O Prémio Nobel da Guerra

por Michel Chossudovsky [*]

Não só amendoins. Foi também o homem que iniciou a guerra suja do Afeganistão e o terrorismo islâmico. O Prémio Nobel da Paz de 2002 foi atribuído ao antigo Presidente Jimmy Carter pelas: “suas décadas de incansáveis esforços na busca de soluções de paz para os conflitos internacionais, por fazer progredir a democracia e os direitos humanos e por promover o desenvolvimento social e económico.” (Instituto Nobel Norueguês, http://www.nobel.no/eng_ins_new.html , 11 de Outubro de 2002)

Comentadores liberais nos EUA tendem a ver a decisão do Comité Nobel como um gesto de repulsa aos planos de guerra da administração de Bush. Diz-se que o antigo presidente Carter, em oposição a George W. Bush, terá colocado os direitos humanos como "peça central da política externa norte-americana". Segundo as palavras do Comité Nobel Norueguês, o prémio “deve ser visto como uma crítica à política que a actual administração norte-americana adoptou em relação ao Iraque” (Citado no Toronto Star , 21 de Outubro de 2002)

Distorcendo a História

Estas palavras da moda — “direitos humanos” e “paz” — servem para distorcer a história da política externa dos EUA. Aqui, mais uma vez os media norte-americanos deixaram de mencionar um crucial “elo desaparecido” – uma peça de informação factual acerca da presidência de Carter, que tem uma directa relação com a nossa compreensão da progressiva crise do pós-11 de Setembro.

Amplamente documentada, mas raramente mencionada nos novos relatos do 11 de Setembro, a “Rede Militante Islâmica” (precursora do Al Qaeda de Osama bin Laden) foi realmente criada durante a presidência de Jimmy Carter (1976-1981). Em Julho de 1979, Carter assinou uma directiva presidencial, iniciando um plano secreto de apoio aos mujahideen no Afeganistão. Confirmado pelo antigo director da CIA, Robert Gates, no seu livro From the Shadows , este “plano secreto” era instrumental para travar a guerra soviético-afegã (Robert Gates, From the Shadows: The Ultimate Insider's Story of Five Presidents and How They Won the Cold War. http://www.gtexts.com/worthreading/gates.html ).

A maior parte dos livros de história americanos do ensino secundário descreve como os soviéticos invadiram o Afeganistão, “sem provocação e com força esmagadora”. A América então “veio salvar” a “resistência” do Afeganistão. Isto aconteceu sob a presidência de Jimmy Carter.

Além disso, o conselheiro de Segurança Nacional de Carter, Zbigniew Brzezinski, confirma que foram os EUA e não a União Soviética que começaram a guerra.

"De acordo com a versão oficial da história, a ajuda da CIA aos mujahadeen começou na década de 1980, ou seja, só depois de o exército soviético ter invadido o Afeganistão em 24 de Dezembro de 1979. Mas a realidade, mantida em segredo até agora, é exactamente o inverso. Na verdade, foi no dia 3 de Julho de 1979 que o Presidente Carter assinou a primeira directiva do apoio secreto aos opositores do regime pró-soviético em Kabul. Naquele mesmo dia escrevi uma nota ao presidente, na qual expliquei-lhe que na minha opinião este apoio iria induzir uma intervenção militar soviética...” (Entrevista com Zbigniew Brzezinski, Le Nouvel Observateur , 15-21 de Novembro de 1998)

Por outras palavras, a guerra Soviético-Afegã foi provocada pelas ordens do Presidente Carter, o mais recente receptor do Prémio Nobel da Paz.

Jimmy Carter não foi apenas um instrumento provocador de guerra (que tem decorrido nos últimos 23 anos). Ele foi também o arquitecto do apoio da CIA ao terrorismo islâmico. De facto, verifica-se que o primeiro suspeito do 11 de Setembro, o saudita Osama bin Ladem, foi recrutado durante tal período “ironicamente sob os auspícios da CIA, para combater os invasores soviéticos”. (Ver Michel Chossudovsky, War and Globalisation. The Truth behind September 11. Global Outlook, Shanty Bay, 2002, Capítulo 2)

Confirmado pelo Projecto Afegão ( http://nsarchive.chadwyck.com/afintro.htm ), que recolheu, da CIA e do Departamento de Estado centenas de documentos, telegramas e memorandos, a CIA “desenvolveu contactos” [significando apoio], no decurso de 1979, com algumas organizações terroristas islâmicas. O objectivo era não apenas derrubar o governo do pró-soviético Partido Democrático do Povo do Afeganistão (PDPA), mas também para desencadear uma guerra contra a União Soviética.

