O plano de recuperação financeira do inferno
O que quer a Wall Street
O anúncio de terça-feira do plano de recuperação
Obama-Geithner é basicamente uma extensão do plano Bush-Paulson
ainda mais dádivas para os iniciados do mundo financeiro, tendo
em vista concentrar o sistema bancário dos EUA num cartel de apenas uns
poucos grandes bancos. Isto não é uma notícia totalmente
má para a parte ainda relativamente saudável do sistema
bancário (saudável no sentido de ainda evitar
situação líquida negativa). Os bancos mais pequenos e
menos perturbados serão comprados pelos grandes "perturbados",
para benefício financeiro pessoal dos seus accionistas. Isto não
pode resolver o problema financeiro de hoje: o facto de o encargo da
dívida exceder de longe a capacidade de pagamento da economia. De facto,
difundir-se-ão as distorções que os grandes bancos
introduziram, até que todo o sistema presumivelmente venha a
assemelhar-se ao Citibank, Bank of America, JP Morgan Chase e ao Wells Fargo.
Mas isto é claramente apenas a Etapa Um de um plano de duas etapas que
ainda não foi anunciado, embora a página editorial do
Wall Street Journal
haja proporcionado pistas, que gotejaram durante os últimos três
meses, quanto ao "sonhado plano de recuperação" da Wall
Street.
Ele não é exactamente o que a maior parte das pessoas esperavam.
De facto, ele ameaça ser um cenário de pesadelo para a economia
como um todo. Acautele-se da frase mágica: "dificuldade quanto
à situação líquida"
("equity kicker"),
ouvida pela primeira vez na crise hipotecária das caixas
económicas (S&L) da década de 1980.
RECUPERAÇÃO PARA QUEM?
A primeira questão a perguntar acerca do Programa de
Recuperação é: "recuperação para
quem?". A resposta é: para as pessoas que conceberam o dito
Programa de Recuperação e a sua clientela, o lobby dos bancos. A
segunda questão é: o que é que eles querem recuperar? A
resposta é uma outra Bolha na economia, pois viram a Bolha de Greenspan
torná-los muito ricos com a sua espécie particular de
"criação de riqueza": riqueza na forma de endividamento
da economia "real" como um todo junto ao sistema bancário, e
ganhos de capital sem precedentes a serem feitos a cavalgar a onda de
inflação dos preços dos activos.
Para as elites financeiras, o problema é que não é
possível inchar uma outra bolha a partir dos níveis de
endividamento de hoje, com situação líquida negativa
generalizada, e ainda com altos níveis de preços no
imobiliário, nas acções e nos títulos. Nenhuma
quantidade de novo crédito ou capital para o sistema bancário
induzirá os bancos a proporcionarem crédito ao imobiliário
já super-hipotecado, ou a indivíduos e corporações
já super-endividados. Todos os observadores profissionais previram que
os preços da propriedade manter-se-iam em mergulho pelo menos até
ao próximo ano, o que é o máximo que se pode vislumbrar
nas condições instáveis que hoje estamos a experimentar.
Enquanto os planeadores financeiros da administração Obama
contorcem as mãos em público em dizem à generalidade dos
devedores "Nós sentimos o vosso sofrimento", eles
também reconhecem que os últimos dez anos foram uma era dourada
para o sistema bancário e a Wall Street. Os 1 por cento mais ricos da
população aumentaram a sua fatia nos retornos da riqueza
dividendos, juros, rendas e ganhos de capital de 37 por cento do total
de dez anos atrás para 57 por cento de cinco anos atrás e uma
estimativa de 70 por cento hoje. Mais de dois terços dos retornos da
riqueza agora vão para os 1 por cento mais ricos da
população. Isto é a proporção mais alta
já registada. Estamos a aproximar-nos dos níveis
cleptocráticos russos.
Mas a Direita Dura financeira do espectro político os lobbystas
agora no controle do Tesouro, do Federal Reserve e o Departamentos da
Justiça para iniciantes repetem a nova Grande Mentira: que foram
os pobres que deitaram o sistema abaixo, "explorando" os ricos ao
tentarem macaqueá-los e viverem para além dos seus meios.
Famílias subprime retiraram empréstimos subprime, o pobre
mentiroso assinou documentos para obter "empréstimos de
mentira", como os Alt-A, tais como são chamados os
empréstimos sem documentação no comércio de papel
lixo financeiro.
