Para entender também a situação portuguesa
Predadores financeiros contra o trabalho, a indústria e a democracia
A crise da dívida soberana na Europa em perspectiva
histórica
O euro invalidado desde o início, financeira e fiscalmente
Sob as presentes condições, o colapso da Eurozona é inevitável
O encargo das poupanças é o problema, porque é sinónimo de encargo de dívida
Como a inflação do preço de activos leva à deflação da dívida
Atar as mãos do governo privando-o de um banco central para criar dinheiro
Por que os ganhos de produtividade dos últimos 50 anos não nos tornaram todos ricos?
Os banqueiros são os novos planeadores centrais e o seu plano é pela austeridade
Um recomeço: Pensar acerca do impensável
Um realinhamento político europeu?
O desafio neoliberal
Capitalismo financeiro versus capitalismo industrial
A tradição de banca central da Europa comparada com a da banca mercantil anglo-americana
Falta à Eurozona um banco central para fazer o que se supõe que
faça a maior parte dos bancos centrais: financiar défices
do
governo. Para tornar as coisas pior, o Acordo de Lisboa limita estes
défices a 3% demasiado pouco para retirar economias da
depressão compensando a deflação da dívida do
sector privado.
Mesmo se os bancos centrais pudessem monetizar níveis mais altos de
gastos deficitários, há boas razões não para
subsidiar sistemas fiscais injustos e cortes fiscais sobre o imobiliário
e inesperados almoços grátis financeiros que os
economistas clássicos instavam a que fosse a base fiscal. Sob uma
política fiscal clássica, a Europa não teria tido uma
bolha do preço da terra em primeiro plano. A renda económica do
"almoço grátis" ter-se-ia tornado a base fiscal,
não capitalizada em empréstimos bancários a serem pagos
como juros. Os orçamentos governamentais teriam sido financiados de um
modo que manteria baixos os preços da propriedade.
Mas os lobistas
bancários impediram a Eurozona de criar um verdadeiro banco central para
financiar os défices dos orçamentos públicos. Eles
também viraram do avesso a política fiscal clássica ao
desonerar fiscalmente o imobiliário e as finanças enquanto
colocavam o fardo sobre o trabalho, os lucros corporativos e os consumidores
através do imposto sobre as transacções (IVA). Estas
políticas gémeas, financeiras e fiscais, fortaleceram os sectores
errados e tornaram a actual crise de dívida soberana inevitável,
transformando-a numa crise económica e política geral.
Tendo
criado esta crise, os interesses rentistas procuram agora utilizá-la
como uma oportunidade para desmantelar os gastos sociais
(social welfare spending),
romper o poder dos sindicatos de trabalhadores e transferir as suas perdas para
o sector público. A privatização dos lucros e a
"socialização" das perdas ameaçam mergulhar a
Eurozona na austeridade e contracção económica a
menos que a má dívida e os maus empréstimos sejam
parcialmente reduzidos ou totalmente cancelados.
Dívidas que
não podem ser pagas, não o serão. A questão
é se o seu não pagamento assumirá a forma de
reduções parciais
(writedowns)
para o nível em que possam ser pagos ou se a Europa será sujeita
a uma onda de execuções, privatizações e cortes na
despesa pública em infraestruturas e programas sociais. Na
discussão de alternativas, pode ser uma ajuda recordar que o Milagre
Económico da Alemanha teve por base a Reforma Monetária Aliada de
1947, a qual foi um cancelamento de dívida de extremo alcance. Um
cancelamento de dívida semelhante é necessário para
permitir à Europa que recomece com uma posição limpa
(Clean Slate, Schuldenstreichung)
e um sistema financeiro e fiscal mais sadio. Esta necessidade tornou-se agora
urgente.
Tal reforma financeira precisa ser acompanhada por uma reforma
fiscal para arrecadar renda da terra, renda de recursos naturais e restabelecer
os monopólios da infraestrutura básica no sector público
ao invés de deixá-los como um ganho inesperado ou
"gratuito" a ser capitalizado numa nova onda de empréstimos
bancários.
Quero começar por dizer quão chocado fiquei
uns poucos anos atrás ao descobrir que os alemães estão a
receber propaganda de uma história travestida quanto à
hiper-inflação de Weimar na década de 1920. Quando estudei
e depois ensinei teoria económica na década de
1960, o problema era entendido claramente. Os estudantes aprendiam como a
Alemanha estava sobrecarregada com reparações da I Guerra Mundial
muito além da sua capacidade de pagar. Já em 1919, John Maynard
Keynes, em
Economic Consequences of the Peace,
advertia que estabelecer estas reparações em níveis
tão altos provocaria um colapso dos pagamentos internacionais. Durante a
década de 1920 ele definiu os limites de quanta dívida externa ou
outras "transferências de capital" podiam ser pagas ao
estrangeiro.
Seguido por alguns economistas como Harold Moulton e Allyn
Young nos Estados Unidos, a análise "estrutural" da
balança de pagamentos elaborada por Keynes foi ensinada a uma
geração de estudantes e analistas de crédito. Tornou-se
conhecimento corrente que o que governos podem tributar em moeda nacional
não estava necessariamente disponível para ser pago em divisas
estrangeiras. A Alemanha só podia pagar dólares ou ouro
exportando mais ou pela venda de propriedade, ou tomando de
empréstimo divisas fortes. O que levou ao colapso sua taxa de
câmbio e inflacionou os seus preços foi a tentiva desesperada de
pagar dívida externa, não imprimindo dinheiro para gastos
internos. Percebo que os alemães estejam traumatizados pela
inflação. Mas, ao invés de serem arrastados pelas
emoções, agora é tempo de darem um passo atrás e
reconhecerem as razões reais que provocaram o trauma.
Keynes e os
seus colegas não conseguiram os convencer governos a rejeitar os
argumentos de Jacques Rueff em França, Bertil Ohlin nos Estados Unidos e
outros economistas orientados para os credores que afirmavam não haver
limites para a quantidade de dinheiro que podia ser extorquido simplesmente
através da imposição de austeridade financeira e fiscal.
As suas visões tacanhas receberam um apoio poderoso dos interesses dos
credores, apoiados por uma diplomacia americana nacionalista. A sua
lógica de vingança não constituiu um guia
responsável para a política. Mas isto sobreviveu em pouco
emotivos mas igualmente frios, na forma calculada de programas de austeridade
racionalizados pelo Fundo Monetário Internacional, impostos à
América Latina e outros devedores do Terceiro Mundo desde a
década de 1960.
O que é notável é que a
consciência do lado empiricamente válido do debate alemão
das reparações alemãs da década de 1920 desapareceu
da discussão de hoje. Os perdedores naquele debate os advogados
da austeridade inundaram os media populares, os governos e mesmo as
universidades com aquilo a que os psicólogos chamam uma memória
implantada: uma condição na qual o paciente é convencido
de que sofreu um trauma que parece real, mas que na realidade não
existe. Ao povo alemão foi dada uma falsa memória da sua
traumática hiper-inflação. O fingimento é que esta
resultou do financiamento pelo Reichsbank da despesa doméstica. A
verdadeira explicação deve ser encontrada no colapso das divisas
externas ao tentar pagar dívidas externas muito para além
da sua capacidade.
Toda a hiper-inflação na história
foi provocada pelo serviço da dívida externa que provocou o
colapso da taxa de câmbio. O problema quase sempre resultou de
tensões na divisa externa geradas em tempo da guerra, não na
despesa doméstica. A dinâmica da hiper-inflação
investigada em clássicos como
The Reichsbank and Economic Germany
(1931), de Salomon Flink, foi confirmada por estudos da inflação
chilena e de outras inflações do Terceiro Mundo. Primeiro a taxa
de câmbio afunda quando as economias pagam gastos militares externos
durante a guerra e depois no caso da Alemanha com as
reparações depois de a guerra terminar. Estes pagamentos levam
à queda da taxa de câmbio, aumentando o preço em moeda
doméstica das importações com preços em divisas
fortes Esta ascensão de preços para bens importados cria um
preço protector para os preços internos fazerem o mesmo. Mais
dinheiro doméstico é necessário para financiar a
actividade económica com um nível de preço mais elevado.
Esta experiência alemã proporciona o exemplo clássico.
Em 1919 os Aliados impuseram à Alemanha elevadas
reparações impagáveis em grande parte para pagar as
dívidas Inter-Aliadas de armas que o governo dos EUA insistia em cobrar
da Grã-Bretanha e da França por fornecimento de armas antes de os
Estados Unidos entrarem na guerra. Tais dívidas tradicionalmente eram
dadas como esquecidas entre os aliados depois de alcançada a
vitória. Mas o governo dos EUA recusou-se a fazer isso, de modo que os
clientes do tempo da guerra viraram-se para a Alemanha a fim de
pagá-las.
A sua responsabilidade era ilimitada à luz do
Tratado de Versalhes. Para começar, a Alemanha foi despojada das suas
reservas de carvão, siderurgias e outros activos valiosos. Isto deixava
pouca alternativa para o Reichsbank criar marcos alemães para
lançar nos mercados de divisas a fim de obter divisas externas para
pagar as reparações. Isto fez elevar o preço das
importações e, portanto, o nível de preços interno.
Era preciso mais dinheiro para transaccionar compras e vendas com um
nível de preços mais alto. Assim, a linha causal foi da
balança de pagamentos e depreciação da moeda para o
aumento dos preços das importações. Bens importados caros
fizeram também elevar os preços internos.
Foi isto que criou a necessidade de uma oferta monetária mais alta,
não foi o dinheiro doméstico que forçou preços mais
altos.
[1]
O marco alemão foi estabilizado e as reparações da
Alemanha foram pagas tomando empréstimos no exterior, não pela
tributação do rendimento interno. As suas cidades tomavam
empréstimos em dólares em Nova York e o Reichsbank convertia-nos
em moeda nacional (cujo gasto não causava inflação nos
preços domésticos). O Reichsbank pagava estes dólares aos
Aliados estes faziam-nos circular e pagavam ao governo dos EUA pelas
suas dívidas de armas numa circulação triangular.
A Reserva Federal inundou Wall Street com bastante crédito a fim de
manter as taxas de juro baixas o suficiente para encorajar a concessão
de empréstimos externos a obter taxas de juro mais altas no exterior.
Isto parecia fazer o sistema funcionar pelo financiamento de
serviço da dívida com novos empréstimos. Os economistas
chamam a isto esquema Ponzi
(Schneeballsystem).
Aquilo que promete ser o "milagre do juro composto" não pode
perdurar muito sem auto-destruição. As baixas taxas dos EUA que
tornavam os empréstimo ao estrangeiro lucrativos alimentaram uma bolha
interna do mercado imobiliário e de títulos que em 1929 entrou em
crash.
Pode parecer estranho para um americano como eu ser convidado para vir à
Alemanha falar-vos acerca da vossa própria história. Mas isto
é o que acontece quando os lobistas da banca exploram habilmente um
trauma colectivo para despojarem um país do conhecimento da sua
história e substituí-la com um travestido da realidade. Esta
distorção da história é uma pré
condição para propagar a ideologia orientada para o credor,
advogada pela Comissão da UE, pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo
Fundo Monetário Internacional (FMI). Esta "troika", capturada
e enjaulada pela ideologia neoliberal, está a utilizar uma visão
histórica falsa para mergulhar a Europa na austeridade e pobreza
desnecessárias.
