A guerra e a crise econômica contemporânea
A maior parte da discussão sobre a guerra, iniciada após os
ataques de 11 de setembro ao
World Trade Center
e ao Pentágono, concentra-se nos aspectos geo-políticos e
estratégicos do império norte-americano, no aprofundamento da
estratégia contra toda e qualquer oposição,
identificando-as com o terrorismo e o tráfico de drogas, e sobre os
aspectos políticos e éticos desta guerra.
Sob o ponto de vista econômico, as análises centram-se nos
aspectos de curto prazo decorrentes das perdas das seguradoras, companhias
aéreas e retração do turismo. Essas perdas, associadas ao
incremento da insegurança e acentuação na
retração da procura do consumidor norte-americano, tendem a
acelerar a tendência recessiva desencadeada pelas crises do mercado
financeiro, antes de 11 de setembro. Todavia, alguns analistas tendem a
defender o papel dinamizador da procura bélica como um fator a
contrarrestar, pelo menos parcialmente a crise atual.
Outra interpretação, que poderíamos considerar mais
estrutural, coloca a guerra como uma necessidade do próprio
desenvolvimento capitalista. Renato Pompeu (Caros Amigos, no.55, out/2001), por
exemplo, afirma que: as empresas brigam para levar cada vez menos tempo
de trabalho vivo, que é o que cria a mais-valia, até que chega um
ponto em que isso tende quase a zero, daí o que você pode fazer?
Você acaba com o capitalismo ou, se quer manter o capitalismo, tem que
destruir tudo, destruir as mercadorias em geral para aumentar o tempo de
trabalho necessário para produzir. Logo depois da Segunda Guerra
Mundial, houve uma reconstrução fantástica da Europa.
Quando teve a guerra do Kosovo, a revista
The Economist
, britânica, se queixou se queixou, não, deu vazão
à queixa, não vamos acusá-la disso , dizendo que os
empresários ficaram decepcionados porque a destruição foi
muito pequena, não ia ter muitos investimentos ali. E não
é crueldade humana, é uma coisa quase automática, vai
acontecendo sem você perceber... Para ele, já estamos na
terceira guerra mundial, que se iniciou desde a guerra de Kosovo, e ela
é necessária para destruir o capital acumulado e permitir outro
ciclo de acumulação, como ocorreu nas guerras napoleônicas,
na 1ª e 2ª Guerras mundiais.
Neste artigo, discutimos estes pontos de vista e defendemos a idéia de
que a forma como esta guerra está se desenrolando, associada ao grau de
desenvolvimento das forças produtivas e das relações
capitalistas de produção, não deverá gerar
condições semelhantes às criadas nas grandes guerras
anteriores, para a reprodução ampliada do capital. Portanto, que
não existem mais condições para um novo ciclo longo de
expansão do capital.
1) A procura de guerra como procura efetiva.
As guerras convencionais, travadas até a segunda grande guerra mundial,
tinham como característica a mobilização de enormes
exércitos que exigiam alimentação, vestuário,
transporte, combustíveis, armas, equipamentos e munições
em grande volume, utilizadas extensivamente. As guerras atuais são mais
localizadas, de preferência nas regiões econômica e
politicamente mais atrasadas, evitando os centros industrialmente mais
desenvolvidos do mundo. Ao mesmo tempo, os grandes exércitos das
nações desenvolvidas foram substituídos por forças
relativamente pequenas, altamente especializadas e armadas com sofisticados
equipamentos. Neste sentido a guerra reproduz o processo industrial de
substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto.
No campo inimigo, mais atrasado, a mobilização de grande
contingente humano para a guerra não amplia, igualmente, a procura
efetiva nos ramos produtores de bens de consumo, alimentação e
vestuário devido à precariedade em que já viviam os
combatentes. Mas expande a procura por armas e equipamentos também
sofisticados, ampliando enormemente o mercado negro e o contrabando de
equipamentos bélicos. O que só beneficia o pequeno grupo de
traficantes dos enormes estoques de armas, munições e
equipamentos acumulados pela indústria bélica.
