"Uribe é um vendedor de ilusões para ricos"
Entrevista do Cmte. Iván Márquez
a Frank Monteverde, da ANNCOL
Iván Márquez é o comandante das forças
guerrilheiras no norte da Colômbia e ao mesmo tempo, um dos sete membros
do secretariado das FARC-EP, a mais importante organização
político-militar do país. Durante a entrevita usa um uniforme
simples e sem insígnias, calça botas de borracha para proteger da
lama e das serpentes e leva um fuzil AK. O seu "escritório",
onde recebe a ANNCOL, é um acampamento numa zona selvagem ao norte do
país. Vários escoltas armados, entre eles uma formosa jovem,
disfarçam-se entre as árvores.
ANNCOL: Há poucos dias, vocês explodiram o oleoduto, os comboios
carvoeiros da Drummond e Intercor e várias torres de transporte de
electricidade. Porquê?
MÁRQUEZ: É a guerra de guerrilhas; é o ataque à
infra-estrutura para atingir as fontes de financiamento da guerra do Estado
contra o povo. A opção de Uribe pela guerra implica isso tudo.
Os Estados Unidos fizeram o mesmo contra a Jugoslávia, o
Afeganistão e o Iraque. Isso não se pode esquecer, nem
tão pouco que essas foram guerras injustas porque foram feitas
não para libertar, mas sim para subjugar. A guerra total de Uribe
Vélez não é o melhor. Nós, colombianos, devemos
lutar pela solução política do conflito até
alcançar a paz com justiça social. Este é o principal
objectivo estratégico das FARC.
ANNCOL: Por que têm tanta raiva às empresas estadunidenses?
MÁRQUEZ: Não creio que seja o caso. Não temos esse
sentimento para com as empresas estadunidenses; o que contestamos é a
sua política de espoliação. A parte de leão nos
acordos e contratos não pode prevalecer sobre a soberania do povo da
Colômbia e sobre os seus recursos. Esperamos mais adiante chegar a
acordo com essas empresas, e com todas as que estejam interessadas em investir,
mas sem prejuízo dos interesses da nação. Que ganhe mais
o país proprietário dos recursos, e que as empresas também
ganhem, mas moderadamente.
ANNCOL: Vocês se inspiram muito no Iraque?
MÁRQUEZ: A guerra do Iraque é uma guerra colonial que procura
expropriar o petróleo ao seu legítimo dono, o povo iraquiano.
Com o Plano Colômbia, e com o ALCA querem apropriar-se das riquezas do
continente e escravizar e empobrecer ainda mais a sua população.
Aqui também têm em mira o petróleo, além do
carvão, do gás, da produção de electricidade, da
Amazónia com a sua grande biodiversidade. Isto deve pôr em
pé de guerra todos os latino-americanos, em defesa dos seus recursos e
soberania, e para isso é necessária a coordenação
das lutas a unidade dos nossos povos para resistir à estratégia
política e militar do império.
ANNCOL: No último mês, vários incidentes agitaram a zona
fronteiriça colombiana-venezuelana: o recontro entre as FAN e
paramilitares colombianos, que deixaram vários mortos no terreno, a
violação do espaço aéreo da Venezuela por quinze
helicópteros Black Hawk da Colômbia. São incidentes
isolados? O que se passa nessa fronteira?
MÁRQUEZ:
Não têm o aspecto de incidentes isolados. Parecem-se mais com
uma série de provocações contra a República
Bolivariana da Venezuela com propósitos obscuros. Porque não se
trata apenas dos casos que você menciona. Lembre-se das recentes
alusões insidiosas de Uribe contra o Presidente Chávez
vinculando-o com a guerrilha colombiana; ou as manifestações de
júbilo de alguns funcionários do governo de Bogotá pelo
golpe de Abril de 2002. Também poderíamos aludir às
recorrentes manipulações sobre supostos guerrilheiros ou chefes
insurgentes no território venezuelano. Isto é muito grave e ao
mesmo tempo lamentável, porque a Colômbia não pode deitar
pela borda fora toda uma história de fraternidade e de boas
relações com a Venezuela.
ANNCOL: Os sectores anti-chavistas da Venezuela e da Colômbia acusam o
presidente Chávez de apoiar a guerrilha colombiana. É assim?
MÁRQUEZ: Em que nos apoia ele? Ninguém pode demonstrar nada
porque simplesmente esse apoio não existe. Trata-se de um pretexto dos
inimigos da Revolução Bolivariana de cá e de lá. O
que é real e grave é a ingerência de Bogotá nos
assuntos internos da Venezuela. Quanto às FARC queria frisar que temos
una política de fronteiras bem clara e precisa: Não fazemos
incursões militares nos países vizinhos. O confronto que
travamos não é contra as Forças Armadas da Venezuela, do
Brasil, do Perú, do Equador nem do Panamá. É contra as
forças militares e de policia da Colômbia que sustentam e defendem
um regime injusto e opressor. E estas forças são muito numerosas
e apoiadas pelos gringos. Por isso, não faz sentido que as FARC
procurem escaramuças com Forças Armadas de países
irmãos.