A decisão mais imediata foi fazer à Grécia o que o Tratado
de Versalhes fez à Alemanha: impor o serviço da dívida
externa muito para além da sua capacidade de pagar. Politicamente, isto
exige a suspenção da democracia e a aceitação da
possibilidade de a Grécia deslizar outra vez para a ditadura militar,
pela insistência de que às populações não
seja uma oportunidade de aprovação do compromisso do governo em
pagar. O verdadeiro golpe de estado é culminado pela
substituição de governos eleitos na Grécia e na
Itália por "tecnocratas", o termo europeu para aquilo a que
nós americanos chamamos lobistas de bancos de investimentos ou seus
serventes (factotums).
Quando temos ideologia económica errada promovida ano após ano
como uma ladainha, há sempre um interesse especial a actuar. Hoje, o
mais poderoso interesse especial é o sector financeiro. Ele procura
extrair ganhos mesmo ao custo de impor a austeridade e a bancarrota final a
economias nacionais inteiras. O lobing pró credor ganhou suficiente
subsídio e poder para despojar do curriculum académico a
história do pensamento económico, ao ponto de suprimir a
memória de debates monetários que remontam a dois séculos.
A insistência monetarista actual sustentando que dívidas externas
podem ser pagas sem limites está, por exemplo, enraizada na
lógica Bulionista de David Ricardo apresentada na década de 1820.
Ela foi controvertida pelos anti-Bulionistas, contudo universidades ainda
ensinam pontos cegos da Escola de Chicago de Milton Friedman, e bancos centrais
por todo o mundo impõem seus erros de omissão e comissão.
Esta censura da história intelectual passada não é
ciência, nem tem base empírica. É ideologia que reflecte o
auto-interesse selvagem dos credores. Mas a sua racionalização
nas restrições da Eurozona contra bancos centrais financiarem
despesa pública é utilizada para lavar o cérebro de
economistas profissionais e colocar os banqueiros centrais submissos aos
banqueiros de investimento. Há mesmo uma ideologia de que
orçamentos governamentais deveriam ser equilibrados em vez de
proporcionarem à economia dinheiro e poder de compra para crescer. A
conclusão política revela a motivação porque este
erro tem sido popularizado com tanto êxito: Se bancos centrais não
proporcionarem dinheiro à economia (na forma de dinheiro-dívida
que ninguém realmente espera que seja pago ao logo do tempo, ao
contrário do crédito bancário comercial), então
isto deixa os bancos do sector privado como a única fonte de moeda e
crédito e cobrança de juros. O seu objectivo é
manterem para si próprios o monopólio da criação de
moeda que governos poderiam fazer muito bem por si próprios nos seus
próprios teclados de computador.
Os bancos demonstraram ser irresponsáveis ao financiar a forma
característica de inflação dos preços do mundo de
hoje: uma bolha financeira alimentada pelo crédito em
condições mais fáceis e mais folgadas para a compra de
imobiliário, acções e obrigações, para
comprar empresas inteiras. Dificilmente se poderia esperar que governos
alimentassem a inflação de preços de activos. O seu
interesse é tributar os "almoços grátis"
inesperados proporcionados pela ascensão do valor da terra e dos
recursos naturais, e providenciar serviços básicos de
infraestrutura a preços subsidiados ou gratuitos, assim como oferecem
estradas sem encargos de acesso ou portagem. Os bancos procuraram fazer com que
os devedores hipotecários e os atacantes
(raiders)
de empresas pudessem pagar os seus juros através de
reduções de impostos, deixando mais renda da terra e rendimento
corporativo "liberto" para ser pago a banqueiros e possuidores de
títulos em vez do colector de impostos.
O resultado é elevar preços de duas formas. A primeira delas,
"renda é para pagar juros", e assim o fluxo de caixa
corporativo no mundo de hoje das compras alavancadas por dívida
(debt-leveraged buyouts), compras
por fundos de risco (hedge funds takeovers), fusões e
aquisições. Tudo o que o colector de impostos renuncia fica
livre para ser capitalizado em empréstimos bancários,
elevando o preço dos activos. Isto eleva preços da
habitação, das fábricas e outros meios de
produção. As economias polarizam-se entre credores no topo de uma
pirâmide cada vez mais íngreme e devedores na base a afundarem na
servidão da dívida
(debt peonage).
A classe média desaparece.
Os cortes fiscais sobre a renda da terra, os recursos naturais e os
escalões com mais altos rendimentos forçam governos a transferir
o fardo fiscal para o trabalho, a indústria e os consumidores. Isto
eleva o ponto de equilíbrio entre o custo de viver e o de empregar
trabalho. Isto põe fora dos mercados mundiais economias tributadas
regressivamente e com preços infestados pela dívida.. O efeito
deve ser a contracção económica a menos que todo o
mundo adira a esta corrida para o fundo.
O mito de que a hiper-inflação da Alemanha na década de
1920 foi provocado pelo Reichsbank a utilizar a impressora de papel-moeda para
financiar o défice do orçamento público alemão
sobreviveu para justificar o Tratado de Lisboa a impedir o Banco Central
Europeu de criar moeda para emprestar a governos. Os bancos levaram uma
geração inteira a plantar esta história falsa para
forçar governos a tomarem empréstimos em condições
comerciais, com juros, presumivelmente livres de risco. O BCE foi sequestrado
para servir a banca comercial, não o interesse público. Os bancos
querem forçar os governos a contraírem empréstimos
comercialmente, a juros, presumivelmente em condições livres de
risco. O objectivo é monopolizar a criação de dinheiro que
governos puderiam criar simplesmente a teclar nos seus próprios
computadores.
Já no século XVIII, economistas britânicos tais como Sir
James Steuart, Rev. Josiah Tucker e mesmo David Hume reconheceram que moeda
adicional e despesa normal (desde que o desemprego existisse) ajudavam mais a
aumentar a produção do que os preços. O corolário
é que a deflação monetária em
condições de desemprego tende a restringir a
produção mais do que as importações sem
falar na transferência da propriedade dos credores via
execuções. Assim, a moeda é muito mais do que um
"véu". Ela é dívida, não meramente um
conjunto de "guichets". A austeridade desencoraja novo investimento
de capital, levando a mais profunda dependência de
importações, piorando a balança de pagamentos bem como o
défice orçamental.
Ao privar a economia dos fundos para aumentar o emprego e a
produção enquanto apoia bancos que passaram a
geração passada a inflacionar preços imobiliários e
a bolha financeira a política do BCE promoveu a
inflação de preços de activos para a
habitação, o custo de vida e portanto os custos do emprego. Isto
dificilmente constitui uma recomendação para o deixar com o poder
do planeamento central que ele procura para impor austeridade para extorquir
pagamentos de dívida pela sua anterior política de crédito
irresponsável.
Alguma coisa tem de ceder. Se as dívidas não forem reduzidas
e, de facto, canceladas então as economias terão de
utilizar o seu excedente para pagar aos credores do passado e seus herdeiros,
em vez de o investir no crescimento económico e na
elevação dos padrões de vida. O plano financeiro é
desmantelar gastos sociais e o investimento em infraestruturas governamentais,
privatizando isto a crédito, embutindo os pesados encargos do
serviço de dívida nos preços dos serviços
públicos até agora proporcionados a taxas subsidiadas ou
gratuitamente, pagos por uma combinação de
tributação progressiva do rendimento e da riqueza e pela
criação de dinheiro novo pelo governo. O efeito será
aumentar estrutura nacional de preços, enquanto torna se tornam credores
e privatizadores ricos mesmo quando a economia geral se afunda.
Um golpe de estado
(coup d'état)
político e ideológico está a substituir a democracia pela
oligarquia financeira, transferindo poder do governo para bancos e possuidores
de títulos. A nova política não é para os governos
tributarem a riqueza, mas sim para tomarem dela empréstimos a
juros, os quais devem ser pagos por ainda mais tributação sobre o
trabalho, os consumidores e a indústria. Prosseguir neste caminho
contrariaria o Iluminismo da Europa e os últimos três
séculos de economia. Chamam a isto economia clássica e
mesmo "economia do mercado livre" mas é um travestismo
impor esta política em nome dos santos patronos da economia
política clássica. Os fisiocratas, Adam Smith, John Stuart Mill,
Wilhelm Roscher, Friedrich List e reformadores da Era Progressista instavam
exactamente ao caminho oposto daquele que está agora a ser tomado, e na
verdade aquele que o mundo parecia estar a seguir até a I Guerra Mundial
e durante umas poucas décadas após a II Guerra Mundial.
O euro foi invalidado desde o início, financeira e fiscalmente
A União Europeia foi criada em grande medida como um projecto para
pôr fim à guerra, mas o modo como a Eurozona foi moldada abriu uma
forma inesperada de campanha militar e de busca de tributos: uma conquista
empreendida por banqueiros e seus grandes clientes rentistas a fim de criar uma
oligarquia financeira dominando através de "tecnocratas"
instalados mais como procônsules usados para servir o Império
Romano. A actuarem sob a directiva primária de que todas as
dívidas devem ser pagas, quer se queira quer não, esta classe
administrativa está desejosa de mergulhar as economias em austeridade e
depressão para criar a oportunidade de quebrar o poder dos sindicatos de
trabalhadores e reverter os gastos sociais na condição de
force majeure.
Ao reverter os últimos dois séculos de Iluminismo Europeu, os
interesses financeiros estão a lutar para reverter as reformas da Era
Progressista de um século atrás e a democracia social que se
seguiu à II Guerra Mundial.
A Europa está a ser empurrada para a depressão, mas não se
trata de uma recessão cíclica dos negócios ou um resultado
de fenómenos naturais. Ela não é economicamente
necessária e certamente não resulta de o trabalho estar a ser
pago em demasia excepto na medida em que é pago mais para cobrir
os seus pagamentos aos bancos. A crise de dívida soberana está a
ser utilizada como uma oportunidade para forçar a
privatização em liquidações e desmantelar o poder
de governos para regulamentarem e tributarem a riqueza. Défices
orçamentais estão a ser utilizados não para ressuscitar o
emprego, em estilo keynesiano, mas para salvar bancos e possuidores de
títulos de terem de assumir perdas.
A primeira dimensão do problema da Eurozona é financeira.
Lobistas da banca invalidaram
(crippled)
o euro desde o seu nascimento. Ao contrário da Grã-Bretanha e dos
Estados Unidos, falta à Eurozona um banco central para fazer o que
supõe que façam bancos centrais: criar dinheiro para financiar
défices governamentais. O dinheiro e o crédito necessários
para alimentar a economia estão a ser criados por bancos comerciais, a
juros. Aqui simplesmente não está a ideia de um banco central
continental europeu a emprestar directamente a governos.
Eis porque George Soros recentemente descreveu o próprio euro como uma
bolha uma reacção positiva à crença de que
ele funcionaria foi seguida por uma súbita percepção da
sua deficiência estrutural. "A principal fonte de
perturbação", explicou ele, "é que os estados
membros do euro capitularam diante do Banco Central Europeu nos seus direitos
de criar moeda fiduciária
(fiat money)
[2]
Impedido de emprestar a governos, o BCE na sua forma actual estava destinado a
falhar no momento em que governos precisassem resgatar economias da
deflação da dívida.
O euro foi criado sem um organismo capaz de monetizar despesa pública
independentemente de bancos comerciais. Mas os bancos não perderam
demasiado [tempo] para retomar os empréstimos.
Desregulamentação, supervisão laxista e rematada
prática fraudulenta tornaram-se tão comuns, especialmente a que
vinha de bancos estado-unidenses e britânicos e seus correspondentes, que
a confiança foi rompida. Sem fé, o crédito desaparece,
porque a palavra crédito significa, literalmente, "eu acredito [que
serei reembolsado]". Os banqueiros, correctamente, receiam estender
crédito a outros bancos.
