O documento que saiu da cimeira da NATO de Madrid coloca a questão central da definição do “Ocidente”, que é a referência à entidade ao serviço de cujos interesse a aliança militar age; e dos valores ocidentais, aquilo que constitui o núcleo que identifica e distingue os ocidentais dos outros grandes grupos políticos, militares e económicos.
Contém uma frase decisiva, que os líderes europeus deviam esclarecer. O comunicado salienta enfaticamente: “as ambições e políticas coercitivas da República Popular da China desafiam nossos interesses, segurança e valores”.
Presume-se que os valores são os valores ocidentais. Seria importante para os cidadãos dos Estados que fazem parte da NATO, os que vão pagar as consequências destas afirmações, saber quais são para a “cúpula” da NATO representada pelo seu secretário-geral os “nossos valores” e até o que entende NATO por Ocidente.
Estes comunicados são do tipo dos textos bíblicos, exigem uma exegese, porque deliberadamente partem de afirmações que consideram dogmas, logo fora de qualquer crítica ou dúvida, ou até de confrontação com a razão. A partir de construções, nunca explicitadas, desenvolvem uma doutrina que serve para justificar interesses, que se transformam em valores.
Temos de nos entender sobre aquilo que pagamos e em última instância nos pode obrigar a lutar e a morrer.
Originalmente a expressão Ocidente indicava a separação do Império Romano entre a parte ocidental latina e a parte oriental, dominada pelos gregos. O cisma do cristianismo de 1054 também reforçou diferença e causou diferenças determinantes na estrutura social, nas formas dominantes de poder . Por exemplo, a Rússia e a Bulgária foram convertidas a partir de Constantinopla e faziam parte do “Oriente” (há poucos anos a Bulgária foi transferida para o Ocidente com a entrada na NATO e a Rússia foi expulsa da Europa, para onde entraram os Estados Unidos e o Canadá, antigas colónias inglesas, mas já não as antigas colónias espanholas e portuguesas da América — a NATO é uma criação anglo-saxónica!).
Existem várias definições para o Ocidente, a clássica assente na religião e cultura, uma outra que remete para as potências dominantes desde a época colonial, a da dos países da NATO durante a guerra fria, a que se juntaram os que têm suas raízes históricas e culturais ligadas à Europa, a Austrália e a Nova Zelândia, antigas colónias inglesas, mas até o Japão e a Coreia, e ainda Israel.
Durante a Guerra Fria, a expressão “Mundo Ocidental” referia de maneira muito genérica os países capitalistas desenvolvidos. Aceitando como boa esta “geografia” de mundo ocidental, chega-se à conclusão que o principal valor do “Ocidente” é o lucro, e que o modo de atuar do Ocidente agir no mundo para defender os seus interesses é o da conquista de outros territórios em todo o globo e da exploração dos seus povos e riquezas.
Podemos situar o “modo de estar” do Ocidente, nas Cruzadas, no início do segundo milénio e a sua estratégia desenvolveu-se até ao presente com a expansão e conquista de outros continentes a partir do século XV, com a colonização daí resultante do continente americano e de África, e o colonialismo fruto da revolução industrial.
O Ocidente foi o centro do poder do mundo e se há um acordo sobre a sua identidade é a de no Ocidente os valores corresponderem aos interesses e vice-versa. O catolicismo, ou cristianismo romano, criara com as cruzadas a primeira grande empresa expansionista do Ocidente e a concentração do poder com a demagógica invocação de valores de justiça e bondade, sempre violados na prática. Será a matriz de atuação do Ocidente no futuro.
O grande cisma do Ocidente, a Reforma e a Contra-Reforma resultam dos interesses de grupos nacionais se assenhorearem do poder de acumular as riquezas comuns e o poder, em confronto com o papado católico. O nacionalismo do rei Eduardo VIII, que criou a igreja anglicana e o dos príncipes alemães, que apoiaram Lutero, são um belo exemplo de conjugação de interesses e valores que caraterizam o Ocidente, o Ocidente a que se refere o comunicado da NATO e que esta estende segundo os seus interesses, invocando a ameaça dos interesses de outros que, ao longo de mais de seiscentos anos (da viagem de Marco Polo) nunca ameaçaram o Ocidente, o que já não pode ser afirmado pelo Ocidente.
Presumo que o senhor Jens Stoltenberg tem uma ideia do que o seu Ocidente é, e do que é o Ocidente para a sua NATO. Convinha que nos elucidasse.
É que este comunicado marca uma viragem decisiva no interior do Ocidente, protagonizado pela NATO, pelo menos nos cartazes: A concentração do poder numa única entidade, os Estados Unidos. A União Europeia, de novo com a Grã-Bretanha (que saiu sem pagar a conta e entrou pela porta do fundo, pela mão do chefe do gangue da rua da taberna), a Austrália e a Nova Zelândia, mais Israel, são agora uma aliança global sob comando completo dos Estados Unidos. E comando completo significa uma moeda e um exército únicos, uma política de confronto com os outros espaços para manutenção de um domínio ameaçado. A NATO passou a ser um exército imperial à escala planetária para garantir acesso a matérias-primas e para manter o controlo da emissão e circulação da moeda de troca internacional.
O secretário da NATO tem alguma explicação a fornecer aos “ocidentais” sobre esta nova atribuição de funções, sobre esta expansão do negócio com abertura de frentes em todos os mares e continentes?
É curioso que quanto às ameaças da China, esta não tenha retaliado quando o Ocidente chegou ao seu território e inviabilizado a Rota da Seda, cuja versão atualizada o Ocidente quer agora torpedear e destruir! Outros tempos!
O comunicado da NATO saído da cimeira de Madrid tem uma tradução: Para a cabeça do império NATO a China passou a ser o grande competidor, que ameaça os interesses dos Estados Unidos e logo os valores porque se rege.
Também fica implícito na exigência de aumento da cota dos membros da NATO até 2% para compra de armamento que estes novos sistemas de armas não se destinam a defender a Europa, nem os valores ocidentais, mas sim os interesses dos Estados Unidos no Mundo e em particular no Pacífico.
O comunicado da NATO tem ainda uma outra leitura, que os líderes europeus deviam ser chamados a explicar: os Estados Unidos, depois de terem criado condições para provocar a guerra na Ucrânia, depois de terem envolvido a Europa nela, preparam-se para envolver a Europa, em nome do Ocidente e da NATO, num conflito com a China no Oceano Pacífico?
É isto?
Por fim, quando o seráfico secretário-geral da NATO fala em ameaças ao Ocidente resultantes da invasão russa da Ucrânia está a ludibriar os cidadãos europeus, que não têm que ser instruídos em análises de situações de combate. O exército russo está desde Fevereiro a tentar conquistar uma faixa de cerca de 150 quilómetros num movimento para ocidente. A Rússia dispõe de muito limitada capacidade de projeção de forças a grande distância, tem muito poucos porta-aviões, por exemplo, que são os sistema típico de forças atacantes e dos impérios globais — caso da Inglaterra até à II Guerra Mundial.
É evidente para qualquer oficial de estado-maior, mesmo de uma pequena unidade, que as Forças Armadas russas não têm capacidade para construir e colocar em movimento um rolo compressor que passe sobre a Polónia, a Alemanha, a França, a Espanha e chegue ao Atlântico!
A política da NATO saída da cimeira de Madrid, com o pomposo título de “Novo Conceito Estratégico” assenta nesta falaciosa premissa!
O que os líderes europeus se comprometeram foi a aumentar as despesas para pagar armas dos EUA, da Austrália, da Nova Zelândia, do Japão contra a China!