ANNCOL: Mas ambos se denominam bolivarianos, então devem ter algo en
comum.
MÁRQUEZ: Ah, isso sim. Nós somos bolivarianos. As FARC
constituem uma organização que aplica o marxismo-leninismo
à realidade colombiana e é simultaneamente bolivariana. No ano
2000 lançamos em San Vicente del Caguán, num grande acto
público, o Movimento Bolivariano pela Nova Colômbia, que cresce na
clandestinidade. Em Bolívar, no seu projecto político de unidade
dos povos, de independência, liberdade e garantias sociais,
encontramo-nos todos. Militares, guerrilheiros, intelectuais,
indígenas, negritude, camponeses, todos. Quem não acaba por ser
seduzido pela ideia da Colômbia do Libertador, da unidade desta com o
Perú e a Bolívia e de toda a América Latina e do Caribe
como espaço de dignidade e de equilíbrio do universo? Ele
é o pai destas Repúblicas e o seu pensamento exige ser
materializado nesta era que já começou, que é a era de
Bolívar.
ANNCOL: O Secretariado das FARC afirma que Uribe é um fascista. No
entanto, o governo de Uribe está a promover eleições
democráticas para autarquias e governos locais e até um referendo
neste mês. Então, de onde vem o apodo de fascista?
MÁRQUEZ: Democráticas? Na Colômbia nunca houve
democracia. A União Patriótica foi exterminada a tiro. O regime
das oligarquias nunca tolerou as opções políticas de
esquerda, e para tal contou sempre com as balas e com a grande imprensa.
Agora, através de inquéritos promovidos pelos média
induz-se o voto do potencial eleitor. Isso é manipulação
da opinião. Não pode ser democracia. Que democracia pode haver
num Congresso, quando um dos chefes paramilitares se gaba de que 30% dos
deputados obedecem às suas orientações? Actualmente em
algumas regiões existem candidatos únicos às autarquias
por imposição destes grupos, e por esta mesma razão,
candidatos únicos aos governos, como ocorre nos departamentos de Cesar e
Magdalena.
Quanto a Uribe, do carácter fascista do seu governo, falam as
perseguições e caça às bruxas em que se priva da
liberdade de forma arbitrária e indiscriminada a população
civil; a legislação de guerra; a outorga de
atribuições de policia judicial às forças
militares; as zonas de reabilitação e consolidação,
que se converteram em zonas de violação desenfreada dos direitos
humanos; os massacres e assassinatos selectivos do para-militarismo de Estado,
e os desaparecimentos e as deslocações forçadas.
ANNCOL: Diz-se que vocês tentaram matar Uribe. É verdade?
MÁRQUEZ: Uribe é que diz que vai aniquilar a guerrilha em dois
anos. Foi o que prometeu aos investidores, aos empresários, ao
país; e pôs mesmo as nossas cabeças a prémio. Mas
já passou mais de um ano e não pode mostrar nenhum resultado
contundente, apesar da intervenção militar crescente dos Estados
Unidos no conflito interno da Colômbia. As FARC estão intactas;
ou melhor, estão em desenvolvimento e aplicando tácticas de
guerra de guerrilhas, às quais o comando do exército prefere
não se referir porque lhe estão a causar danos. Uribe é
um vendedor de ilusões para ricos. Não há nem
haverá derrota militar da guerrilha. A solução é
política, constrói-se com mudanças estruturais a
nível político, económico e social que beneficiem as
maiorias. Uribe está a gastar em pólvora o dinheiro que devia
investir na solução dos graves problemas sociais do país.
Os colombianos não devem aceitar que este presidente os continue a
estrangular com mais impostos. E o pior é que quer mais dinheiro, mas
para o lançar na fogueira da guerra.
ANNCOL: Qual é a posição das FARC face ao referendo?
MÁRQUEZ: O referendo procura legitimar a ditadura. Um governo
não necessita de convocar um referendo para castigar os corruptos e a
politiquice; para isso apenas precisa de vontade política. Se Uribe
aposta no referendo, é porque quer legitimar a sua ambição
autoritária, mas fundamentalmente, satisfazer as pesadas
exigências do Fundo Monetário Internacional. A Colômbia
inteira tem de derrotar a chantagem de Uribe Velez, que ameaça congelar
por decreto os salários dos funcionários públicos, se o
seu referendo não lhe for favorável.