Isto é o resultado final do facto de o plano de negócio do
sistema bancário não ter sido para financiar nova
formação de capital para criar fluxos futuros de rendimento a
partir da economia real, mas sim encontrar activos e fluxos de rendimento para
servirem como colateral de novos empréstimos. Quando bancos competem
para emprestar contra o imobiliário (o qual representa uns 80 por cento
dos novos empréstimos bancários nos Estados Unidos e na
Grã-Bretanha), para o controle corporativo ou para acções
e obrigações, o efeito é carregar estes activos e seus
fluxos de rendimento com mais dívida, sugando capital para longe do
investimento produtivo para pagar juros e amortização aos bancos.
Isto é predatório, mas basicamente um plano de negócio
preguiçoso.
Ao invés de financiar défice público, a banca comercial
incha os preços preços de activos. Os bancos emprestam
principalmente contra activos que extraem rendas, a começar pelo
imobiliário, petróleo e gás, indústria mineira e
extracção de renda de monopólio precisamente a
renda de "almoços grátis" que os economistas
clássicos instavam a que fosse a base fiscal. As terras ancestrais
já não pertencem à nobreza hereditária, elas foram
democratizadas, mas com o endividamento dos novos proprietários (a
crédito). Reconhecendo que as quantias libertas pelo fisco ficam
"livres" para pagar aos bancos sob a forma de juros, a banca apoiou a
política de não tributação das terras, dos
combustíveis e dos minerais.
A dimensão fiscal é a segunda carga de profundidade na má
estruturação económica da Europa. Um preço de
propriedade acaba por ser em grande medida o quanto um banco emprestará.
Como os bancos procuram emprestar tanto quanto os mutuários puderem,
eles aliviam as condições, emprestando uma
proporção crescente do preço de compra dos imóveis
ou de outras propriedades. Isto eleva os preços dos activos o
resultado da alavancagem de maior dívida, realmente não de maior
rendimento ou de mais produção. Assim mais tomadores de
crédito compram propriedades simplesmente à espera de fazer uma
mais-valia com o preço do activo ("capital"). Eis porque
banqueiros comerciais gostam da inflação no preço dos
activos. Ela amplia o mercado para a sua criação de
crédito.
Ao considerar o juro como fiscalmente dedutível, como se fosse uma
despesa necessária do negócio (e mesmo sobre o imobiliário
residencial ocupado pelo proprietário na maior parte dos países
de língua inglesa), a tendência pró divida de hoje, o
código fiscal pró banco, subsidia uma proporção
crescente da economia a ser excedente pago como juros aos banqueiros. Isto
provoca uma perda não só para o colector fiscal como
também para a economia como um todo. Novos compradores de casas ou de
propriedade comercial, por exemplo, concorrem com outros compradores potenciais
para verem quem comprometerá o maior rendimento após impostos a
fim de obter um empréstimo bancário. O resultado é que
embora os governos não alimentem bolhas imobiliárias e
financeiras através de empréstimos ou da criação de
dinheiro pelo banco central, eles ajudam a inflacionar preços de activos
ao garantir que os empréstimos hipotecários e as rendas
não tributadas paguem hipotecas mais elevadas.
Para tornar as coisas pior, os governos devem completar a perda da receita
fiscal sobre a propriedade pela tributação de salários e
lucros, ou pelas vendas via Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA). Estes
impostos aumentam o custo de vida e de fazer negócio na economia, pela
elevação do preço de oferta do trabalho e do capital
tangível e pela elevação dos preços de venda no
montante do imposto de consumo. Assim, o que inflaciona preços de
activos é o favoritismo fiscal para a alavancagem de dívida,
não a criação de dinheiro pelo banco central.
Isto significa que se as economias tiverem de ser mais competitivas, elas
precisam de minimizar o grau em que os preços da
habitação, educação e serviços de utilidade
pública são alavancados por dívida e portanto forjar
encargos de juros dentro dos seus preços. Ao longo de mais de dois
séculos, economistas instaram a tributar rendimento "não
ganho" que não tivesse contrapartida em custos reais de
produção ("renda económica") e a manter
monopólios naturais no domínio público ou pelo menos a
regular os seus preços para os manter alinhados com os custos de
produção tecnologicamente necessários.
Explicar esta lógica era que o tratava a economia política
clássica do livre mercado e que não está mais a ser
ensinada nos curricula académicos de hoje dirigidos pelo travestismo
financeirizado da ideologia do "mercado livre" actual. O primeiro
acto dos Chicago Boys no Chile depois de a junta militar de Pinochet tomar o
poder em 1973, por exemplo, foi encerrar todos os departamentos de teoria
económica do país, excepto na Universidade Católica onde
monetaristas da Escola de Chicago dominavam. O ensino da teoria
económica tornou-se um exercício de censura e lavagem cerebral,
não um esforço científico ou empírico. A economia
do Chile tornou-se "livre" para ser saqueada no resto da
década de 1970, com quase todos os fundos de pensões sendo
esvaziados quando companhias iam à falência pelo lucro.
Os romancistas franceses Honoré de Balzac
(Le Père Goriot)
e Émile Zola
(L'Argent)
entenderam a dimensão disfuncional da procura de riqueza melhor do que
os manuais de teoria económica de hoje. E a maior parte das pessoas de
hoje intuitivamente sentem que a banca e a alta finança se tornou
predatória. Bill Blac (da UMKC) descreveu o "controle de
fraude" como uma combinação de contabilidade tortuosa,
compra de políticos, calúnia de quem quer que revele a fraude e
apoio a economistas de "livre mercado" para assegurar ao
público de que Wall Street regular-se-á a si própria sem
qualquer necessidade de supervisão regulamentar. Mas isto não era
politicamente correcto dizer até que George Ackerlof ganhou o
Prémio Nobel da Economia de 2001 em grande medida pelo seu artigo de
1993 com Paul Romer sobre "Saqueio: O submundo económico da
bancarrota pelo lucro"
("Looting: The Economic Underworld of Bankruptcy for Profit").
A sua tese era cristalina: "A bancarrota pelo lucro ocorrerá se
má contabilidade, regulação laxista ou penalidades baixas
por abuso derem aos proprietários um incentivo para obterem mais do que
as suas firmas valem e então incumprirem as suas
obrigações devedoras. A bancarrota pela obtenção de
lucro ocorre mais habitualmente quando um governo garante
obrigações de dívida de uma firma".
Os manuais de teoria económica tratam isto como uma anomalia como
se não devesse existir e, portanto, possa ser ignorada como uma falha
acidental no sistema, não a sua intenção, foco e na
verdade a sua própria essência. Nenhum manual explica como foram
feitas as fortunas mais recentes através da apropriação
(grabbing)
das poupanças de outras pessoas poupanças de fundos de
pensões e especialmente aquelas de instituições
financeiras rivais. Mas a corrupção da Arthur Andersen pela Enron
revelou-se sintomática das Cinco Grandes (Big Five) firmas de
contabilidade, seguida pelas agências de notação financeira
(rating) quando todas deram notações de crédito AAA para
aquilo que se revelou serem hipotecas
subprime
tóxicas. Os textos de teoria económica nem mesmo explicam (ou
defendem a ideia) de que o modo de ficar rico é tomar dinheiro
emprestado para comprar uma propriedade que está a subir de preço
e porquê a inflação de preços de activos
alavancados pela dívida devem necessariamente entrar em colapso numa
onda de falências.
O plano de negócios do sector financeiro é impor por toda a
Europa o que o Banco Central Europeu e seus parceiros das "troikas"
estão a fazer à Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha. Eles
dizem: "Dêem-nos vossos portos e vossa terra, os vossos
sítios turísticos e vossos sistemas de águas e esgotos.
Vamos colocar portagens nestas privatizações para arrecadar
rendas". Os compradores vão voltar-se e utilizar as receitas para
pagarem aos seus banqueiros enquanto os governos que recebem o pagamento
da venda destas propriedades dão uma volta e pagam aos possuidores de
títulos de obrigações, incluindo os banqueiros que possuem
estes títulos como reservas.
Actuando por conta destes banqueiros e possuidores de obrigações,
os apparatchiks do banco central dizem, com efeito: "Desculpem o nosso
conselho anterior para desregulamentar mercados financeiros e desonerar
fiscalmente a riqueza não terem resultado melhor. Mas vocês devem
assumir a responsabilidade pelas consequências das suas decisões
políticas".
Em tempos passados esta espécie de tomada de activos impondo um tributo
rentista exigia um exército para impô-la. O que torna a
situação de hoje tão notável é que isto
é alcançado sem necessidade de intervenção militar
na medida em que as populações permanecem passivas e
acreditam que o mundo funciona do modo como os bancos descrevem. A sua promessa
é que a "Austeridade irá torná-lo rico", como se
a auto-privação o tornasse sagrado. O corolário é
que para se tornar rico ou mesmo para manter a economia a funcionar
os bancos têm de ser salvos de assumirem uma perda. E a
inferência não declarada é que os governos devem absorver a
perda e passá-la aos "contribuintes".
A realidade é que as perdas são inevitáveis quando
dívidas apodrecem e conduzem uma parte vasta da economia à
situação líquida negativa (dívida em excesso face
aos activos). Isto é inerente à matemática do juro
composto e o resultado do constante afrouxamento dos padrões de
empréstimo para elevar o grau de alavancagem da dívida.
Desactivar a opinião popular da percepção deste facto faz
parte da "armamentização"
(weaponization)
da teoria económica, transformando-a numa combinação de
distracção, diversão e completo logro.
As coisas ficam ainda piores pelo lobing do sector financeiro para desonerar
fiscalmente o sector das finanças, dos seguros e do imobiliário,
bem como desonerar os ganhos por mais-valias em preços de activos
("capital") e os escalões mais altos de rendimento. Tomando
tudo em conjunto, estas políticas dirigiram o crédito
bancário para financiar uma bolha imobiliária e do mercado de
acções, não para a criação de novo capital
industrial, infraestruturas ou outras actividades produtivas.
Posso entender a relutância alemã em financiar défices
orçamentais de governos tais como o da Grécia que são
incapazes ou não desejosos de tributar a riqueza e cujos privilegiados
(insiders) controlam a despesa pública e os contratos. Isto meramente
subsidiaria a evasão fiscal e a política fiscal errada com o
crédito do BCE proporcionado em última análise
pelos contribuintes europeus. O problema profundo o qual pouco tem sido
discutido é que a política fiscal da Eurozona é o
oposto do que economistas clássicos definiram como mercados livres
mercados livres de rendimento não ganho, a começar pelo
valor da terra oriundo do que é proporcionado pela natureza e cada vez
mais valorizado pelos gastos em infraestruturas públicas (ex.: em
serviços de transportes, águas e esgotos) e o nível geral
de prosperidade. A renda económica é independente do
próprio investimento ou dos custos do proprietário da terra, da
habitação ou da mina. O que torna isto um almoço
grátis é que, por definição, ele não tem
contrapartida nos desembolsos do próprio beneficiário
excepto para financiar a compra de um privilégio ou activo com
extracção de renda.
Ao invés da tributação progressiva da terra, dos recursos
naturais e do "rendimento não ganho" (renda económica),
o sistema fiscal subsidia a criação de dívida e promove a
inflação do preço de activos ao favorecer ganhos de
preços por dívida alavancada e tornar os pagamentos de juros
isentos de tributos. Isto significa que a reforma fiscal é
necessária para avançar com a reforma financeira. O problema com
a Grécia não é meramente a sua evasão fiscal
generalizada pela camada mais rica da economia, a qual normalmente pagaria a
maior parte dos impostos (como por muito tempo foi o caso nos principais
países industriais). Governos estão a tributar as fontes erradas
de rendimento: salários e lucros, em vez de renda.