Entretanto, em Abril de 1979, o primeiro ministro eleito do Paquistão, Zulfilcar Ali Bhutto, foi deposto num golpe militar e condenado à morte por ordem do general Zia al-Haq. A administração Carter não só apoiou os novos governantes militares do Paquistão, como também os utilizou na guerra que a CIA travava no Afeganistão.

[principiando na administração Carter] as relações entre a CIA e a ISI [Inteligência Militar do Paquistão] intensificaram-se bastante na sequência da rejeição de Bhutto por parte do [General] Ziar e do advento do regime militar... Durante a maior parte da Guerra Afegã, o Paquistão foi ainda mais “anti-sovieticamente” agressivo que os EUA. Logo depois de os militares soviéticos terem invadido o Afeganistão, em 1980, Zia mandou o seu chefe da ISI desestabilizar os estados soviéticos da Ásia Central. A CIA só concordou com este plano em Outubro de 1984... a CIA foi mais prudente que os paquistaneses. Tanto o Paquistão como os EUA adoptaram a linha do engano quanto ao Afeganistão, com uma postura de negociar um acordo enquanto às ocultas concordavam em que uma escalada militar era o melhor rumo. (Diego Cordovez and Selig Harrison, Out of Afghanistan: The Inside Story of the Soviet Withdrawal. Oxford University Press, New York, 1995. Ver também a revisão de Cordovez e Harrison em International Press Services (IPS), 22 de Agosto de 1995).

Por sua vez, o treinamento da guerrilha patrocinada pela CIA foi integrado com os ensinamentos do Islão. As madrassas foram erguidas pelo fundamentalistas Wahabi financiados fora da Arábia Saudita:

"Era o governo dos EUA que apoiava o ditator paquistanês General Zia-ul Haq na criação de milhares de escolas religiosas a partir das quais emergiram os germes dos Taliban. ( Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão (RAWA), RAWA Statement on the Terrorist Attacks In the US , Centro de Investigação sobre a Globalização (CRG), http://globalresearch.ca/articles/RAW109A.html , 16 de Setembro de 2001)

O apoio norte-americano aos mujahideen iniciado durante a administração de Carter levou a injectar "milhares de milhões de dólares para a causa afegã. A milhares de entusiastas islâmicos foi dado um treino especial nos EUA e na Grã-Bretanha. (Revista de John Cooley's Unholy Wars — Afghanistan, America and International Terrorism . http://www.neue-einheit.com/mixed/terror/bookreview.htm ):

Nos EUA eles fizeram sérios cursos de endurance , utilização de armas, sabotagem, técnicas de assassinato, comunicações e outras habilidades. Foi-lhes pedido para comunicar tais perícias a milhares de combatentes que formavam o centro e a base da pirâmide da guerra santa. (John K. Cooley, Unholy Wars — Afghanistan, America and International Terrorism. London Pluto Press, 1999, p. 81)

O General Zia ul-Haq foi um protegido tanto da administração de Carter como da de Reagan. O seu governo desempenhou um papel-chave no recrutamento e treino dos mujahideen:

A CIA tornou-se o grande coordenador: adquiria ou obtinha armas de estilo soviético no Egipto, na China, na Polónia, em Israel e em outros lugares, ou fornecia-as ela própria; obtinha treinamento militar junto a americanos, egípcios, chineses e iranianos; solicitava doações aos países do Médio Oriente, especialmente a Arábia Saudita, que todos os anos concedeu largas centenas de milhões de dólares de apoio, totalizando mais de mil milhões; pressionava e subornava o Paquistão – com o qual as relações americanas haviam esfriado recentemente – a alugar o país como área de “palco” e “santuário”; colocando na “folha de pagamento” o director paquistanês de Operações Militares, o Brigadeiro Mian Mohammad Afzal, a fim de assegurar a cooperação paquistanesa. ( Phil Gasper, Afghanistan, the CIA, bin Laden, and the Taliban International Socialist Review . Novembro-Dezembro de 2001, http://www.thirdworldtraveler.com/Afghanistan/Afghanistan_CIA_Taliban.html )

A estrutura básica do apoio encoberto da CIA montado sob a administração de Carter prosseguiu durante a presidência de Reagan. Não houve desacordo fundamental entre Democratas e Republicanos a respeito da condução da guerra soviético-afegã:

Quando Ronald Reagan se tornou presidente, em 1981, encontrou o Congresso Democrata ansioso por aumentar os gastos na guerra afegã. Um membro do congresso contou a um repórter: “Foi uma sorte inesperada [para a nova administração]. Eles haviam enfrentado forte pressão a acções encobertas na América Central, e vinha agora um Congresso que os ajudava e lhes dava dinheiro, punha o dinheiro no seu caminho; e eles diziam: 'Quem somos nós para dizer não?' ” ( Ibidem )