ANNCOL: Como analisa a posição do sector do liberalismo
encabeçado por Piedad Córdoba e Gloria Gaitán, que apelam
à abstenção?
MÁRQUEZ: Muito respeitável e valiosa. Creio que nós,
colombianos, devemos abster-nos de votar esse referendo. O
"NÃO"
, não ajuda porque soma percentagens, e é isso precisamente o que
quer a ditadura para lograr o seu objectivo.
ANNCOL: Aos governos de Samper, Turbay e López Michelsen, vocês
faziam a guerra. Agora enviam-lhes cartas corteses. Estão as FARC
tão debilitadas no campo de batalha que não têm outra
saída?
MÁRQUEZ: O nosso comandante-em-chefe, Manuel Marulanda Vélez,
está a responder a uma carta respeitosa dirigida simultaneamente a ele e
ao Presidente da República pelos senhores ex-presidentes liberais que
você menciona, onde se pede aos destinatários que busquem um
acordo de intercâmbio humanitário ou de troca, que torne
possível a libertação dos prisioneiros de guerra em poder
das duas partes. Não podemos ocultar que ficamos um tanto perplexos
ante a resposta prepotente e despropositada que Uribe lhes endereçou. O
que Manuel Marulanda Vélez faz é reiterar uma
disposição expressa pelas FARC desde o início deste
capítulo dos prisioneiros. Esta disposição está
apoiada pelos factos: com o anterior governo acordamos um acordo
humanitário que permitiu a libertação de cerca de 50
militares doentes por apenas 13 guerrilheiros com problemas de saúde.
Mas, além disso, num gesto unilateral, sem contrapartidas, libertamos
304 militares e polícias, gesto que nunca foi correspondido pelo
governo. Hoje, no entanto, há gente, colunistas de alguns
diários e revistas, dirigentes do clero, que nos continuam a pedir
gestos unilaterais, enquanto os nossos continuam nos cárceres do regime.
As FARC nomearam recentemente os seus representantes para negociar a troca,
mas o governo continua a não querer entender. Depois de tudo,
continuará a apostar na aventura do resgate? Seria muito mais sensato
que procurasse um acordo como pedem os ex-presidentes, que intentar um resgate
a sangue e fogo.
ANNCOL: Que vão fazer com os três norte-americanos em vosso poder?
MÁRQUEZ:
Aspiramos a que voltem depressa às suas casas, aos Estados Unidos, como
resultado da troca de prisioneiros ou intercâmbio humanitário
entre a nossa organização e o governo da Colômbia.
ANNCOL: E com Ingrid Betancourt?
MÁRQUEZ: O mesmo, à semelhança dos outros dirigentes
políticos.
ANNCOL: E os dirigentes políticos. Por que os declaram
passíveis de troca?
MÁRQUEZ: A estes governos, à hierarquia do exército e
à polícia nada lhes interessa a sorte de uns soldados e oficiais
que arriscaram como poucos a pele em defesa das instituições. E
não lhes interessa, porque estes não fazem parte da oligarquia.
Quem não se lembra de tudo o que fez o governo de Samper para libertar o
irmão do ex-presidente Gaviria, em poder do JEGA? Perguntem-no ao
general Serrano, que, sendo director da polícia, se ofereceu e esteve
nas mãos do JEGA como refém e garantia, enquanto se operava a
troca de uns guerrilheiros dessa organização por Juan Carlos
Gaviria, irmão do presidente da OEA. Creio que ele, sim, entende
perfeitamente a necessidade e viabilidade de uma troca ou intercâmbio
humanitário.
Quanto aos dirigentes políticos há que dizer o seguinte: eles,
especialmente os congressistas e ministros não todos, porque
entre eles há gente honesta e distanciada das práticas
indecorosas promulgaram leis e decretos que são
declarações de guerra contra o povo, e nós não
podemos deixar passar em claro esta circunstância. Mas, por muito
complexa que seja a situação, haverá sempre uma
saída. O comandante Manuel demonstrou que existem ferramentas
jurídicas e constitucionais que tornam viável o acordo, mas tem
faltado vontade política à outra parte e aduzem-se razões
que o não são. Creio que se se chegasse ao acordo Governo-FARC
para a libertação dos prisioneiros de guerra e políticos,
estaríamos criando condições para retomar no futuro os
esforços para a solução política do conflito social
e armado.
ANNCOL: Qual é o número de guerrilheiros que pretendem tirar dos
cárceres com a troca de prisioneiros?
MÁRQUEZ: Todos os guerrilheiros.
ANNCOL: Incluindo os capturados recentemente?
