Entrevista a Carlos A. Lozano Guillén,
director da Voz e dirigente do PCC

por Lilia Martelo,
estudante de Comunicação Social

Carlos Lozano Guillén. Carlos A. Lozano Guillén é uma figura emblemática da esquerda colombiana. É obrigatório consultá-lo quando se pretende conhecer a opinião dessa corrente política sobre os acontecimentos nacionais. É o director da Voz , o periódico mais conhecido e de maior circulação da esquerda e intérprete das lutas sindicais, sociais e populares. É também um prestigiado dirigente do Partido Comunista Colombiano e um dos seus principais porta-vozes. Foi membro da chamada Comissão de Notáveis, que fez recomendações para agilizar os diálogos de paz entre a guerrilha das FARC e o governo de Andrés Pastraña Arango, que antecedeu o actual de Álvaro Uribe Vélez. Na actualidade desempenha um papel de primeiro plano nos contactos de James Lemoyne, delegado do secretário das Nações Unidas para a Paz na Colômbia com as FARC e é um activista do acordo humanitário, em correspondência com a linha do Partido Comunista Colombiano de contribuir para a busca da solução política negociada do conflito social e armado.

O doutor Lozano é um homem amável e simples. Todo o contrário de como me haviam descrito os comunistas. “São rígidos, inflexíveis e sectários”, disse-me um professor. No entanto, achei-o encantador. Uma pessoa aberta, receptiva e sobretudo de enorme modéstia. Falamos várias horas, apesar de que, por razões de segurança, sempre ande daqui para ali, acompanhado a toda a hora da sua escolta de confiança. Sobre ele pesam muitas ameaças. “É um dos dirigentes da esquerda mais ameaçado de morte”, advertiu-me um companheiro da Universidade. Já foram abortados pelo menos quatro atentados contra a sua vida. “Sobrevivi graças à protecção que me dispensam os meus guarda-costas, ao apoio do Programa de Protecção do Partido Comunista e procuro não valorizar muito esses atentados”, disse. Mas, de facto desenvolve uma intensa actividade política. Ao mesmo tempo que orienta todas as semanas a elaboração do periódico Voz , desenvolve numerosas tarefas políticas, assiste a reuniões e participa em conferências, seminários, painéis e outros eventos em universidades, sindicatos, centros de estudos e organizações populares. Por vezes, participa em manifestações e actividades públicas de massas, ainda que já não como o fazia antes. Desenvolve a sua actividade em diferentes locais e desloca-se pelo país com rigorosas medidas de segurança, cuidadosamente e evitando a rotina.

Quisemos falar com o doutor Carlos Lozano sobre o tema do referendo e das últimas eleições, nos dias 25 e 26 de Outubro do presente ano, que tiveram grande impacto no processo político colombiano, porque o grande derrotado foi o presidente Alvaro Uribe Vélez, que segundo diz a comunicação social, contava com 75 por cento de favoritismo nas sondagens. Facto, que, por certo, não se reflectiu nos processos eleitorais daqueles dias. Para bem ou para mal, a situação política colombiana, sempre complexa, foi afectada pelos dois eventos. Há tormenta no panorama político nacional, que procuramos entender na conversa com o doutor Carlos.

-Que leitura faz dos resultados do referendo e das eleições? Afinal quem perdeu e quem ganhou?
Lozano - Em definitivo há um só perdedor: O presidente Álvaro Uribe Vélez. O referendo procurava no fundo um apoio majoritário, por essa via constitucional, do projecto autoritário e fiscalista do Governo Nacional, designada de “segurança democrática”, ainda que não tenha nada nem de uma coisa, nem doutra. E não o conseguiu. Faltando dois por cento dos escrutínios, nenhuma pergunta, das 15 formuladas, se aproxima do umbral, que é igual a 25 por cento, do potencial eleitoral. Um pouco menos de 6.300.000 votos. Em que se resume a ficção urdida pelos meios de comunicação que Uribe Vélez contava com 75 por cento de favoritismo nas sondagens, se isso não se reflecte nas urnas? É o poder mediático num país onde o negócio da comunicação de massas está ao serviço dos interesses do grande capital e daí a desinformação e a falácia.

