internalização da necessidade
de trabalhar no limite, muitas vezes até a morte. Um triste exemplo:
entre 2004 e 2007, mais de vinte cortadores de cana morreram por
exaustão em serviço!
Afinal, o que as máquinas e outros "avanços
científicos" representam para o trabalho na agricultura e, assim,
para a reprodução do próprio agronegócio? Em que
situação as pessoas são elas mesmas tratadas como ervas
daninhas e o que isso ocasiona? Até menos de dez anos atrás,
cortadores manuais eram recrutados aos montes em cidades do norte de Minas e do
Nordeste para passar a maior parte do ano em São Paulo. Embora fossem
tratados como "os de fora", estigmatizados como "nortistas
arruaceiros" nas cidades interioranas, engoliam o orgulho ferido e a
fuligem da cana queimada e, com facões afiados, batiam anualmente
recordes de produtividade. Assim como a formiga e o mato, retornavam todo ano,
mas não representavam apenas custos. Também produziam a maior
parte da "riqueza" do setor. Em 2008, eram quase 300 mil; hoje, menos
de 30 mil. A rápida mecanização do corte, com a
introdução de gigantescas colhedoras, erradicou seus empregos. No
campo desabitado, a cana é agora cortada por uns poucos operadores de
máquinas, que se revezam dia e noite.
De 2002 a 2010/2011, os preços internacionais das
commodities
atingiram altas históricas, num afluxo de escala inédita de
capital fictício para a produção de mercadorias
agrícolas e minerais no mundo todo e no Brasil. Essa abundância
monetária percolou o solo da sociedade brasileira. No campo paulista, as
usinas de cana se esbaldaram em novos projetos, novas aquisições,
ampliando os canaviais para os pastos e para o Cerrado de estados vizinhos.
Renovaram e aumentaram as dívidas, abriram capital em Bolsa e emitiram
papéis para financiar a euforia, que tinha lastro frágil na
promessa de que o etanol viria logo a substituir o petróleo e nos livrar
de seus males.
De modo contraditório, porém, a energia supostamente
"limpa" se valia de produzir sistematicamente queimadas, para abrir
caminho para o corte da cana, feito pelos migrantes. Como equacionar essa
prática com o discurso ambiental? "Proíbam-se as
queimadas
" Entretanto, como cortar cana crua sem cortar todo o
cortador nas finas folhas afiadas da cana? Para acabar com as queimadas e
"limpar" o agrocombustível seria necessário transformar
o processo de trabalho. Porém, com isso, impunha-se "varrer"
os próprios cortadores do interior paulista e substituí-los por
colhedoras mecânicas, desde que as máquinas se tornassem
acessíveis para serem compradas. Assim, a mecanização se
apresentava como a "vacina" para o problema. No entanto, ela exigia
investimentos e adaptação, que o boom das
commodities
tornava possíveis.
Usinas avalizaram empréstimos bancários de seus fornecedores e se
valeram de linhas especiais de financiamento estatal, como do BNDES e do
Moderfrota, para comprar colhedoras. Desse modo, a "cura" para o
adoecimento dos trabalhadores rurais e para a poluição das
queimadas nos canaviais chegou com a aquisição de
maquinário pesado para a mecanização do corte. Os
trabalhadores haviam se tornado a "praga" a ser erradicada, em prol
de uma produtividade bancada pelo capital financeiro. Sendo eles, todavia, a
verdadeira fonte de valor adicional que pode ampliar o capital, como
poderá o próprio capitalismo curar a "praga" da falta
de lucratividade que ele mesmo assim cria?
As respostas para os problemas reiterados no campo têm sido, assim,
dobrar a aposta na produtividade, que vai levando ao extremo a
noção de monocultura, a qual parece querer se produzir por si
mesma, sem diversidade ambiental e sem gente. A crítica a essa forma de
pensar, produzir e consumir reclama as derradeiras questões: de onde
pode vir a acumulação do agronegócio se não pela
exploração do trabalho? Qual mágica se espera? Será
que o recurso à dívida pública e ao capital financeiro
pode sempre e sistematicamente substituir a extração da
mais-valia? Que custos sociais e ambientais estamos assumindo para reiterar
essa ficção? Até quando?
28/Dezembro/2020
[*]
Professor de Geografia Econômica e
Rural da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e pesquisador do
Grupo de Estudos sobre Mudança Social, Agronegócio e
Políticas Públicas (Gemap) da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (Ufrrj) e do Laboratório de Geografia Urbana (Labur) da USP.
O original encontra-se em
Le Monde Diplomatique Brasil
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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