MÁRQUEZ: Se se refere à caça às bruxas
desencadeada pelo governo e às rusgas nocturnas da força
pública, devemos dizer que o país está vivendo na sua
própria carne uma ditadura fascista. Se estão a levar todos, a
bispos, sacerdotes, autarcas, médicos, empregados municipais,
camponeses, estudantes, gente das aldeias, sob a acusação de
serem guerrilheiros ou colaboradores da guerrilha. Imagine-se a
explicação de um coronel das detenções de
cidadãos no Valle: diz que os capturavam por serem olhos e ouvidos da
guerrilha... Ainda que daí a poucos dias ou meses tenham que os
libertar porque não há provas, não há
indemnização possível para estas pessoas que foram
mostradas com grande destaque na televisão e na imprensa como
terroristas, um qualificativo venenoso que os generais e o promotor de
serviço governo atribuem a toda a gente. Afortunadamente as pessoas
começam a reagir, como já aconteceu em Risaralda e no Valle, onde
a mesma Defensoría del Pueblo teve de intervir em defesa da
população civil. Felizmente, as ONG defensoras dos direitos
humanos estão levantando a denúncia, ainda que o Presidente os
qualifique de"traficantes dos direitos humanos" ou "defensores
dos terroristas". E neste sentido é muito valiosa a carta que os
intelectuais colombianos dirigiram recentemente ao senhor Uribe, condenando a
sua atitude. Perante o fascismo, a sociedade terá que reagir antes que
seja demasiado tarde, como no poema de Bertolt Brecht.
ANNCOL: O Presidente Uribe parece estar disposto a uma troca, mas se os
guerrilheiros libertados não regressarem à guerrilha. Acha bem
que os enviem para França?
MÁRQUEZ: Isso é um disparate. Não é troca nem
intercâmbio humanitário; isso é o desterro. É um
sofisma ou ardil para negar toda a possibilidade de acordo. Desterro por fazer
uso do direito universal que assiste a todos os povos do mundo de se levantarem
contra as tiranias ou regimes injustos. O acordo de troca, para que o seja,
implica que o governo receba e que as FARC também recebam.
ANNCOL: O chefe do comando sul das forças armadas dos EUA assegurou
recentemente que as FARC estão a preparar uma ofensiva, para quando
terminar o mandato de Uribe em 2006. Que há nisso de verdade?
MÁRQUEZ: Não creio que tenha uma fonte no Estado Maior Central
das FARC. O general James Hill advertiu que as FARC não estão
derrotadas. Outra coisa é que Uribe nos derrote no papel ou nos
títulos da grande imprensa para justificar as suas tropelias
tributárias ou para estimular o fluxo de ajuda proveniente da Casa
Branca. Mas, no fundo, eles sabem muito bem que as FARC estão
aí; por isso especulam ou lançam balões de ensaio.
ANNCOL: O que se passa em relação à reunião com a
ONU no Brasil?
MÁRQUEZ: Queremos expressar diante da ONU o nosso ponto de vista sobre o
conflito interno da Colômbia. Alguns organismos ou instâncias
internacionais têm um ponto de vista parcelar e retorcido e não
poucas vezes distorcido desta realidade, porque somente conhecem a
versão do governo da Colômbia, especialista em campanhas
mediáticas de desprestígio, e não ouviram as razões
da guerrilha que pugna por construir um novo governo. Estes diálogos
são muito importantes porque permitem aos nossos interlocutores ter um
panorama muito mais completo da complexa realidade colombiana. É neste
propósito que se insere a carta que recentemente dirigimos aos senhores
presidentes do Grupo do Rio, como também a que, há uns três
anos enviámos ao Congresso dos Estados Unidos.
O mundo não pode aceitar sem discussão que as FARC sejam
terroristas, porque assim o tenha definido a propaganda
contra-revolucionária de um governo. As FARC surgiram na Colômbia
como resposta ao terrorismo de Estado e à injustiça secular. O
mundo não pode deixar-se enganar com a história de que as FARC
sejam uma organização de narcotraficantes, porque com toda a
certeza não o são. E deve saber que esta é uma campanha
dos governos de Bogotá e de Washington, que procuram, por um lado, negar
o carácter político da nossa organização, e por
outro, justificar perante a comunidade das nações a
ingerência e a intervenção militar dos Estados Unidos no
conflito interno da Colômbia por razões geopolíticas.
As FARC-EP são uma organização político-militar,
que luta ao lado do povo por instaurar um Novo Poder, que torne
possível, pela primeira vez na Colômbia, a democracia, a
justiça social, a independência, a paz o exercício da
soberania. É justo que a comunidade internacional considere o
reconhecimento do estatuto das FARC como força beligerante.
O original encontra-se em
http://www.anncol.org/
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Traduzido para resistir.info por Carlos Coutinho.
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info
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