Sob as presentes condições, o colapso da Eurozona é
inevitável
O colapso económico da Eurozona não é acidental. Os
lobistas bancários que capturaram a política financeira e fiscal
do continente plantaram as raízes dos problemas da dívida da
Grécia, Irlanda, Espanha, Itália e Portugal no momento da
criação do euro,
1. ao não permitir à União Europeia criar um banco central
adequado para monetarizar défices governamentais. Isto obriga governos a
tomarem empréstimos de bancos a juros para criar um crédito que
os bancos centrais públicos poderiam fazer muito facilmente nos seus
próprios teclados de computador. Os credores utilizam a necessidade do
governo para rolar
(roll over)
a dívida pública como uma alavanca para impor austeridade,
eufemizada como "confiança". Ao invés de estimular
confiança, a subida das taxas de juro e as crises políticas
estimulam fugas de capitais e corridas bancárias (ex.: Grécia e
Espanha). 2.
2. ao forçar governos a minimizarem estes défices para apenas 3%
do PIB demasiado baixo para estimular a recuperação face
à deflação da dívida de hoje.
3. ao promover uma mudança fiscal anti-progressisva afastando-a do
imobiliário e das finanças (e em geral dos escalões mais
altos de rendimento) para salários e lucros. Isto eleva o custo de vida
e de fazer negócio enquanto impostos mais baixo sobre a
propriedade deixam mais renda a ser capitalizada em empréstimos
bancários. 4.
4. ao desonerar fiscalmente ganhos de capital e considerar pagamentos de juros
como fiscalmente dedutíveis. Isto encoraja a alavancagem de
dívida para fazer aumentar os preços da habitação e
outros activos. Desviar poupanças para a especulação torna
as economias rentistas menos competitivas, e também menos justas. 5.
5. ao afrouxar regulamentações bancárias para permitir que
empréstimos bancários improdutivos inchem preços de
activos ao invés de financiar novos meios de produção. Uma
corrida para a base comutou o centro financeiro para Londres, onde a
desregulamentação levou a uma competição plena de
irresponsabilidade (ex: a derrocada do Icesave), enquanto nos Estados Unidos a
fraude financeira foi efectivamente descriminalizada. 6.
6. ao salvar bancos e possuidores de títulos quando chegou o momento de
finalmente os governos criarem nova dívida em resposta à crise
financeira. Ao invés de aumentar a despesa social ou reduzir a
dívida e empréstimos podres, os governos (por pressão do
BCE) assumiram as dívidas podres nos balanços públicos,
deixando o encargo da dívida no lugar. Isto exacerba a
deflação da dívida, contraindo ainda mais as economias,
reembolsando os 1% a custas do empobrecimento dos 99%. Isto coloca o sector
financeiro não só contra o trabalho como também contra a
economia produtiva em geral.
As instituições financeiras
tornaram-se mais extractivas do que produtivas, não só
directamente como credores e administradores do dinheiro mas também como
lobistas por regras fiscais que subsidiam dívida ao invés do
investimento directo. Uma vez iniciado, o encargo da dívida cresce
exponencialmente até um ponto em que contrai a capacidade da economia
para pagar e investir produtivamente, provocando incumprimentos e
execuções. A resposta política dos bancos é
insistir em que os governos substituam empréstimos podres do sector
privado por dívida pública.
Isto significa criar dinheiro
só para beneficiar os bancos e outros credores, não para ajudar a
economia produtiva não financeira. Quase sem que os eleitores percebam,
o papel tradicional do governo foi invertido para servir credores, não a
economia "real". Em princípio (pelo menos tal como é
entendido popularmente), supõe-se que bancos centrais gastem para
promover crescimento económico e pleno emprego, não para ganhar
retornos financeiros carregando economias com dívida. Mas desde 2008 a
Reserva Federal dos EUA quis inchar outra vez a bolha financeira, não
estimular a economia "real". Aos governos da UE, tendo as suas
mãos monetárias amarradas enquanto os bancos comerciais inchavam
os preços dos activos muito para além da capacidade dos devedores
pagarem, é-lhes agora dito para assumir dívidas podres nos suas
contas (ex.: Irlanda, Grécia, Portugal e Espanha) e extorquir bastante
receita fiscal adicional a fim de pagar juros aos felizes possuidores de
títulos que obtiveram "dinheiro por lixo"
("cash for trash").
A ficção que opera aqui é que austeridade pode extorquir
mais dinheiro, ao invés de piorar o défice. O ultraje moral
é que os 99% devem ser tributados para fazer os 1% íntegros
na sua fatia de riqueza, a qual duplicou durante a bolha financeira,
como se esta estivesse construída dentro da estrutura moral da
própria natureza! Isto é ultrajante.
A magnitude impagavelmente elevada das dívidas não é
acidental e não pode ser sanada meramente por reformas marginais sem
cancelamento do encargo da dívida. Não é possível
preservar a actual estrutura financeira e deixar o encargo da dívida no
seu lugar. Isto significa que os salvamentos bancários são em
vão excepto para permitir aos especuladores existentes,
depositantes e investidores apanharem o seu dinheiro e fugirem. Em contraste
com a história contada como cobertura política de que
salvá-los "restaurará a confiança", banqueiros
estão a utilizar subsídios do banco central para abandonarem o
navio económico. Analistas financeiros refinados sabem que no fim o
encargo da dívida deve tornar-se incobrável. Esta é a
realidade que os bancos desejam expurgar do curriculum académico e,
ainda mais importante, da consciência pública porque mostra
que em última análise os salvamentos serão vãos.
A ilusão de restaurar a estabilidade pode ser sustentada só pela
criação de nova dívida governamental e salvamentos para
alimentar o crescimento exponencial do encargo da dívida. O BCE
está a proporcionar bastante liquidez a bancos para emprestarem a
governos devedores o suficiente para mantê-los a pagar seus detentores de
títulos e salvar banqueiros. Isto cria uma câmara de eco
financeira. Bancos financiam governos, os quais financiam os bancos. A Reserva
Federal dos EUA abriu o caminho ao inundar os mercados de dinheiro com liquidez
de modo a que banqueiros pudessem emprestar a devedores hipotecários o
suficiente para pagarem suas dívidas vencidas, mesmo para a propriedade
em situação líquida negativa (com hipotecas que excedem o
preço de mercado).
O objectivo é manter viva a ilusão
de que dívidas podem ser pagas ao ajudar a economia a "tomar
emprestada a sua saída da dívida". Enquanto isso, a
deflação da dívida impede a economia de "ganhar a sua
saída da dívida". Em economias infestadas de austeridade, a
concessão de empréstimo dificilmente pode ser produtiva, porque
há pouco motivo para investir quando as vendas caem, as lojas de retalho
fecham e mais devedores entram em incumprimento.
Portanto parece absurdo
pensar que propagandistas da banca possam progredir muito com a sua
afirmação de que o sistema financeiro entrará em colapso a
menos que governos os salvem. O que eles realmente querem é simplesmente
salvar seus accionistas e possuidores de títulos de perderem os ganhos
descomunais que obtiveram ao longo da última década.
Cenários assustadores são pintados acerca de como liquidar
reservas bancárias porá em perigo poupanças de
depositantes, porque poupanças de uma parte são a dívida
da outra afinal de contas. Assim, os 1% devem ser salvos como se isto fosse
para o bem dos 99% as proverbiais viúvas e órfãos
e, especialmente, aposentados e seus fundos de pensões, todos os quais
são conceptualizados como a viverem de depósitos investidos em
títulos bancários e fundos de risco (hedge funds).
O que
é preciso reconhecer é que mesmo se os governos financiarem mais
gastos deficitários a este ponto, é difícil ver como isto
pode ascender a uma magnitude suficiente para compensar o impacto da
deflação da dívida isto é, os juros e
amortizações para arcar com dívidas do passado, cujos
pagamentos deixam menos rendimento disponível para gastar em bens e
serviços.
O encargo das poupanças é o problema, porque é
sinónimo de encargo de dívida
É tempo de perguntar se é desejável que as economias
poupem, pelo menos que poupem de acordo com as linhas actuais mesmo
poupar para aposentadoria. O problema é que poupanças tendem a
concentrar riqueza no topo da pirâmide económica e fazem isto
parasitariamente quando são emprestadas para se tornarem dívidas
de outras partes. Reestruturar o sistema financeiro é especialmente
importante para financiar pensões e a Segurança Social, para
reorganizá-los mais de acordo com as linhas do sistema alemão do
pagamento imediato
(pay-as-you-go)
a invés daquele financeirizado por fazer dinheiro através do
empréstimo e especulação como nos Estados Unidos.
O
problema com o nosso sistema actual é que quase todas as
poupanças financeiras de hoje são emprestadas, ao invés de
tomarem a forma de novo investimento directo para aumentar os meios de
produção ou elevar padrões de vida. A maior parte do
investimento corporativo é feito com ganhos retidos. Empréstimos
bancários afectam o sector corporativo principalmente pela
alimentação de aquisições (
takeovers)
e aquisições alavancadas (
leveraged buyouts)
de companhias já existentes e maduras para o despojamento de
activos.
Este não é o quadro feliz pintado pelos manuais de
teoria económica, com bancos a emprestarem poupanças para
fábricas com chaminés e fumo a delas saírem e
trabalhadores a andarem com as suas marmitas do almoço, presumivelmente
para receberem os cheques de pagamento. Tais diagramas enganosos (pelo menos
nos manuais americanos) são destinados a lavar o cérebro de
estudantes levando-os a acreditar que as finanças desempenham um
inerente papel simbiótico com a indústria e a economia em geral,
ao invés de ser uma intrusão externa algo que se assemelha
mais ao relacionamento entre gafanhotos e quinta agrícola do que a um
sistema mutuamente benéfico. Quando devedores pagam aos seus banqueiros,
eles têm menos para gastar na economia real da produção e
do consumo. E quando banqueiros fazem os empréstimos que extraem este
rendimento, o crédito não é o que as pessoas pouparam, mas
sim o que os banqueiros criaram nos seus próprios teclados.
"Empréstimos criam depósitos", não ao
contrário. E a vasta maioria destes empréstimos são para
comprar activos já existentes: para transferir a propriedade de
imóveis, acções e títulos com crédito,
elevando os seus preços no processo enquanto deflacionam a
"economia real". Eis porque a inflação de preços
de activos encontra o seu complemento natural na deflação da
dívida da economia em geral.
O que os manuais deveriam explicar
é que sob o sistema financeiro de hoje, quanto mais uma economia poupa,
mais ela deve. Isto não seria um problema se as poupanças fossem
emprestadas produtivamente, de maneira que permitissem ao tomador do
empréstimo ganhar o rendimento para reembolsar a dívida com o seu
juro. Mas o plano de negócios do sistema bancário é
convencer os tomadores de empréstimos de que podem pagar dívidas
pela compra de activos cujo preço está a ser elevado pelo aumento
exponencial do crédito bancário. A ideia é emprestar mais
contra todo o activo e fluxo de rendimento, exigindo entradas mais pequenas e
amortização mais lenta do saldo em dívida. O truque
é convencer tomadores de empréstimos que estão a ficar
mais ricos na medida em que os preços das casas, acções e
títulos estão a subir mais depressa do que a dívida
está a aumentar.
Esta ascensão de preços de activos
aumenta o rácio da propriedade em relação ao nível
salarial do trabalho. E quando os preços afundam, as dívidas
permanecem intactas. Isto é o que a ortodoxia económica e seus
manuais deixam de fora da história. Mas é o modelo
paradigmático das bolhas financeiras.