Ao contrário das grandes guerras mundiais que opunham
nações com níveis de desenvolvimento industrial
relativamente próximos, a maior parte das guerras da última
metade do século passado (guerra da Indochina, guerra da Coréia,
guerra do Vietnã, guerra do Golfo, guerra de Kosovo), opõe uma
grande potência, normalmente os Estados Unidos, contra um país
muito mais atrasado. Este meio século de guerras localizadas
contínuas estabeleceu um nível de procura efetiva, cujo aumento
decorrente de mais um conflito aberto será pouco significativo para o
aumento da procura global. Assim, a idéia de que a guerra amplia a
procura efetiva e dinamiza a economia só poderia ser defensável
para o curto prazo e para ramos de atividade que não são
dinâmicos, exceto para o caso da industria bélica. Neste sentido,
os efeitos depressivos de curto prazo podem ser muito mais importantes do que
os efeitos expansivos.
2) A guerra como substituto da crise (a destruição de capital e
de força de trabalho).
Renato Pompeu coloca corretamente o papel das guerras na
destruição do capital, constante e variável, para a
revitalização do processo de acumulação, mas
não estamos de acordo com a idéia implícita de que esta
guerra criará as condições para outro longo ciclo de
acumulação. Durante as crises cíclicas do capitalismo
parte do capital fixo é desvalorizado e sucateado, ao mesmo tempo em que
parte da força de trabalho é expulsa do mercado indo constituir a
parcela estagnada do exército industrial de reserva, ou mesmo indo
ampliar o lumpen-proletariado. As grandes guerras mundiais do século
passado cumpriram esse papel de forma brutal e intensa na Europa e
Japão, estimulando um novo ciclo de acumulação. Todavia, a
cada ciclo de expansão e contração, a estrutura produtiva
tende a recompor-se em um grau mais elevado de desenvolvimento das
forças produtivas e com novos determinantes nas relações
capitalistas de produção.
Além disso, mesmo aceitando a hipótese de que a guerra atual seja
já a terceira grande guerra, que irá envolver todas as
nações do planeta, e que chegue a destruir grandes parcelas do
capital fixo já instalado, a reconstituição do capital
fixo deverá ocorrer em novas bases tecnológicas, cujo ciclo
industrial será muito mais curto e, por maior que seja a taxa de
exploração do trabalho, não reverterá
significativamente a taxa de lucro.
Durante as grandes guerras mundiais, enormes contingentes, milhões de
trabalhadores foram convertidos em soldados. Para tanto, parte significativa da
força de trabalho era deslocada do processo de produção e
transferida para o
front
. Essa força de trabalho era substituída pelo exército
industrial de reserva e pela incorporação de mulheres,
crianças e idosos ao mercado de trabalho. O grau de desenvolvimento das
forças produtivas exigia que cada unidade de força de trabalho
deslocada para a guerra fosse substituída por outra equivalente. Os
milhões de mortos naquelas guerras resolveram o problema do excedente de
força de trabalho no mercado dos países capitalistas
desenvolvidos, naquele momento.
Mas, o atual grau de desenvolvimento das forças produtivas não
só já estava expulsando trabalhadores do processo produtivo como
não exige mais que eles tornem-se soldados nesta guerra. Mesmo que os
Estados Unidos massacrem as populações dos países
subdesenvolvidos que se envolverem na guerra, o excesso de força de
trabalho decorrente da contradição entre o grau de
desenvolvimento das forças produtivas e as relações de
produção continuará a pressionar a crise dos países
desenvolvidos.
Neste sentido, a forma atual da guerra não deverá desempenhar o
mesmo papel que desempenhou nas guerras mundiais anteriores. Não
destruirá capital nem força de trabalho em escala suficiente para
um longo ciclo de reconstrução capitalista. Além disso,
como vimos, caso isso ocorra, será em um contexto de
contradições sociais muito mais graves.