A directiva de Carter de 3 de Julho de 1979

Seguindo a directiva do presidente Carter de 3 de Julho de 1979, os EUA apoiam vários grupos de rebeldes na maior operação encoberta da história da CIA. Nas palavras no Conselheiro da Segurança Nacional de Carter, Zbigniew Brzezinski:

“Tal operação secreta [de apoio ao fundamentalismo islâmico] foi uma ideia excelente. Teve o efeito de colocar os russos na armadilha afegã e quereis lamentar-vos disso? No dia em que os soviéticos atravessaram oficialmente a fronteira, escrevi ao Presidente Carter. Temos agora a oportunidade de dar à URSS a sua guerra do Vietname. Na verdade, durante quase dez anos, Moscovo teve de aguentar uma guerra insuportável, um conflito que trouxe a desmoralização e finalmente o desmoronamento do Império Soviético.

O jornalista do Nouvel Observateur conclui a entrevista com Zbigniew Brzezinski com a seguinte questão: Não lamenta ter apoiado o fundamentalismo islâmico, tendo dado armas e conselhos aos futuros terroristas?

Ao que Brzezinski replicou: O que é mais importante na história do mundo? Os Taliban ou o colapso do Império Soviético? Alguns provocadores muçulmanos ou a libertação da Europa Central e o fim da Guerra Fria?

No despertar do 11 de Setembro

Num incisivo editorial publicado dias após os trágicos eventos de 11 de Setembro, o crítico anti-guerra Tom Burghardt aponta as raízes históricas do Al Qaeda e a cumplicidade das sucessivas administrações norte-americanas desde a presidência de Jimmy Carter.

À medida que aumenta a evidência de que aqueles que perpetraram os ataques do 11 de Setembro estão conectados com o al-Qaida ("A Base") da Organização de Osama bin Laden, também é crítico apresentar as raízes mortíferas deste grupo: a CIA, a corrupta dinastia saudita, a agência “Inter-Services Intelligence” do Paquistão. Não importa nada à classe dirigente americana que dois milhões de afegãos tenham sido mortos na “jihad” norte-americana contra a União Soviética. Carter, Reagan, Bush, Brzezinski, Casey... tome nota destes nomes... deveriam ser lembrados – e amaldiçoados – nos dias vindouros... Se se tiver de fazer um registo completo do massacre de terça-feira [11 de Setembro de 2001] – e o processo criminal àqueles que o perpetraram – a justiça clama por uma acusação ao arquitecto da “resistência” afegã [significa a "base militante islâmica"]. (Antifa Bulletin 133, 16 de Setembro 2001. http://burn.ucsd.edu/archives/ats-l/2001.09/msg00010.html )

Continuidade na Política Externa Norte-americana

A história da política externa norte-americana na Ásia Central sugere que a presidência de Carter (1976-1981), enquanto apregoava a retórica da paz e dos direitos humanos, foi efectivamente instrumental em desencadear uma guerra; e em muitos aspectos, lançou os fundamentos da crescente “guerra ao terrorismo” da administração de Bush.

Esta continuidade da política externa norte-americana desde a administração de Carter não é em si própria o resultado de um “consenso” entre Republicanos e Democratas. Aponta essencialmente para uma crise na “política civil”. Por outras palavras, o aparelho militar e de “inteligência” tomou conta da política externa, em estreita ligação com o Wall Street, com os conglomerados petrolíferos do Texas e o complexo militar-industrial. Com as decisões-chave tomadas atrás das portas fechadas do CIA e do Pentágono, as instituições políticas civis, incluindo o Presidente e o Congresso Norte-americano, desempenham cada vez mais o papel de fachada.

Por outras palavras, a política externa norte-americana não emana de instituições de governo civil (ou seja, o Legislativo e o Executivo). Isso acontece porque o aparelho militar e de inteligência – e os vários poderes que estão por detrás disso – tendem a passar por cima das instituições de governo civil na fixação da agenda tanto militar como diplomática.

Neste processo, que atingiu uma nova etapa na administração de G. W. Bush, o Comandante-Chefe responde em grande medida às instruções dos conselheiros-chave. Enquanto a ilusão de uma democracia que funciona prevalece aos olhos da opinião pública, o presidente norte-americano tornou-se uma mera figura de relações públicas, entendendo manifestamente pouco as questões chave da política externa.

Outros proeminentes “Laureados com o Nobel da Guerra” incluem:

1973: Henry A. Kissinger, secretário de Estado na Administração de Nixon.

1993: Frederik Willem de Klerk, Presidente da República da África do Sul durante o regime do apartheid.

1994: Shimon Peres, ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel.

25/Out/02
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[*] Professor da Universidade de Ottawa.

A URL do original deste artigo é:
http://globalresearch.ca/articles/CHO210B.html .

Traduzido do inglês por Ricardo Tavares ( dox@megamail.pt ).


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30/Out/02