- Também se pode tirar esta conclusão das eleições locais?
Lozano - Também, porque a eleição de governadores, alcaides, deputados departamentais, concelhios e edis, favoreceu as forças da oposição, as distintas variantes da esquerda e os sectores independentes. Os prejudicados são os uribistas. O golpe mais duro, ainda que não o único, foi o Município de Bogotá, ganho por Lucho Garzón, em nome do Polo Democrático Independente, mas apoiado por outras forças políticas como a Frente Social e Política (da qual faz parte o Partido Comunista) e o Partido Liberal, liderado por correntes progressistas, encabeçadas pela senadora Piedad Córdoba. O mapa político pós-eleitoral não é favorável ao uribismo. É outra derrota. É um duplo golpe sofrido na contradição entre as forças democráticas e o governo autoritário e antipopular.

-Há quem diga haver ameaça de fraude no referendo…
Lozano - Sim, claro. Na Colômbia, com uma democracia de fachada, quase inexistente, observa-se muito bem o que disse o padre Camilo Torres, há quase quarenta anos: “quem conta os votos elege”. Uma coisa igual não ocorria desde 19 de Abril de 1970, quando no governo de Carlos Lleras Restrepo se organizou a fraude para impor na presidência Misael Pastraña Borrero. O Governo Nacional trata de torcer o pescoço ao referendo que ele próprio fabricou. É uma vergonha, como se disse na declaração do Partido Comunista, os resultados definitivos serem conhecidos apenas oito dias depois, lapso de tempo em que tratarão de salvar pelo menos algumas das perguntas fiscalistas, parte do compromisso central com o Fundo Monetário Internacional. Seja como for, o referendo está derrotado e manifestam-se já os seus primeiros efeitos, como a crise do gabinete ministerial que Uribe dizia ir durar os quatros anos, e o arquivar do projecto de reeleição que os uribistas tinham apresentado como acto legislativo de reforma constitucional ao Congresso da República. Mas virá seguramente o revanchismo dos uribistas, para impor através do Congresso várias das normas que não foram aprovadas no referendo.

- Houve garantias nas eleições?
Lozano - Não. Foi grotesca a vantagem governamental. O próprio Uribe Vélez se dedicou a promover o referendo, fazendo toda a espécie de promessas demagógicas e uma campanha publicitária sem paralelo nos últimos tempos. Até os realities shows da televisão privada, em horário nobre, serviram de ridículo cenário para promover o espavento antidemocrático.
Apesar de a Corte Constitucional ter reconhecido o carácter participativo da abstenção, estabeleceram-se estímulos aos votantes. Enquanto em determinadas regiões os paramilitares ameaçavam os cidadãos para os obrigar a votar, os empresários pressionavam os trabalhadores, anunciando rifas e outras prebendas, se apresentassem o certificado de voto. Além disso, devo lembrar que a campanha eleitoral foi acompanhada de medidas repressivas, operações militares e prisões em massa. A crescente militarização foi orientada para contribuir para o referendo pela via da intimidação e da perseguição aos dirigentes de esquerda, sindicais, sociais e populares. O embaixador dos Estados Unidos na Colômbia, mister Wood, interveio abertamente, instando à luta contra a abstenção e à comparência às urnas no referendo. Trata-se de uma grosseira ingerência nos assuntos internos, mesmo que isto se tenha já tornado normal neste governo.

-Segundo o governo, a derrotada foi a guerrilha, porque a esquerda ganhou a Câmara de Bogotá pela via eleitoral…
Lozano - É a forma do uribismo se furtar à derrota e às implicações que ela tem sobre a sua política reaccionária. A guerrilha não ganhou nem perdeu na eleição de alcaides, antes de mais porque não tinha candidatos nem participou do debate eleitoral, como, pelo contrário, o fizeram representantes dos paramilitares apoiados pelos partidos tradicionais, incluindo os sectores uribistas. No entanto, poderia dizer-se que no caso do referendo, ganharam todos os sectores sindicais, sociais, populares e a esquerda, incluindo a guerrilha, que apoiaram a abstenção.

-Que implicações tem a derrota do Governo Nacional?
Lozano - Que não pode ter um Plano B para adoptar as medidas recusadas pela abstenção no referendo para cumprir o que mandam o FMI e Washington. Mesmo que avance com a vingança. Pelo contrário, é necessário proceder a uma viragem nacional no processo guerreiro e fiscalista de Uribe Vélez. O país recusou o projecto autoritário e fascista da “segurança democrática”. O que se coloca é a solução política negociada do conflito, a defesa da soberania nacional, a recusa do ajuste fiscal e uma nova ordem económica e social não tutelada pelo FMI. Esta é a realidade. E isto é válido para as duas eleições, porque o triunfo pertence a Lucho Garzón e a outros candidatos das distintas vertentes da esquerda e sectores democráticos que se pronunciam pela paz e a justiça social. Aí está o ponto de contradição e é o que deve unir agora os colombianos. Porque o problema não é a guerrilha, mas a nefasta política de Uribe Vélez.
O objectivo é uma abertura democrática, política e social em direcção a um novo país, a uma democracia renovada e a um novo poder com forte apoio popular.