Aprendi a realidade uns poucos anos atrás em Londres, ao conversar ali
com o estrategista de um banco comercial. "Nós tivemos um grande
avanço intelectual", disse ele. "Ele mudou a nossa filosofia
de crédito".
"O que é?" perguntei, imaginando que estava prestes a
confessar uma nova fórmula de matemática lixo.
"Os pobres são honestos", disse ele, acompanhando as suas
palavras com uma queda de queixo assombrosa, como que a dizer "Quem
poderia ter imaginado?"
O significado era bastante claro. Os pobres pagam as suas dívidas por
uma questão de honra, mesmo com grandes custos pessoais. Ao
contrário de Donald Trump, é menos provável que os pobres
fujam dos seus lares quando os preços do mercado afundam abaixo do
nível da hipoteca. Na linguagem neoliberal da Escola de Chicago de hoje,
os pobres comportam-se "não economicamente". Isto é,
eles tomam opções que não fazem sentido económico,
mas ao contrário reflectem uma moralidade de grupo. Esta ingenuidade
sociológica é o que os faz ricas presas para prestamistas
predatórios tais como Countrywide, Wachovia e Citibank.
Como disse acima, foi uma era dourada. A bolha financeira e imobiliária
é o mundo que a elite do poder financeiro da América gostaria de
recuperar. O problema para eles é como começar uma nova bolha e
fazer ainda outra fortuna. A alternativa seria manter o que têm e fugir
não tão mau, mas um cenário que talvez eles possam
melhorar.
As discussões acerca de salvamentos de emergência centraram-se
sobre colocar em vigor bastante nova capacidade de empréstimo pelo
sistema bancário para mais uma vez começar a inflacionar
preços a crédito. Mas uma nova bolha não pode ser
principiada a partir dos níveis de preços actuais dos activos.
Estes US$2 milhões de milhões
(trillions)
desta semana ou pouco mais em novo dinheiro de salvamento para os bancos
("capital", e especificamente capital financeiro, não
confundir com capital industrial) só serão emprestados quando os
preços caírem mais 30 a 50 por cento. De modo que isto pode
representar apenas a Etapa 1.
A questão para a Etapa 2 é: como podem os US$10 a US$20
milhões de milhões de ganhos de capital obtidos com os anos de
Greenspan serem repetidos numa economia que está totalmente endividada?
Uma coisa que a Wall Street sabe é que para fazer dinheiro não
só é preciso que os preços dos activos reais subam como
também que desçam outra vez e outra vez para cima e outra
vez para baixo. Sem irem abaixo, afinal de contas, como podem eles subir?
Quanto mais frenética a fibulação
[1]
dos preços, mais fácil se torna para os programas computorizados
de compra e venda fazerem dinheiro sobre opções e derivativos. O
que está a ser planeado hoje parece-se a um movimento semelhante de sobe
e desce no imobiliário.
O primeiro truque é preservar a riqueza da classe credora a Wall
Street, os bancos e outros veículos financeiros que enriquecem os 1 por
cento mais ricos e na verdade os 10 por cento mais ricos da
população. A Etapa Um envolve comprar os seus maus
empréstimos a um preço que os salve de terem uma perda. Isto
é feito através da comutação da perda para os
"contribuintes" o trabalho, sobre cujos ombros o fardo fiscal
tem sido agravado firmemente, passo a passo desde 1980, com a Comissão
Greenspan impondo um oneroso imposto de Segurança Social sobre a classe
média e utilizando o dinheiro apurado para cortar impostos sobre os
escalões mais elevados. A seguir vem um banco "agregador" (soa
como "alligator", crocodilo, dos pântanos de resíduos
tóxicos) comprar as dívidas podres e colocá-las numa
agência pública. O governo chama a isto o banco "mau".
Mas ele faz bem para a Wall Street por comprar empréstimos que
deram para o torto ou talvez, mais próximo da verdade,
empréstimos que nunca foram bons desde o princípio.
A parte mais difícil é ressuscitar oportunidade para os credores
efectuarem uma nova matança. (E é a economia que está a
ser morta.) Aqui está como imagino que o plano possa funcionar.
Suponha que um comprador recente haja comprado uma casa por US$ 500.000, com
uma hipoteca de taxa ajustável de US$500.000 aprazada para iniciar a 8
por cento. Suponha também que o actual preço de mercado haja
caído para US$250.000 uma perda de 50 por cento no fim de 2009.