3) A guerra como impulso ao desenvolvimento científico e
tecnológico.
As guerras mundiais do século passado e a guerra fria, decorrente da
segunda grande guerra, propiciaram um enorme impulso ao desenvolvimento
científico-tecnológico e à produção
capitalista. Elas estimularam a pesquisa e à criação de
novos produtos que ampliaram enormemente o campo da acumulação
capitalista. A pesquisa militar e espacial, financiada principalmente pelos
orçamentos dos Estados dos países desenvolvidos marca toda a gama
de produtos e serviços disponíveis hoje nos mercados capitalistas
de consumo.
Assim, poder-se-ia imaginar que uma nova grande guerra, no contexto da chamada
terceira revolução industrial e da nova economia,
poderia produzir outro grande impulso ao desenvolvimento científico
tecnológico capaz de gerar novos produtos e serviços. É
indubitável que uma nova grande guerra realmente produza esse impulso.
Mas, a questão que colocamos é até que ponto nós
estamos realmente sob o signo de uma nova revolução industrial.
Não estaríamos apenas aprofundando e desenvolvendo conhecimentos,
produtos e serviços sobre a mesma base anterior?
O principal produto da segunda revolução industrial, o
automóvel, dinamizou os mercados capitalistas durante praticamente todo
o século passado e continua, ainda, como um dos principais produtos
desse mercado. Mas ele funciona, ainda, baseado no motor de combustão
interna, desenvolvido junto com a base energética
eletro-magnética da segunda revolução industrial. Um dos
pilares dessa estrutura industrial, o petróleo, tem sido considerado o
pivô de várias guerras e também da guerra contra o
Afeganistão.
Mas, o desenvolvimento científico e tecnológico, no contexto da
mundialização do capital tende a concentrar-se cada vez mais nos
países desenvolvidos. Os países subdesenvolvidos sofrem um
processo de desestruturação produtiva e uma tendência a
reprimarização de suas economias, com um empobrecimento de
parcelas cada vez maiores de suas populações. Desta forma, um
novo impulso ao desenvolvimento científico e tecnológico dentro
do atual regime de acumulação poderá ser ainda mais
excludente.
Como todos sabemos, o desenvolvimento científico-tecnológico
constitui-se na forma por excelência de substituição do
trabalho vivo pelo trabalho morto no processo de produção
capitalista. Subordinado ao capital, ele produziu um padrão de
acumulação e consumo incompatível com as necessidades da
maior parte da população mundial. Como já está
amplamente divulgado apenas 20% da população do planeta é
responsável por 80% do consumo mundial.
4) Considerações finais.
Se as grandes guerras anteriores exerceram um papel importante para a
destruição de capital e força de trabalho que
revitalizaram o processo de acumulação, uma nova grande guerra
não deverá desempenhar papel equivalente.
O contexto mundial das guerras anteriores era o da redivisão do mundo,
da conquista de mercados e do aprovisionamento de matérias-primas,
fundamentais para a acumulação de capital na época. Hoje,
não se coloca mais a questão da redivisão do mundo nem a
conquista de mercados tem o mesmo peso. O petróleo como fonte
energética ainda é a exceção.
A hegemonia mundial obtida pelos Estados Unidos após a segunda guerra
mundial, contestada parcialmente pelo Japão e Europa e reafirmada no
final do século passado encontra-se novamente em xeque. A resposta
norte-americana a essa crise de hegemonia é a guerra, na qual eles
ameaçam envolver todas as forças de oposição e
contestação ao modo de produção capitalista. Cabe a
estas forças encontrar uma via para a superação do
capitalismo, para a construção do socialismo, e para evitar o
caos que provavelmente poderá se espalhar pelo mundo caso esta nova
guerra se configure efetivamente em uma terceira grande guerra mundial.
[*]
Economista. Professor da Universidade Federal do Espírito Santo
(Brasil).
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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