-Que outras características tiveram as eleições?
Lozano - Bem, reflectiram a crise dos partidos tradicionais; dos dois velhos partidos tradicionais que impuseram o regime bipartidário de democracia musculada. O Partido Conservador está colado ao uribismo e ao governo para sobreviver, como um dinossauro de Museu. Algo igual se passa com o Partido Liberal, mesmo tendo de reconhecer os esforços da senadora Piedad Córdoba e da sua actual direcção para o reformular de acordo com os novos tempos. Oxalá o consiga, para que tenha um discurso e uma acção mais progressista e social e seja protagonista da nova etapa favorável às forças da renovação. É parte da contradição actual.

Por outro lado, a esquerda não teve um êxito semelhante. A Frente Social e Política, da qual faz parte o Partido Comunista, não teve os melhores resultados para concelhos e assembleias. Sobretudo porque se perdeu a representação em Bogotá, em boa forma canalizada pelo Polo Democrático Independente que irrompeu com força e como um íman. Também tiveram influência nestes resultados a reforma política que afectou outros partidos e provocou confusão, a ausência de garantias, a repressão oficial, o favoritismo oficial e os erros próprios. Há que fazer uma análise profunda, mas sem derrotismos, se bem que autocrítica.

-Que passos se seguem na frente abstencionista?
Lozano - Do ponto de vista formal, poder-se-ia dizer que já cumpriu o seu papel, mas eu diria que apenas agora começa, quiçá numa segunda etapa. De um lado, para vigiar e impedir que haja fraude e denunciar qualquer tentativa de a fazer; e de outro lado, procurando tornar reais os efeitos positivos da derrota uribista. E o principal: deter a intentona revanchista, com mais impostos, despedimentos e ajuste fiscal. Neste sentido, a Grande Coligação Democrática pela Abstenção no Referendo, deve converter-se num movimento unitário por mudanças políticas e sociais, de resistência democrática à política de Uribe Vélez assente na guerra, no ajuste fiscal, no “estatuto antiterrorista”, na reforma judicial, na nova reforma tributária e noutras medidas, que fazem parte da “guerra social” contra o povo.

Como entra nesta coligação o novo alcaide de Bogotá, Lucho Garzón, se ele se declara de centro esquerda?
Lozano - Neste grande movimento por reformas avançadas cabem todos os colombianos que lutem por uma mudança democrática, incluindo a insurgência, que tem projectos políticos de grande significado e alcance no país. Há que entender que a esquerda tem muitas variantes e interpretações, é uma espécie de arco-íris, uns são mais vermelhos e outros rosados, há-os também desbotados, mas o importante é encontrar os pontos de convergência. E ter presentes também as diferenças. Com o projecto de Lucho Garzón para Bogotá, coincidimos em que é necessário fazer uma gestão inclusiva e social, depois das administrações autoritárias, de vazio social e inumanas passadas. As últimas administrações conceberam o progresso na base da “cara bonita” da capital, para a tornar atractiva e competitiva na economia de mercado neoliberal. Um gancho para as transnacionais. Construíram parques, avenidas, o autocarro transmilénio, as ciclovias e outras obras, que melhoraram a cara de Bogotá, mas não resolveram a pobreza, a miséria, a falta de alojamento, o desemprego e o dramático quadro da saúde e da educação. É uma cidade mais moderna e mais bonita, mas desumanizada, mais pobre e de menos possibilidades de vida para os habitantes de menor rendimento, que são a maioria. Por isso, nos identificamos com Lucho no social. Como também, porque não representa a política uribista, é o que ele chama com certo eufemismo a inclusão, que é o contrário do autoritarismo e da repressão. Claro que temos divergências com Lucho. Ele é reformista, por isso se distancia de Cuba e da Venezuela, dois projectos tão próximo dos revolucionários. Ele concebe a transformação no marco do capitalismo, nós entendemo-la como uma revolução para o socialismo. São diferenças de fundo, se bem que neste momento nos unam propósitos comuns, que servem para cortar o passo aos verdadeiros terroristas, que são os que utilizam o poder de Estado para aniquilar a esquerda, os sindicalistas e toda a expressão de luta popular. Por isso não temos ilusões de que, com Lucho, os trabalhadores tenham chegado ao poder em Bogotá, nem que assistiremos a profundas transformações estruturais. Estamos no entanto seguros que podemos ganhar espaços democráticos para acumular forças e unir os sectores democráticos e de esquerda interessados numa mudança de fundo na vida nacional. Neste processo, Lucho, o Polo Democrático Independente e outros, podem desempenhar um papel importante se a tal estiverem decididos. O importante é que tenhamos consciência do que nos une e do que nos diferencia, para não terminar fazendo concessões de princípios.

