por Miguel Urbano Rodrigues
O que ocorreu na Colômbia nos dias 25 e 26 de Outubro parece arrancado
de uma novela de Gabriel Garcia Marquez. As derrotas infligidas ao presidente
Álvaro Uribe, pelo tamanho e significado, produziram no país o
efeito de um terramoto.
Primeiro o povo recusou-lhe os poderes que pedia e a possibilidade de reformas
constitucionais que, através de um Referendo de recorte fascista,
pretendia impor. No dia seguinte Uribe perdeu as eleições
locais. Em Bogotá, Medellin, Cali, e Barranquilla, os eleitores
votaram maciçamente em candidatos da oposição.
Durante meses Uribe cantou as vitórias por ele imaginadas. O seu
superministro Fernando Londoño (Interior e Justiça) afirmava que
mais de 14 milhões de colombianos responderiam SIM às
perguntas do plebiscito.
O Governo exerceu uma formidável pressão sobre o eleitorado,
gastando milhões no financiamento da campanha. A televisão, a
rádio, a imprensa apresentaram o SIM como uma exigência
patriótica. A contribuição das transnacionais foi
também ostensiva. O presidente, imitando o estilo bushiano, exibiu-se,
entre artistas, em shows de baixo nível, incluindo o programa
Grande hermano
(Big Brother). O exército e a polícia intimidaram as
populações nas semanas que precederam o referendo.
O embaixador dos Estados Unidos, desrespeitando o estatuto diplomático,
comportou-se como um vice-rei. Interveio na campanha, criticou a
abstenção e pediu o SIM para as perguntas que suscitavam
mais polemica, incluindo as relativas a exigências do FMI e do
Departamento de Estado. Grupos de paramilitares ameaçaram os camponeses
sobretudo nos Departamentos do Casanares, do Meta, Norte de Santander e Cesar.
Mas a engrenagem não funcionou. A oposição destruiu o
sonho de Uribe. Conclamou o povo a ficar em casa. E a esmagadora maioria dos
eleitores atendeu a esse apelo: absteve-se .
Horas depois de iniciada a contagem, o governo apercebeu-se de que iria sofrer
uma enorme derrota. Uribe entrou em pânico.
Em circunstancias ainda mal conhecidas a contagem dos votos foi suspensa e,
ao ser reiniciada, a percentagem dos SIM aumentou estranhamente. Mecanismos
fraudulentos haviam sido accionados. A manobra, entretanto, chegou tarde.
Faltavam apenas as urnas de regiões remotas, representando pouco mais
de 2% dos votos emitidos quando a contagem foi novamente interrompida e o seu
recomeço adiado para data e hora a serem anunciadas.
Quando o Conselho Eleitoral divulgou os números até
então conhecidos, ficou transparente que nenhuma das 15 perguntas
atingira o mínimo de 6 267 000 votos imprescindível à
sua aprovação. É improvável que os resultados
oficiais da recontagem sejam tornados públicos antes do dia 10, mas na
hipótese mais favorável para Uribe apenas duas ou três
perguntas poderão ser aprovadas.
A que obteve mais votos, a primeira, era particularmente ambígua. O
objectivo seria dinamizar a luta contra a corrupção.
Entretanto, o texto estabelece que os funcionários corruptos afastados
por roubalheiras ou dívidas poderão ser readmitidos desde que
regularizem a sua situação...
As propostas relativas à redução do número de
deputados e senadores, ao congelamento de salários dos trabalhadores e
cortes de despesas públicas, sobretudo em áreas sociais,
obtiveram votação muito baixa.
O governo reuniu-se de emergência para reflectir sobre a derrota de um
projecto que durante meses apresentara como pilar da sua estratégia.
Eram duas as opções: desconhecer o resultado através de
uma fraude gigantesca na recontagem, ou conformar-se com a
rejeição do referendo. Foi essa, finalmente, a decisão
tomada. Uribe temia a reacção do povo, se o desafiasse.