O que é
necessário depois de deixar a bolha actual explodir e com isso
liquidar o encargo das dívidas podres é impedir a
recorrência da Economia da Bolha, através da
reestruturação do sistema financeiro de acordo com linhas mais
produtivas. Mas os bancos estão a combater com unhas e dentes contra uma
tal reestruturação, porque ela significa rejeitar a época
Thatcher-Reagan do neoliberalismo da Escola de Chicago patrocinado pelos bancos
a expensas da economia como um todo.
De modo mais imediato, este
entendimento da dinâmica da dívida sugere uma necessidade de os
governos proporcionarem uma "opção pública" para
a poupança bem como para a criação de dinheiro,
cartões de crédito e outra infraestrutura financeira que na
verdade é necessária para a economia quotidiana funcionar
eficientemente. O objectivo deveria ser promover a formação de
capital tangível e minimizar o custo de vida e de fazer negócio,
não o crédito improdutivo baseado na inflação do
preços de activos e em bolhas imobiliárias financeirizadas, assim
como em bolhas do mercado do mercado de acções.
As
políticas da
Quantitative Easing
rebaixaram as taxas de juro para apenas 1% nos Estados Unidos e
Grã-Bretanha. Isto levou planos de pensão e companhias de seguros
a procurarem desesperadamente taxas de retorno mais elevadas e eles
assim o fizeram através de jogos arriscados em derivativos. Tipicamente
estes têm perdido dinheiro, não dando os ganhos esperados, pois
vivaços de Wall Street impingiram seus clientes com maus swaps de taxas
de juro e outros negócios com mau resultado. A desculpa habitual
é que "Ninguém podia ter antecipado estes problemas.
Ninguém podia ter previsto o crash". Mas grandes
porções dos fundos de pensões e sector dos seguros foram
deixados com situação líquida negativa enquanto os
seus administradores pagaram a si próprios enormes bónus e os
seus accionistas receberam enormes dividendos durante a corrida.
Como a inflação do preço de activos leva à
deflação da dívida
As dívidas devem ser pagas com rendimentos ganhos algures. E como o
volume da dívida aumenta, os pagamentos de juros e outros encargos
desvia rendimento pessoal e corporativo afastando-o do gasto em bens e
serviços. (Estes pagamentos também reduzem receitas fiscais,
porque foi definido os juros serem uma despesa fiscalmente dedutível).
Os mercados contraem-se, o investimento e o emprego desaceleram e os devedores
têm menos capacidade para pagar o seu serviço da dívida (ou
os impostos). A deflação da dívida acontece, juntamente
com um esmagamento fiscal e isto é considerado uma crise.
O
que é exactamente esta crise? Da perspectiva privilegiada dos credores
de riqueza no topo da pirâmide económica, o problema é
simplesmente de como os 1% mais ricos da população os
quais duplicaram sua fatia de riqueza ao longo da última
geração podem evitar ter de abandonar os seus ganhos
notáveis. Estes ganhos foram obtidos devido ao endividamento dos 99% da
base e recebendo a fatia do leão dos ganhos de preços de activos
alavancados por dívida. Para evitar a recessão aparentemente
normal destes ganhos, os governos e a população como um todo deve
suportar a perda. Famílias devem perder, negócios devem ir
abaixo, governos locais e nacional podem entrar em colapso e sociedades devem
sofrer níveis salariais mais baixos, de modo a que bancos e outros
credores não percam nem um cêntimo.
O narcisismo da riqueza
induz os credores a pretenderem que a fluorescência da Bolha da Economia
era normal, não uma distorção. Os ricos e as suas
instituições financeiras querem duplicar outra vez a sua fatia do
rendimento e da propriedade, e depois continuar a aumentar mesmo até ao
ponto em que o resto da sociedade esteja mergulhada na miséria, o
trabalho emigre, as taxas de natalidade caiam e a economia morra.
Este
é o resultado do "crescimento" do sistema financeiro a
aumentar preços de activos pela alavancagem da dívida. Isto
não é realmente novidade no mundo. Isaías
[NT 1]
descreveu credores e latifundiários que obtinham casa a casa e terreno
a terreno até que já não havia espaço restante para
o povo na terra.
Atar as mãos do governo privando-o de um banco central para criar
dinheiro
A Era Progressista anterior à I Guerra Mundial, e mesmo a democracia
económica após a II Guerra, imaginavam uma economia mista
público/privada na qual os governos proporcionariam infraestrutura
básica numa base subsidiada e regulava mercados para orientar
poupanças e dinheiro fresco ou criação de crédito
de acordo com linhas produtivas. Mas o Artigo 123 do Tratado de Lisboa assinala
este papel a bancos comerciais incluindo o de financiar défices
orçamentais do governo, ao impedir bancos centrais de emprestarem a
governos.
Este constrangimento impede governos de monetizarem o gasto necessário
para puxarem as economias de hoje para fora da depressão pós
2008. Ele impõe uma mudança da criação
pública de dinheiro para a do crédito da banca comercial e
como foi observado acima, este crédito bancário assume a forma de
irresponsavelmente inchar preços de activos e fazer soçobrar o
crédito. Nesta nova abordagem "neoliberal", o papel do governo
não é fornecer a economia com dinheiro, mas deixa isto aos bancos
e então actuar como fiadores
(guarantors)
da dívida mesmo quando os bancos emprestam mais do que os seus devedores
são capazes de pagar.
Os lobistas da banca defendem estas algemas monetárias com a
afirmação obscena e historicamente falsa de que o financiamento
público é inerentemente inflacionário, mesmo
hiper-inflacionário. A implicação é que bancos
comerciais são mais responsáveis do que bancos centrais e que a
sua criação de crédito nos seus próprios teclados
é menos inflacionista do que quando os governos fazem isto para despesas
sociais ou investimento em infraestruturas. Porém os bancos comerciais
alimentaram a mais rápida e maior inflação de
preços de activos na história! Ao afrouxarem os termos do
crédito hipotecário e mesmo obtendo garantias públicas
para empréstimos irresponsáveis e nos Estados Unidos,
fazem lobing para descriminalizar a fraude financeira ou pelo menos para
desregulamentá-la e para insistir na nomeação de
responsáveis legais que se recusam a processá-los
obrigaram compradores de casa a pagar mais por habitação
alavancada por dívida e os investidores a pagarem mais por activos que
vão desde edifícios de escritórios até
acções e títulos, elevando dessa forma o preço de
aquisição de um rendimento para a aposentação ou,
para fundos de pensões, de pagar uma pensão.
O objectivo deste jogo financeiro é transferir o excedente
económico para as mãos de uma neo-oligarquia emergente composta
por banqueiros, possuidores de títulos e outros credores. A sua
estratégia é emprestar contra o imobiliário e activos
corporativos e fluxos de rendimento, enquanto fazem lobing para fazer com que
os códigos fiscais sirvam interesses rentistas ao favorecer a
extracção de renda ao invés de investimento novo. A
especulação com ganhos nos preços dos activos obtém
preferência fiscal em relação ao financiamento produtivo.
Os tomadores dos empréstimos são capazes de reembolsar o seu
empréstimo com juros principalmente pela contracção de
mais empréstimos contra o imobiliário, acções ou
títulos cujo preço está a ser inflacionado pela
criação de crédito da banca comercial.
Enquanto isso, a economia como um todo perde quando o produto e o emprego
afundam enquanto sobem os preços para o consumidor de bens e
serviços. Esta é a fase pós crash do ciclo da
dívida. Assim, exactamente como eles receberam o rendimento que foi
transmutado em pagamentos de juros sobre empréstimos bancários
durante a fase de ascensão, eles arrestam propriedade durante a fase de
declínio. A crise decorrente também se torna uma oportunidade
para credores talharem activos públicos, em programas de
privatização ditados pelo FMI, Banco Mundial e burocracias da UE
a actuarem por conta dos credores globais.
Sob tais condições o grande problema é saber como a
economia pode evitar a contracção, se o serviço da
dívida está a retirar mais receita do que o défice do
sector público está a proporcionar para o sector privado. Mas
nenhum governo calcula esta escolha
(tradeoff)
entre a retirada de rendimento da produção e dos mercados de
consumo em comparação com o défice fiscal
necessário para restaurar o poder de compra geral que está a ser
drenado. Os interesses financeiros consideram qualquer tentativa de
análise a sugerir que o seu comportamento é extractivo ao
invés de produtivo como um ataque potencial e mesmo uma "guerra de
classe". Lobistas bancários preferem popularizar o mito de que as
economias podem ficar ricas com o aumento dos preços do
imobiliário, das acções e dos títulos a
crédito mais rápido do que o crescimento da dívida
como se pagar juros não contraísse o mercado para bens e
serviços e, portanto, o emprego.
A falha em tratar esta dinâmica da dívida a tendência
do crédito bancário para inchar preços de activos e dos
juros para drenarem poder de compra da economia é a razão
principal porque investidores globais, bem como os gregos e outros eleitores
perderam a fé na Eurozona. Ela foi sequestrada por planeadores centrais
retirados do sector financeiro. Eles têm-se mostrado incompetentes no
melhor dos casos e, no pior, deliberadamente enganosos quando impedem bancos
centrais de criarem dinheiro para emprestarem a governos ao
atribuírem as culpas da hiper-inflação alemã
à impressão de dinheiro pelo Reichsbank para gastos internos ao
invés da sua tentativa de pagar dívidas com divisas estrangeiras
ao exterior.
Levar a divisa ao colapso pela tentativa de pagar credores estrangeiros
é o que países do Terceiro Mundo foram obrigados a fazer durante
muitas década sob a tutela do FMI. Isto é o destino que confronta
a Grécia se não houver anulação da dívida e
o país reverter ao dracma. Isto tornaria dívidas em euros ou
outra moeda estrangeira mais caros para pagar em moeda interna, elevando
preços de importação proporcionalmente pouco
importando o ritmo da criação de moeda interna ou os
défices do governo.
Porquê os ganhos de produtividade dos últimos 50 anos não
nos tornaram todos ricos?
A austeridade de hoje não é o resultado de tecnologia,
rendimentos decrescentes ou esgotamento de recursos. O que impede ganhos de
produtividade de serem traduzidos em padrões de vida ascendentes
é o sector financeiro anexar dívida aos activos e fluxos de
rendimento da economia a uma taxa em expansão exponencial. Isto desvia a
renda da terra, a renda de recursos, lucros industriais, rendimento pessoal
disponível e receita fiscal para um fluxo de juros a pagar a banqueiros
e portadores de títulos cujos empréstimos elevam
preços de activos, de modo que comprar uma casa, por exemplo, exige
afundar ainda mais em dívida.
O plano de negócios dos banqueiros é criar crédito
até ao ponto em que todas as receitas disponíveis
"livres" estejam comprometidas no pagamento de juros. O objectivo
não é ajudar economias a crescerem ou financiar nova
formação de capital. Isso é incidental para o objectivo de
capitalizar renda, lucro e rendimento pessoal disponível para dentro de
empréstimos bancários. O problema é que isto é
destrutivo para a economia como um todo e, portanto, para a própria
viabilidade do sistema bancário. Sugar financeiramente do excedente leva
a arrestos de propriedades, incluindo privatizações de empresas
públicas e infraestruturas a crédito, permitindo aos seus
compradores evitar pagarem impostos, graças à dedutibilidade
fiscal de pagamentos de juros observada acima. A partir de então, aos
serviços gratuitos ou subsidiados devem ser impostas portagens para
extracção de rendas.