Afinal de contas, é preciso que haja bastante tempo para os
preços declinarem. Caso contrário, não haveria economia
para "recuperar". O sr. Geithner e Summers precisam "sentir o
seu sofrimento" para confessarem publicamente o pacote que estou a
descrever. O governo trocará "dinheiro por lixo"
("cash for trash"),
imprimindo novos títulos do Tesouro (com juros a serem pagos pelo
"contribuinte") em troca da hipoteca de US$500.000 que está a
apodrecer, apontando para um preço de mercado de apenas US$250.000.
O banco "mau" que o plano Obama decidiu não estar totalmente
pronto para ser criado esta semana assumirá a forma de uma parceria
pública/privada (PPP), daquele espécie que tornou Tony Blair
tão notório na Grã-Bretanha. Será financiado com
fundos privados de facto, com os fundos agora a serem dados para
recapitalizar os bancos da América (encabeçados pelos bancos da
Wall Street que actuaram tão torpemente). Os bancos utilizarão o
dinheiro que receberam do Tesouro para vender as suas hipotecas lixo pelo seu
valor facial juntamente com outro financiamento do salvamento
para comprar acções numa nova instituição de US$5
milhões de milhões. Algo como a Fanny Mae ou o Freddie Mac
será criado e seus títulos garantidos (isto é a parte
"pública" "socializar" o risco). A
instituição PPP começará com, digamos, US$3
milhões de milhões em fundos, e terá o poder de comprar e
renegociar as hipotecas que passaram para as mãos do governo e de outros
proprietários. Este "Fundo de Recuperação de Lares da
Classe Média"
(Middle Class Homeowner Recovery Trust)
utilizará o seu financiamento privado para a finalidade
"socialmente responsável" de "salvar o contribuinte"
e os proprietários de casas renegociando a hipoteca em queda dos seus
US$500.000 originais para o novo preço de US$250.000.
Aqui está o tipo de conversa que se pode esperar, com os habituais
eufemismos orwellianos. O "resgate dos proprietários de casas"
PPP, um verdadeiro Banco Salvador, irá para uma família amarrada
à dívida hipotecária da sua casa e sentindo-se cada vez
mais desesperada quando o preço do seu principal activo mergulha
profundamente dentro do território da Situação
Líquida Negativa. Será feita uma oferta: "Propomos um
negócio para salvá-lo. Renegociaremos a sua hipoteca por
US$250.000, o actual preço de mercado, e também reduziremos a sua
taxa de juros para apenas 5,50 por cento. Isto cortará os seus encargos
mensais da dívida em aproximadamente dois terços. O sr.
escapará da situação líquida negativa e pode dar-se
ao luxo de permanecer na sua casa".
A família provavelmente dirá: "Excelente".
Mas eles terão de fazer uma concessão. É aqui que a nova
parceria pública/privada faz a sua matança. O seu Banco Salvador,
financiado com dinheiro privado destinado a assumir o "risco" (e
também os prémios") dirá à família que
concorda em renegociar a sua hipoteca. "Agora que o governo assumiu uma
perda e o deixamos permanecer no seu lar, precisamos recuperar o dinheiro que
foi perdido. Assim quando chegar o momento de você vender, ou renegociar
a sua hipoteca, nosso Banco Salvador receberá o ganho de capital em
relação à quantia original cancelada. Se nós o
ajudamos no momento difícil, você agora deve pagar-nos o que
havíamos perdido".
Por outras palavras, se o proprietário da casa vender a propriedade por
US$400.000, o Banco Salvador obterá US$150.000 do ganho de capital. Se a
propriedade for vendida por US$500.000, o banco obterá US$250.000. E se
ela for vendida por mais, graças a algum novo clone de Alan Greenspan a
actuar como fabricante de bolhas, o ganho de capital será dividido de
alguma forma. Se a divisão fosse 50/50, então se a casa fosse
vendida por US$600.000 o proprietário naquele momento dividiria o novo
ganho de capital de US$100.000 com o Banco Salvador. O Banco Salvador portanto
ganhará muito mais através da sua fatia de ganhos de capital do
que extrai em juros!
Este plano será ainda melhor para a Wall Street do que foi a bolha de
Greenspan! Anteriormente, era a classe média que obtinha os ganhos.