A SEGUNDA DERROTA
No domingo, ainda acusando a desorientação resultante da
recusa das suas propostas de reformas, Uribe sofreu uma nova derrota de
grandes proporções. Nas eleições locais para
governadores, alcaides e vereadores, os seus candidatos, nas principais
cidades do país, foram amplamente batidos. O desastre maior ocorreu
na capital, onde Luís Garzón, um destacado sindicalista,
ex-presidente da Central de Trabalhadores, foi eleito presidente da
Câmara Municipal. Mas o governo perdeu também em Medellin, Cali
e Barranquilla, três cidades com mais de um milhão de habitantes
e noutros grandes centros urbanos.
Para espanto do Poder, a afluência às urnas foi a maior dos
últimos anos.
A acumulação de derrotas forçou a extrema-direita a
mudar de linguagem. O discurso triunfalista foi substituído por outro,
adaptado às circunstancias.
Sem surpresa, o Senado pronunciou-se, quase imediatamente, por
confortável maioria, contra a emenda à
Constituição, preparada para permitir a reeleição
de Uribe. Foi mais um sonho que se desfez.
O primeiro dos ministros a apresentar o seu pedido de demissão foi
Londoño, mas todos os membros do Governo, depois, colocaram os cargos
à disposição do Presidente. Era impossível
ocultar o sismo político que atingira não apenas Uribe, mas a
oligarquia colombiana e, indirectamente, Washington, sustentáculo de
uma política apresentada por Bush como modelo a ser imitado.
Nos EUA o
New York Times
e o
Washington Post
dedicaram ao referendo e às eleições editoriais que
soaram em Bogotá como textos fúnebres. A CNN e as outras
grandes cadeias da TV estadunidense seguiram-lhes o exemplo.
El Tiempo,
o grande diário colombiano (300 mil exemplares e quase meio
milhão no domingo), sentiu a necessidade de reconhecer que o povo lhe
desmentira nas urnas as previsões e que, perante a
situação criada, Álvaro Uribe terá de rever a sua
política. Com o seu farisaísmo aristocrático, o jornal
aconselhou mesmo o Presidente a proceder a uma autocrítica como
prólogo de uma nova estratégia, imposta pela derrocada do seu
projecto e das suas esperanças.
O JOGO DO PRESIDENTE
Aguardado com impaciência, o discurso que o Presidente dirigiu à
nação no dia 29 de Outubro foi contraditório. Por um
lado declarou respeitar os resultados do referendo. Reconheceu, portanto, a
derrota, embora, para lhe atenuar o significado, em alusão descabida
às guerrilhas, tenha afirmado que «os votos têm valor e as
balas não». Omitiu que o povo condenou a sua política ao
inviabilizar o referendo e eleger candidatos da oposição.
Simultaneamente, Álvaro Uribe, numa pirueta típica do seu
desrespeito pela nação, informou que «com a
protecção de Deus» (até na intimidade com o divino
imita Bush) tratará, por todos os meios ao seu alcance, de conseguir,
por outros meios, levar adiante muitas das reformas que pretendia impor e
não passaram. Está consciente que não poderá
reduzir o tamanho do Congresso nem congelar os salários como queria,
mas advertiu que através de acordos com deputados e senadores, com
governadores, alcaides, reitores de universidades, etc, usará
precisamente o Parlamento e os poderes locais para que lhe permitam
implantar as medidas que o eleitorado acaba de desaprovar. Ficou
transparente que o povo vai ser sobrecarregado com novos impostos. A carga
tributaria que anunciou será particularmente dura para os
trabalhadores que vivem do seu salário e para os pequenos
empresários e agricultores.
El Tiempo,
porta-voz da oligarquia, só parcialmente aprova as opções
de Uribe e os remédios que ele anunciou. Se tudo pudesse correr como
deseja, o Presidente, utilizando um Plano B, teria condições para
atingir, afinal, muitos dos seus objectivos. Mas o grande jornal está
preocupado porque um Congresso
envalentonado
pelos resultados do referendo
pode estragar tudo. Essa apreensão é legitima. Na primeira
reunião da bancada uribista com o presidente, o congressista German
Varón interpelou Uribe e saiu da sala, batendo com a porta, quando o
Presidente o admoestou, cortando-lhe a palavra.