Nunca desde a Idade Média e a colonização do Novo Mundo,
da África e da Ásia o mundo assistiu a uma guerra
económica tão agressiva. O plano concebido em 2011 para a
Grécia tornar-se uma pagadora de tributos confronta os eleitores com uma
condição para permanecer como parte da Eurozona que
ninguém esperava há uma década atrás: substituir a
democracia por uma oligarquia rentista administrada por tecnocratas
financeiros. O governo é para servir banqueiros e possuidores de
títulos pela actuação como seu colector de dívida.
A conquista de hoje, portanto, é financeira e não militar. E o
que é tão notável é que está a ser travada
na arena ideológica, como se fosse tudo para o bem! A ilusão de
que ela abre caminho para melhor crescimento envolve o expurgo da
memória da teoria económica clássica. Rentistas reconhecem
que a maior defesa contra o seu ataque é restaurar a
distinção clássica entre rendimento ganho e rendimento
não ganho, e entre crédito produtivo e improdutivo. Estas
são as ferramentas analíticas mais eficazes para guiar a reforma
fiscal e financeira e a economia equilibrada entre público/privado
imaginada na Era Progressista a fim de conter os interesses especiais e suas
garras privatizadoras.
Os banqueiros são os novos planeadores centrais e o seu plano
é a austeridade
Quando a Grécia, Itália e Espanha aderiram à Eurozona,
muitos eleitores esperavam que além do objectivo óbvio de acabar
com muitos séculos de guerra, o projecto europeu criaria uma economia
mais justa pelo saneamento da corrupção política local e
travagem da evasão fiscal notoriamente generalizada por parte dos ricos.
Tenho ouvido italianos a dizerem que um controle mais activo da UE deveria
tê-los salvo de Berlusconi, ao passo que em Espanha os bascos esperavam
que o pan-europeísmo tornaria as suas tensões regionais com o
governo nacional uma coisa do passado.
Tal optimismo não era justificado, porque a constituição
da UE não proporciona limpeza da corrupção ou
cobrança eficiente de impostos nem mesmo um código fiscal
uniforme. Mesmo assim, poucos eleitores anteciparam que neoliberais
sequestrariam a governação da UE para proteger banqueiros de
perdas, a expensas públicas com um aprofundamento da austeridade sendo a
"solução" para uma década de empréstimos
irresponsáveis dos bancos.
Porque é que os eleitores deveriam aprovar uma União Europeia
assim estruturada? Se ela não pode limpar corrupção local
e promover rendimento justo e tributação sobre a propriedade, e
se não pode criar um banco central ajudar a retirar economias da
depressão, então qual é o seu apelo? O que é que
uma Europa unida tem para oferecer aos consumidores ou aos negócios se
ela sujeita o continente à austeridade financeira e fiscal até
países inteiros tais como a Irlanda?
A Grécia e outros países da "orla Sul" não
estão a rejeitar a sua identidade europeia como tal. Estão a
rejeitar a austeridade. A Eurozona está em perigo de romper porque se
tornou um meio de banqueiros fazerem planeamento central, ou pelo menos por sua
conta. Neoliberais acusam o planeamento governamental de ser ineficiente, mas o
planeamento central por banqueiros ameaça resolver a crise actual pela
imposição da depressão. Isto é o que a Eurozona
acabou por significar quando os 1% no topo da pirâmide económica
procuram aumentar o seu poder sobre uma força de trabalho,
indústria e governos cada vez mais endividados.
Parece inevitável que a Europa continental acabe por alterar a
política do seu banco central para monetizar défices
orçamentais de acordo com as linhas que a Grã-Bretanha, os
Estados Unidos, a Coreia e outras economias industriais têm estado a
praticar. Mas mesmo assim, não é desejável imprimir
dinheiro simplesmente para financiar défices orçamentais que
decorrem da não tributação da terra, de monopólios,
das finanças e outros actividades extractivas de renda. Também
é insensato criar bastante dinheiro para emprestar ao público
para pagar o encargo de uma dívida insolvente pela
contracção de mais empréstimo.
Um modelo a ser evitado é a política do Reserva Federal dos EUA
de levar as hipotecas lixo dos bancos para dentro do seu balanço
sem reduzir as dívidas dos proprietários de casas em
situação líquida negativa. Quando o financiamento de
salvação do governo excede o valor líquido das reservas da
banca, então o governo tornou-se efectivamente o seu
proprietário. Os accionistas são eliminados, o que dá ao
governo uma oportunidade para possuir e operar o sistema financeiro como uma
opção pública.
Um recomeço: Pensar acerca do impensável
A austeridade financeira pode ser evitada através do corte da sua raiz
principal: dívidas que foram criados pela (1) não
tributação do "almoço grátis" da renda
económica da terra, recursos minerais e monopólios para
capitalizá-la em empréstimos bancários; e (2) não
tributação da riqueza herdada, dos escalões mais altos de
rendimento e dos ganhos de capital. A "libertação" do
rendimento rentista da tributação permitiu aos bancos
capitalizá-la em empréstimos maiores para aumentar preços
da propriedade, ao passo que cortes fiscais levaram a défices do governo
tão grandes quanto uma guerra costumava provocar. Os défices
orçamentais resultantes são utilizados como uma oportunidade para
credores exigirem a privatização da infraestrutura
pública.
Recuperar confiança fiscal sobre a terra e outros activos que
proporcionam renda e recuperar infraestrutura básica para o
domínio público ou, pelo menos, regular seus preços para
alinhá-los com os custos de produção tecnologicamente
necessários é tornado problemático pelo facto de
que a sua renda já ter sido comprometida pelos bancos como
serviço da dívida. Assim, a política de livre mercado de
hoje implica incumprimentos, reduções de dívida e mais
profunda insolvência da banca. O raio de esperança é que
esta situação abre o caminho para fazer do sistema financeiro um
serviço de utilidade pública tal como originalmente pretendido!
Os benefícios que a Alemanha recebeu da sua Reforma Monetária de
1947 proporcionam uma lição objectiva. Permitir à Alemanha
começar livre de dívida permitiu à sua indústria
começar sem encargos financeiros, acelerando a sua
recuperação económica e servir de baluarte contra o
comunismo. Foi fácil para os Aliados anular dívidas alemãs
em 1947 porque eram devidas principalmente a antigos nazis. É mais
difícil cancelar dívidas devidas aos que hoje têm direitos
adquiridos
(vested interests),
especialmente a fundos de pensões e poupanças populares. Eis como
o profundo alavancamento de dívida se tornou entrelaçado com a
economia da produção-e-consumo para tornar um Recomeço
(Clean Slate)
mais politicamente radical hoje do que um século atrás.
Todos os países emergiram da II Guerra Mundial com relativamente pouca
dívida do sector privado. Porém cada recuperação
desde aquele tempo começou de um nível mais elevado de
dívida. Isto tem actuado como um travão, fazendo cada nova
recuperação mais fraca do que a anterior como a tentar
conduzir um carro com o travão cada vez mais pressionado e mais rente ao
chão.
O que torna o cancelamento de dívida politicamente problemático
é que ele implica cancelar poupanças num lado do balanço.
A dívida de uma parte é a poupança de outra. Mais
especificamente, as dívidas dos 99% são as poupanças dos
1% e apesar dos enfeites democráticos de hoje, os 1% controlam o
governo. Bancos e outros credores agora estão muito mais fortemente
posicionados para se oporem a reduções das suas pretensões
(claims)
sobre a economia não financeira. E eles estão desejosos de impor
a depressão na Europa a fim de colectá-las plenamente. Mas em
última análise devem perder quando economias caem na
depressão. Isto é que é tão auto-destrutivo na sua
posição. Reservas bancárias são liquidadas quando o
fardo da dívida cede e as dívidas ficam por pagar.
Isto não precisa ser uma tragédia para a sociedade como um todo.
Alguém deve arcar com a perda e é preferível para o sector
financeiro renunciar aos seus enormes ganhos recentes do que para a economia
parar de labutar. As economias podem recuperar quando os bancos reabrirem sob
administração pública nos seus mesmo gabinetes
físicos, ao passo que o governo deixa os depositantes assegurados com um
mínimo de fundos operacionais.
Assim como o seu Milagre Económico começou com um cancelamento de
dívida, um Euro viável começaria melhor com um
Recomeço
(Clean Slate)
semelhante para ressuscitar hoje a economia. Tal como em 1947, o governo
poderia reembolsar depositantes para fundos operacionais básicos. Ao
tornar a sua economia livre de dívida como foi o caso após a II
Guerra Mundial, a Europa pode tornar a criar o
boom
de setenta anos atrás. O papel de um Recomeço, afinal de contas,
é restaurar a normalidade do
status quo
ante. Ela não distorce tanto pois revertem recentes
distorções financeiras. Sob este aspecto é mais
conservadora do que radical.
Um Recomeço tem o efeito positivo de eliminar a explosiva alavancagem de
dívida que conduziu governos europeus, negócios,
imobiliário e famílias ao seu buraco actual.
"Desalavancagem" pagar à vista uma dívida a
partir do rendimento actual teria um efeito semelhante à
poupança keynesiana na forma de "entesouramento". Impediria o
rendimento de ser gasto na produção actual, exacerbando com isso
a deflação da dívida e a depressão. Uma
redução organizada de dívidas é menos destruidor do
que não cancelá-las. Apesar dos uivos do sector financeiro de que
liquidá-las é desestabilizar (um eufemismo para fazê-los
assumir uma perda numa sistema financeiro que foi mal estruturado desde o
princípio), a realidade é que deixar estas dívidas na
contabilidade é ainda mais desestabilizador porque o encargo da
dívida simplesmente não pode ser pago. Tentar hoje manter
dívidas do sector público e privado na contabilidade
provocará perdas ainda mais drásticas e polarização
económica entre credores e devedores.
Um realinhamento político europeu?
Bancos repetem a afirmação censórea de Margaret Thatcher
de que "Não há alternativa" ao seu plano de
negócios de anexar dívida ao todo o excedente económico. O
objectivo conclusão lógica da inexorável
matemática do juro composto é para que todo fluxo de caixa
corporativo, renda imobiliária além dos custos de
equilíbrio e rendimento pessoal disponível além da
subsistência básica seja pago como juros. Quando estas
dívidas se acumulam para além da capacidade de serem pagas, a
"troika" do BCE, UE e FMI insistem em que o trabalho deve reduzir o
seu consumo e abandonar direitos e privilégios que conquistou ao longo
do século passado. Os consumidores devem ser tributados mais pesadamente
e os gastos públicos devem ser reduzidos para extorquir mais excedente
fiscal para pagar aos banqueiros e possuidores de títulos. Em suma, a
Europa deve ser sujeita à mesma espécie de austeridade que
arruinou devedores latino-americanos e outros devedores do Terceiro Mundo
durante tantas décadas perdidas.
Esta criação de privilégios rentistas de tipo feudal
reverteria muitos séculos de reforma. É uma versão
financeira do apresamento militar que tomava a terra e impunha tributos
há um milénio atrás.
Há uma alternativa, naturalmente, a Europa não precisa
empobrecer-se. Ela pode criar um banco central real e uma
"opção pública" na banca. Pode renovar os
séculos de reformas de mercado livre para tributar terra e direitos do
subsolo, monopólios naturais e privilégios especiais ou
retorná-los para o domínio público pela
desprivatização ao invés de deixar esta
extracção de renda "gratuita" ser capitalizada em
empréstimos bancários. A Europa colocou um sistema
tributário financeiro em vigor e absorveu mesmo pensões e
poupanças populares neste sistema.
A guerra financeira está a afundar a Europa sem que a maior parte das
populações perceba mesmo que está a ser travada contra ela
e também contra a indústria. Acima de tudo, os interesses
financeiros procuram desqualificar os governos, os quais são o
único poder com força suficiente para tributar e impor o seu
poder via regulamentação pública e um banco central com
uma opção pública para proporcionar serviços
monetários básicos.