- Quer dizer que estão maduras as condições para postular um candidato de esquerda?
Lozano - Não nos adiantemos ao curso normal dos acontecimentos políticos. Por agora o importante é acumular forças para enfrentar um inimigo comum. É pôr em marcha a acção de massas contra as pretensões reaccionárias do uribismo. O processo decantará as coisas, gerará aproximações, realinhamentos e cada qual desempenhará o seu papel num projecto de unidade popular em que cabem todos os interessados em construir uma nova Colômbia. Trata-se de construir um projecto amplo, pluralista, democrático e social, mas definitivamente transformador, quase que revolucionário, diria.

- Ou seja, que o próximo objectivo é a revolução?
Lozano - Bom, a revolução é sempre um objectivo a longo prazo. É estratégico. Tem as suas etapas, mas é a meta suprema. Os comunistas não renunciarão ao socialismo. Esta é a diferença que nos separa do centro esquerda, dos social-democratas e dos pseudo-esquerdistas. Estes são reformistas, crêem que a solução está em maquilhar o capitalismo, em dar um “toque humano” ao capital. Mas não deixamos de coincidir na luta pela democracia política e social. Na luta pela democracia, as massas fazem a sua experiência, elevam o espírito de luta e o nível ideológico. Aprendem com a própria experiência. A luta pela democracia é uma escola da luta pelo socialismo. Democracia e socialismo vão de mão dada, não se excluem. Quando se deu a derrocada do regime soviético, disseram-nos que a esquerda e o socialismo não tinham viabilidade, porque num mundo unipolar o capitalismo se tornaria de rosto humano. Aconteceu o contrário. Tornou-se selvagem no modelo neoliberal, como se tivesse regressado à sua fase de acumulação primitiva. O capitalismo é contraditório com a democracia e a emancipação social. Assim sendo, a alternativa socialista é plenamente viável. Como o é a insurreição popular para derrubar tiranias e regimes despóticos.

Há que lutar e trabalhar muito nesta direcção. Não só com audácia, audácia e mais audácia, mas também com determinação e iniciativa criadora. Sem dogmatismo nem sectarismo, compreendendo que o marxismo-leninismo é criador e se aplica a realidades concretas, sem paradigmas, e se enriquece com a história dos povos. A emancipação é fruto de múltiplos processos e experiências, e nela tem o principal peso o rico acervo revolucionário e a história dos libertadores da América na primeira independência. No nosso caso, o pensamento bolivariano enriquece a ideologia revolucionária.

- Nessa etapa democrática entra a solução política negociada do conflito colombiano?
Lozano - Sim. É elemento chave na democratização do país. A solução política implica reformas avançadas na vida do país, que erradiquem as causas que originaram o conflito. É uma paz com democracia e justiça social. Nunca entrega nem rendição.

- E o diálogo com os paramilitares?
Lozano - É outro assunto. O paramilitarismo é criação do Estado dominante; tem sido o braço militar para a guerra suja da classe dominante. Por isso actua em conivência com os agentes do Estado da Fuerza Pública. Conta com o apoio de numerosos empresários e capitalistas. O velho sonho de Uribe Vélez é a sua legalização. É o que pretende com a chamada lei de alternância penal e já o tentou no passado, no Governo de Antióquia quando os pretendia camuflar nas Convivir. Os paramilitares não têm nenhum carácter político.

- Mas dizem que Carlos Castaño possui qualidades políticas?
Lozano - É uma mistificação para lhe garantir a impunidade e o limpar dos seus delitos. Castaño é um criminoso, um narcotraficante e responsável dos piores delitos de lesa humanidade na Colômbia.

Tradução de Carlos Coutinho.

Ver também A infâmia da globalização neoliberal , artigo de Carlos Lozano Guillén.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

25/Nov/03