Naturalmente era realmente o banco que obtinha os ganhos, porque os encargos de
juros da hipoteca absorviam todo o valor de locação. Mas pelo
menos os proprietários das casas tinham uma oportunidade de
beneficiarem-se, se não dilapidassem o seu dinheiro refinanciando suas
hipotecas. E muito utilizaram as suas casas "como um mealheiro" a fim
de suportar os seus padrões de vida.
Mas desta vez a Wall Street não é obrigada a fazer o seu dinheiro
tornando ricos os proprietários de casas da classe média.
Proprietários afogados em dívida estão desejosos de
meramente acomodar-se com um plano que os deixe nas suas casas! Assim, Wall
Street poder obter para si própria os ganhos de capital que foram a
força condutora da "criação de riqueza" dos EUA,
estilo bolha Alan Greenspan.
A ironia é que a única espécie de políticas que
são politicamente correctas nestes dias são aquelas que tornam a
situação pior: ainda mais dinheiro do governo na esperança
de que os bancos venham a criar ainda mais crédito/dívida para
levantar os preços das casas e torná-las ainda mais
inacessíveis; inchar uma bolha; dar ao que realmente deveria ser chamado
os "maus bancos" os Quatro ou Cinco Grandes onde as hipotecas
lixo, CDOs lixo e derivativos lixo resultantes da matemática lixo
estão concentrados ainda mais dinheiro para comprarem bancos mais
pequenos que ainda não tenham sido infectados com o temerário
oportunismo financeiro.
E além disso, os lobbistas destes maus bancos estão a gritar em
altos brados que todas as soluções para o problema são
politicamente incorrectas: cancelamentos de dívidas a fim de fazer com
que o fardo da dívida fique dentro da capacidade de pagamento. Isto
é o que se supõe que faça o mercado pela bancarrota
num colapso anárquico, se não por política fundamentada do
governo. Os maus bancos, depois de exigirem "mercados livres" durante
todos estes anos, travaram-no quando este deles se aproximou, e dos seus
bónus. Para eles, os mercados são livres de
regulamentação contra empréstimos predatórios;
livres para tributar a riqueza de modo a transferir o fardo para o trabalho;
livres para o sector financeiro envolver-se na economia "real" como
uma planta parasita em torno de uma árvore e extrair todo o excedente na
forma de engenharia financeira.
Isto é uma paródia de liberdade. Mas o pior de tudo é a
"liberdade" da discussão económica de hoje a partir da
sabedoria da economia política clássica e da experiência da
história económica quanto ao modo como as sociedades têm
arcado com sobrecarga de dívida ao longo das eras históricas.
Uma política alternativa para salvar a economia de ser
"resgatada" pela Wall Street
Há uma alternativa para impedir tudo isto. Uma redução do
valor
(write down)
da dívida, seguido por um imposto territorial de modo a que o
"almoço gratuito" (o que John Stuart Mill denominou o
"incremento não ganho através do trabalho" da
elevação dos preços da terra, um ganho que os
latifundiários obtém "a dormir") servisse como imposto
base ao invés de o trabalho e a indústria serem sobrecarregados
com um imposto sobre o rendimento.
O primeiro movimento seria impedir os bancos de emprestarem contra o valor da
terra. Eles poderiam emprestar contra os edifícios, mas não a
terra. Isto cortaria o empréstimo máximo permissível para
50 a 60 por cento do preço total da propriedade a menos que o
governo fizesse o que os economistas clássicos advogavam e tributasse o
preço de mercado da terra (o seu valor locativo) como o imposto base,
retirando o imposto do trabalho. Isto alcançaria a espécie de
mercados livres que Adam Smith, John Stuart Mill e Alfred Marshall descreveram
e que a Era Progressiva pretendia alcançar em 1913 com o primeiro
imposto sobre o rendimento da América.
Um imposto sobre a terra impediria os preços da habitação
de subirem outra vez. Isto salvaria os proprietários de casa de
assumirem demasiada dívida a fim de obter habitação. E
salvaria a economia de ver a "criação de riqueza"
assumir a forma dos "incrementos não ganhos com o trabalho" a
serem capitalizados em empréstimos bancários mais altos com a sua
associada capacidade carga (juros e amortização). A chave para
bolha imobiliárias é inchar avaliações.
11/Fevereiro/2009
[1] fibulação: sutura dos bordos de uma ferida por meio de
agrafos.
[*]
mh@michael-hudson.com
O original encontra-se em
http://www.counterpunch.org/hudson02112009.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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