Para resistir a este ataque, os partidos políticos da Europa precisam
reviver o caminho ao longo do qual a maior parte viajava antes da I Guerra
Mundial. Isto exige a reintrodução da história da teoria
económica clássica no curriculum académico para
contrapor-se à censura que a ideologia neoliberal impôs à
educação e discussão política nos media populares.
Uma estratégia neoliberal paralela foi transformada em religião
seguindo linhas não económicas de modo a impedi-la de desempenhar
o papel político que teve em séculos passados, desde os
Escolásticos do século XIII e à denúncia da usura
de Martinho Lutero até ao socialismo cristão, encíclicas
papais e naturalmente a Teologia da Libertação. Adam Smith era
professor de Filosofia Moral e ao longo de grande parte do século XIX as
universidades continuaram a ensinar o pensamento económico como ramo da
filosofia moral. A chave comum para esta longa tradição era ligar
valores éticos à ciência económica pela teoria do
valor e do preço: a ideia de que pessoas ganhariam rendimento ao
providenciarem um serviço produtivo para a sociedade, não
simplesmente tomando-o ou pela usura, a extracção de renda ou
outro rendimento injusto.
O desafio neoliberal
Ao rejeitarem esta teoria do valor e do preço, os advogados rentistas
distorcem o foco histórico da religião. Negar que qualquer
rendimento é não merecido
(unearned)
ou que renda económica e juros são pagamentos de
transferência definidos como rendimento não baseados em
qualquer custo necessário de produção os
neoliberais substituem a filosofia moral clássica por uma caricatura de
ciência favorável aos rentistas. A Contabilidade Nacional do
Rendimento e do Produto de hoje omite ganhos de "capital" da
inflação do preço dos activos, mas isto representa a maior
parte da acumulação de riqueza da Bolha Económica. (A
minha recente colecção de ensaios,
The Bubble and Beyond,
revê o modo como a teoria económica foi transformada num conjunto
de tautologias). Mais gravemente, a falha em perceber que o volume total de
dívidas não pode ser pago e na verdade colocar isto no
próprio centro da lógica económica é como
negar o aquecimento global
[NT 2]
.
O termo "neoliberalismo" rapta a ideia liberal clássica de
mercados livres que pretendia erguer defesas contra o privilégio
especial e o rendimento não merecido. Para os economistas
clássicos um mercado livre significa aquele livre de rendimentos
não merecidos, definidos como renda da terra, renda de recursos
naturais, renda de monopólio e renda extraída do
privilégio. Os neoliberais invertem esta ideia. Tal como utilizado por
eles, um mercado livre é aquele livre de impostos ou
regulamentações de tais rendimentos rentistas, dando a tais
receitas (e ganhos de capital) favoritismo fiscal em relação aos
salários e aos lucros. As finanças são portanto livres
para operarem sem peias quando governos são tratados como o inimigo,
não como protectores da prosperidade comum.
Ao libertarem mercados da regulamentação e
tributação pública isto é, pelo
desmantelamento de sistemas de verificações e
limitações
(checks and balances)
contra a exploração e almoços grátis o
neoliberalismo torna-se uma doutrina de planeamento central. O efeito é
substituir o poder público para proteger o público por um poder
oligárquico para oprimi-lo, desqualificando a autoridade pública
para regular e tributar as finanças e seus clientes dedicados à
extracção de renda. Chamar a isto "liberdade",
"livre escolha" ou "mercados livre" é um
exercício de duplo pensamento Orwelliano.
Quanto a isto, o neoliberalismo é uma doutrina de poder e autocracia,
uma preparação da teoria económica para a guerra
financeira de hoje contra a economia como um todo. O seu programa fiscal
é não tributar bancos e companhias de seguros, imóveis e
monopólios. O resultado é uma guerra financeira não
só contra o trabalho como também na verdade, acima de tudo
contra a indústria e o governo, porque é ali que
está o dinheiro. Ao ganhar o poder para endividar economias a velocidade
crescente, o sector bancário e financeiro está a sugar recursos
desviando-os para longe da economia real. O seu plano de negócio
não é empregar trabalho e expandir produção, mas
transferir tanto quanto possível do fluxo de receitas existente para as
suas próprias mãos, capitalizando-o em pagamentos de juros.
Tal como a democracia romana organizava a votação por
"centúrias" classificadas por riqueza da terra, do mesmo modo
nos Estados Unidos de hoje os votos são simplesmente comprados por
dólares, vindos principalmente do sector financeiro. O resultado deve
ser polarização económica rumo a uma oligarquia rentista.
Tal como a classe credora de Roma reduziu o Império a uma Idade
Média de subsistência e comércio por troca
(barter),
as dinâmicas financeiras de hoje estão a globalizar a
polarização entre credores e devedores, impondo austeridade em
nome de mercados livres. Tal como em Roma, a etapa final do neoliberalismo
ameaça tornar-se servidão da dívida
(debt peonage).
Capitalismo financeiro versus capitalismo industrial
Esta não é a luta prevista entre capitalismo e socialismo. Ela
está a verificar-se dentro do próprio capitalismo entre a
indústria e a finança. O capital financeiro conquistou o capital
industrial. Se bem que a social-democracia tenha ultrapassado a familiar guerra
de classe entre patrões e trabalhadores, ela não foi capaz de
enfrentar o golpe de estado financeiro contra a indústria e igualmente o
trabalho. Bens de capital utilizados para finalidades produtivas no lado do
activo do balanço constituem o objectivo do capital financeiro ao
conceder empréstimos sobre o lado do passivo. O capital tangível
tem um custo (em última análise redutível àquele do
trabalho) e é limitado na oferta. A criação de
crédito bancário portador de juros ("dívida de outras
pessoas") é potencialmente ilimitada. Ele tornou-se portanto o
almoço gratuito paradigmático.
O que é limitada é a capacidade de pagar e é aqui que o
capitalismo industrial se rende às exigências do capital
financeiro. Administradores financeiros tomaram o comando da indústria
para sangrá-la, não para financiar a sua expansão. Firmas
industriais foram financeirizadas, transformadas em veículos para pagar
juros e dividendos ou simplesmente para gastar seus ganhos em compras das
próprias acções ou para comprar outras firmas ao
invés de empreender novo investimento de capital. Há empresas que
estão mesmo a contrair empréstimos para distribuí-los como
dividendos para criar aumentos rápidos nos preços das
acções para que os seus administradores embolsem as suas
opções em acções. Este comportamento levou
advogados industriais a chamarem os bancos de gafanhotos
(Heuschrecke)
que devoram o excedente ao invés de actuarem como abelhas para financiar
a formação de capital tangível.
O caminho de menor resistência para defender a indústria e elevar
padrões de vida é renovar o programa social democrático da
Era Progressista de transformar a banca numa utilidade pública para
proporcionar serviços financeiros básicos tais como contas
correntes e transacções com cartão de crédito ao
seu custo ou gratuitamente, tais como estradas e outros serviços
públicos, de modo a minimizar o preço de viver e fazer
negócios.
O princípio básico que deveria guiar a política
pública é muito antigo: reconhecer que qualquer encargo de
dívida tende a crescer até se tornar impagavelmente alto. Para
além da matemática exponencial do juro composto está a
actual criação de crédito (dívida)
"livre" que provém dos Estados Unidos desde que a
ligação do dólar ao ouro foi cortada em 1971. A
expansão resultante de dívida tende a aproximar-se do ponto em
que ela absorve a renda da propriedade, o fluxo de caixa corporativo e o
rendimento pessoal disponível bem como uma
proporção crescente da receita do governo.
O capitalismo industrial imaginava um fluxo circular entre produtores e
consumidores. Este era o conceito original das contas de rendimento nacional
criadas por François Quesnay e os Fisiocratas. A versão de hoje
trata as finanças, os seguros e o imobiliário (FIRE) como a
produzirem um "serviço" e portanto como sendo parte deste
fluxo circular, não como uma transferência extractiva de
rendimento da mesma para uma classe rentista autónoma e cada vez mais
predatória. O rendimento nacional é desviado para pagar
serviço de dívida, provocando a contracção do
consumo e da produção pois bancos e instituições
financeiras agora desempenham o papel que os senhores da terra exerciam em
tempos feudais e pós feudais.
A resolução para as exigências de hoje dos credores deve
assumir a forma ou da bancarrota e arresto ou de uma redução da
dívida. Mais de um quarto do imobiliário dos EUA está
agora em situação líquida negativa, pendente de confisco
ou ainda pior um longo combate por parte dos devedores
hipotecários para atingirem o ponto de equilíbrio do valor
líquido zero. Isto é o culminar da democratização
da propriedade a crédito. Não se trata de liberdade
económica mas sim de servidão da dívida tendo de
passar uma vida inteira a tentar liquidar dívidas numa
situação que impõe aos devedores afundarem cada vez mais
num buraco financeiro.
A necessidade de reduções de dívida serem generalizadas,
estendendo-se a todas as dívidas pessoais e portanto
reestruturando o sistema bancário atemoriza muita gente quanto ao
apoio de uma alternativa estrutural tão profunda. Mas é muito
mais fácil na prática começar de novo com um
Recomeço
(Clean Slate),
como fez a Alemanha em 1947, do que reajustar um sistema que foi concebido de
forma tão torcida. Uma revisão da história mostra que tais
cancelamentos de dívida foram prática normal desde 2500 AC
até ao tempo de Jesus. Governantes no início da
civilização e da empresa comercial no antigo Oriente
Próximo proclamaram Recomeços para restaurar o status quo ante,
uma cidadania livre de dívidas (cevada) pessoais. (Dívidas em
"prata" comercial foram deixadas em vigor). Decretos
andurarum
e proclamações reais afins são encontradas ao longo de um
período de aproximadamente três mil anos e foram o modelo para o
Ano do Jubileu Bíblico
(deror)
. Ao invés de desestabilizar as economias, esta prática
preservou a propriedade generalizada, preços estáveis e liberdade
em relação à escravização por dívida.
O neoliberalismo nega que a resolução do encargo instável
de uma dívida deva vir de "fora" do mercado financeiro. A
política da UE está a transformar "o mercado" num
colete de força pela comutação de dívidas do sector
privado para o balanço do governo enquanto impede governos de imprimirem
dinheiro para financiar o resultante défice orçamental. Isto
inverte a direcção dos últimos três séculos
de reforma económica e política. É uma
revolução política ainda que talvez a mais
invisível e encoberta tomada de controle
(takeover)
da história. Os bancos agora são capazes de criar um volume
ilimitado de crédito, cada vez mais livre de impostos, e mesmo de
receber salvamentos públicos destinados a permitir-lhes que retomem a
concessão de empréstimos à economia não financeira.
Isso é o equivalente a dar aos invasores terra em troca de nada e
submeter o sistema fiscal aos conquistadores sem um combate real ou o
simples entendimento do que está a ser entregue.
A guerra do sector financeiro contra a sociedade como um todo levou a uma
dívida pública tão profunda quanto o fazia a guerra
militar em tempos passados. A táctica rentista é obrigar governos
a tomarem emprestado aos ricos a juros em vez de de tributá-los,
enquanto endividam populações, imobiliário e
indústria impondo-lhes tributo na forma de juros e comissões.
Para coroar tudo isso, a banca exige subsídios e salvamentos de modo a
que não sofra quando dívidas e poupanças se expandirem
para além da capacidade de pagar e tiverem portanto de ser liquidadas. O
truque do sector financeiro é manter a economia refém,
ameaçando cessar a circulação de pagamentos se não
obtiverem o que querem.