Uribe não pode desconhecer também que o Partido Liberal
contribuiu decisivamente para a sua derrota nas eleições locais.
A senadora Piedad Cordoba apressou-se a abraçar Lucho Garzon pela sua
vitoria em Bogotá.
O FASCISMO MASCARADO
Alvaro Uribe é vocacionalmente fascista, embora as circunstancias lhe
imponham a necessidade de exibir uma fachada democrática. Mas o seu
curriculum dissipa dúvidas sobre a opção
ideológica e a sua concepção do Estado e da
política.
Na prática o actual regime colombiano é uma ditadura civil
representativa da ultradireita da oligarquia mais reaccionária e antiga
da América Latina.
O Estado uribista, intimamente ligado ao paramilitarismo, desenvolveu desde o
inicio, com o apoio de Washington, uma estratégia que exigia a
militarização do país e a fascizaçao da sociedade.
O Presidente proclamou que a insurreição guerrilheira era a
causa de todos os grandes problemas nacionais e que as Forças Armadas
estavam em condições de destruir as FARC e o ELN.
Retomou assim um mito desacreditado. Os resultados são conhecidos. As
FARC, organização revolucionaria temperada em quase quatro
décadas de luta, não só resistiram vitoriosamente a todas
as ofensivas contra elas lançadas, como reforçaram a sua
solidariedade com o ELN em diferentes frentes de combate.
Atolados no Iraque e no Afeganistão, os EUA não se sentiram em
condições, pelo menos no momento, de atender aos apelos de Uribe
para transformar a sua intervenção indirecta numa
intervenção militar directa.
O povo da Colômbia, consciente de que a solução para os
problemas sociais do país não pode ser militar e sim
política, acaba de demonstrar ao mundo que, afinal, a popularidade do
Presidente, trombeteada aos quatro ventos, não passava de um slogan
forjado pela propaganda.
Uribe tentará agora, enquanto negoceia com o Congresso, neutralizar
as personalidades políticas da oposição que derrotaram os
seus candidatos.
El Tiempo,
apreensivo sobretudo com a eleição de Lucho Garzon para alcaide
de Bogota uma megalópolis de quase 8 milhões de
habitantes aponta já ao Presidente o caminho da
«coabitação» com aquele político de
centro-esquerda, afirmando que seria «uma demonstração
positiva da evolução política» do país.
Uribe não ignora que o Polo Democrático Independente, apesar da
elevada votação alcançada, não é uma
força política estruturada com condições para
actuar como um partido. Foi criado para funcionar como coligação
eleitoral, sobretudo em Bogotá, mas seria ingénuo identificar
nele aquilo que não pode ser.
Para mal do Presidente, a situação económica e financeira
é desastrosa, em grande parte devido à sua política de
militarização do pais.
Sobrecarregar o povo com novos impostos num momento em que o défice do
orçamento, enorme, tende a crescer, somente contribuirá para
agravar a crise social. Por si só, o serviço da divida externa
exigirá no próximo ano 25.400 milhões de
dólares, o que corresponde a 37,8% do orçamento nacional.
É neste quadro alarmante, com milhões de desempregados e a
grande maioria da população afundada na miséria, que Uribe
enfrenta o futuro imediato, insistindo na sua política de guerra total.
Laboratório de lutas sociais, a Colômbia é hoje uma vitrina
da falência na América Latina do neoliberalismo. No país
a luta de classes é transparente e exacerbada. O desenvolvimento da
história comprova ali que o capitalismo é, afinal, uma
relação de poder entre classes em conflito.
O comandante Raul Reyes, do Secretariado e do Estado Maior Central das FARC,
em artigo publicado no numero 31 da Revista
Resistência
daquela organização lembra, em apelo ao bom senso, que somente
«um novo governo orientado para a paz, pluralista, patriótico e
democrático, oposto à política imperial neoliberal»
pode responder às aspirações da maioria dos colombianos
e contribuir para a solução da crise política,
económica, social e armada que transformou o país numa vitrina
da tragédia latino americana.
As duas derrotas eleitorais infligidas a Álvaro Uribe no final de
Outubro aí estão, a dar-lhe razão.
Havana, 1 de Outubro de 2003
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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