Ao atacar a regulamentação e protecção do governo
como se conduzisse ao "caminho da servidão" rumo ao
planeamento centralizado, o sector financeiro tornou-se o grande expropriador.
O seu objectivo é centralizar o planeamento na Wall Street, na City de
Londres, em Frankfurt e em outros centros bancários, dirigindo economias
nacionais inteiras para o caminho da servidão por dívida. Para
alcançar a vitória, a alta finança precisa desqualificar o
governo, o qual é o único poder capaz de regulamentar, tributar e
restringir a sua expansão. A fim de desqualificar a democracia
política, a finança compra o controle das campanhas eleitorais de
modo a promover políticos que actuem como seus empregados. Ela
também compra o controle da televisão, rádio e
publicações dos mass media, e utiliza doações para
comprar o controle do processo académico. Em conjunto, estes são
os vários órgãos que representam o
"cérebro" da sociedade. Hoje eles estão a ser
transformados em zumbis.
A própria religião tem sido desviada, afastando-a do seu foco
sobre a dívida e a usura que perdurou longo tempo. Poucos
cristãos são ensinados de que no seu sermão inicial Jesus
desenrolou o pergaminho de Isaías que proclamava o Ano Jubileu e disse
que esta era a sua tarefa: proclamar o "Ano do Senhor" e anunciar um
Recomeço
(Clean Slate)
liquidando dívidas judaicas, libertando escravizados por dívida e
recuperando terras para os seus proprietários originais de antes do
arresto. E a edição em língua inglesa dos escritos de
Martinho Lutero é cuidadosa em excluir o seu importante panfleto que
denunciava
Caco
, o monstro da dívida portadora de juros em auto-expansão
exponencial. Os evangélicos na América são especialmente
maníacos em defender direitos financeiros sobre a propriedade, como se
estes direitos fossem a própria propriedade e não a sua
antítese.
Os neoliberais afirmam proteger a liberdade individual, especialmente face a
governos opressivos, mas não face a credores ou rentistas. Economistas
clássicos perceberam que era necessário um governo forte para
controlar os direitos adquiridos. O seu objectivo não era desmantelar o
governo e sim utilizar o seu poder regulatório e tributário no
interesse público para minimizar rendimento não merecido e
"almoços grátis" e minimizar o custo de viver e
fazer negócios na economia. Ao apelar à "eutanásia do
rentista" através da política pública, Keynes e a sua
geração reconheceram que se governos fossem impedidos de
controlar e tributar as Finanças, Seguros e Imobiliário
(Finance, Insurance and Real Estate, FIRE),
a economia passaria para o controle dos planeadores financeiros.
Não existe uma coisa tal como um mercado livre
"automático". Toda economia com êxito tem sido uma
economia mista, com sectores público e privado tendo cada um o seu
diferente papel. A privatização da moeda, do crédito e de
outros serviços de infraestrutura básica pode ser apenas uma fase
transitória da história, não a tendência
irreversível que neoliberais aplaudem e que levou à presente
crise de poder rentista não controlado num vácuo político.
A tradição de banca central da Europa comparada com a da banca
mercantil anglo-americana
Em contraste com o Banco da Inglaterra criado para emprestar dinheiro ao seu
governo, o que fazia mais tipicamente em tempo de guerra, a
tradição continental europeia tem sido para que bancos centrais
emprestem a bancos comerciais, os quais por sua vez mantêm grande parte
das suas reservas em títulos do governo. Assim, efectivamente, bancos
comerciais monetizam indirectamente défices do governo. Bancos e
compradores de títulos supostamente actuam como árbitros
responsáveis, emprestando em termos economicamente viáveis que
impedem inflação e gastos irresponsáveis do governo. A
Constituição Alemã (Artigo 109
[2]
) declara a intenção de promover estabilidade de preços,
do emprego, da balança de pagamentos e do crescimento económico.
Esta tradição está enraizada numa época em que a
maior parte do empréstimo bancário era para o comércio e a
indústria e, portanto, pelo menos nominalmente produtiva. A Europa
prosperou enquanto o seu encargo da dívida era suficientemente baixo
para ser suportado. Desde a II Guerra Mundial, contudo e especialmente
ao longo da última geração o tsunami de
crédito criado pelos bancos dos EUA e Grã-Bretanha esmagou a
tradição bancária da Europa. Bancos financiaram uma bolha
imobiliária (com a feliz excepção da Alemanha) e
empenharam-se em esotéricos jogos de computador. A consequência
é a tradição bancária da Europa continental que
funcionava tão bem quando enraizada na expansão industrial deu
lugar a uma prática mercantil anglo-americana, fazendo ganhos
simplesmente a cavalgar a onda da inflação de preços de
activos uma alavancagem de dívida auto-alimentada, tramada por
bancos para induzirem clientes a contrair empréstimos.
A discussão económica de hoje deveria centrar-se no que deveria
ser a melhor política responsável numa situação em
que o crédito irresponsável está centrado em bancos
comerciais, não na despesa dos governos. A bolha de preços de
activos anterior a 2008 não foi um resultado de bancos centrais
emprestarem a governos. Ela foi um produto do favoritismo em
relação ao sector FIRE, facilitado pelo sistema fiscal da
Eurozona que se centra mais em vendas e impostos sobre o rendimento do que em
impostos sobre a terra destinados a deixar menos rendimento rentista
"livre" a ser capitalizado em empréstimos bancários
para promover os preços da propriedade aos níveis da Bolha.
Como deveriam os governos responder quando empréstimos temerários
da banca colocam toda a economia em risco? Isto é o que tem acontecido,
mais notoriamente nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Irlanda com seus
empréstimos por hipotecas lixo
("subprime"),
empréstimos de mentirosos (liars' loans) e fraude financeira absoluta
promovida por uma recusa em fazer acusações criminais contra
actividades descaradamente ilegais. Para colocar as coisas mais directamente, o
controle do sector financeiro dos países de língua inglesa foi
tomado por predadores "livres" para encherem os seus bolsos
tão rapidamente quanto possível. Os actuais escândalos do
MF Global e do Bank of America são simplesmente os mais notórios
crimes financeiros não processados que hoje ocorrem e
evidência de como a sua cobiça corrompeu o governo e os tribunais
impedindo-os de actuar. Tal como criminosos comuns, os imperadores da alta
finança não se importam com os danos feitos através das
suas incursões.
O problema que hoje enfrenta a Eurozona é decidir simplesmente o que
deveria acontecer à Espanha agora que a sua bolha imobiliária
entrou em colapso, deixando seus bancos imprudentes com situação
líquida negativa. Eles estão a tentar manter a economia
refém, como se esta corrosiva criação de dívida
financeira de alguma maneira pudesse e devesse ser ressuscitada,
como se fosse normal um status quo ante, não um caminho errado.
Que quantia deveria a Europa permitir que bancos caídos em
situação líquida negativa sobrecarregassem governos
nacionais e "contribuintes" com as suas perdas por empréstimos
irresponsáveis?
Nos maus tempos de hoje os governos são chamados a criar dívida
pública para dar a bancos comerciais cujas reservas foram perdidas
devido a maus empréstimos o mau comportamento financeiro de que
há muito eles acusavam de ser a inclinação dos governos!
Deveriam governos da Eurozona capitular perante banqueiros e assumir a sua
dívida imobiliária podre e os títulos de governos
insolventes num balanço público pan-europeu. Isto seria uma
"oligarquização" (eu hesito em dizer
socialização) da dívida pública uma
transferência de riqueza da classe que tem estado a saquear a economia.
Este problema não foi previsto na criação do euro. Nem foi
antecipado que governos precisariam incidir em défices
orçamentais a fim de puxar a Europa para fora da depressão. Tal
gasto é necessariamente financiado por dívida pública.
Ironicamente, apesar da temeridade dos seus sistemas de banca comercial, os
bancos centrais nos países de língua inglesa são capazes
de monetizar dívida pública tão livremente quanto os
bancos comerciais podem criar crédito nos seus próprios teclados.
Esta capacidade de criação de moeda salva os governos de serem
mantidos reféns por credores como uma alavanca para forçar
políticas fiscais pró rentistas, privatização e
desregulamentação. De modo que o caminho de saída do
pântano criado pela prática da banca comercial
anglo-saxónica é mostrado pela prática
anglo-saxónica no que concerne à banca central.
Precisamente porque a tradição da Europa continental é
banca mais industrial e produtiva ela limitou o BCE a proporcionar
crédito apenas a bancos comerciais para reabastecer o crédito
bancário em crises de liquidez. Ela impediu-o de emprestar a governos
para monetizarem seus défices orçamentais. Este papel limitado
deixa o BCE incapaz de enfrentar a crise de insolvência de hoje. Uma
economia infestada de dívida não pode "brotar" o seu
caminho de saída da dívida. E ela certamente não pode
adoptar um programa de
Quantitative Easing
no estilo dos EUA. A ideia é que taxas de juro mais baixas
permitirão que os enormes encargos de dívida seja cumpridos mais
facilmente estimulando novos tomadores de empréstimos a comprar
os direitos de antigos devedores. Mas esta solução procura
meramente ressuscitar a bolha, ao re-inchar preços de activos a um
nível que possa salvar os bancos com a economia como um todo a
incidir cada vez mais profundamente na dívida.
Isto significa que os negócios não podem tomar emprestado
especialmente as pequenas e médias empresas responsáveis pela
maior parte do novo emprego nas economias dos EUA e europeias ao longo das
últimas décadas. Assim, o sistema financeiro atingiu um
término. Não só a maior parte do encargo de dívida
precisa ser desfeito como o sistema bancário e financeiro (incluindo
planos de pensões financeirizados) e sistemas fiscais precisam ser
reestruturados de modo a impedir um retorno da Bolha Económica.
O encargo da dívida pesa tão fortemente sobre uma economia como a
sobre-tributação. A única solução
prática é um Recomeço
(Clean Slate)
e isso não é algo que o BCE tenha autoridade para proclamar.
Só um organismo governamental (ou, no contexto europeu, vários
governos a actuarem em conjunto) pode fazer isto sob
condições de crise tal como a que estamos hoje a experimentar. E
se deixar de mover-se com precaução de acordo com estas linhas,
as dívidas afundarão de qualquer modo, porque dívidas que
não podem ser pagas não o serão. Trata-se de simples
contabilidade.
Porque é que esta espécie de reestruturação
não está no centro da discussão financeira de hoje
como se fosse impensável? Não pensar acerca de alternativas
significa ficar sentado enquanto a Europa se torna uma zona económica
morta.
02/Agosto/2012
Notas
[1] Descrevo as reparações e o emaranhado da dívida de
armas Inter-Aliado em
Super Imperialism
(nova ed. 2003), assim como a distinção entre o "problema
orçamental" interno e o internacional.
[2] George Soros, Remarks
at the Festival of Economics, Trento Italy, June 2, 2012
NT
[1] Isaías: Profeta bíblico do século VIII a.C.
[2] A
analogia é péssima pois a teoria do aquecimento global é
altamente contestável. Ver
Acerca da impostura global
Do mesmo autor:
A economia da bolha e a deflação da dívida
, 24/Set/2012
[*]
Da Universidade de Missouri Kansas City & do Levy Institute, EUA,
autor de
The Bubble and Beyond,
ISLET, Dresden, 2012, 481 p., ISBN 13:978-3-9814842-0-5
O original encontra-se em
michael-hudson.com/2012/08/financial-predators-v-labor-industry-and-democracy/
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Palestra na Sankt Georgen University, Frankfurt, 22/Junho/2012.
Tradução de JF, revisão de JM.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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