Com a velocidade vertiginosa com que se desenrola a crise do modo de produção capitalista, poder-se-ia considerar este texto do Prof. Chossudovsky já um tanto antigo: é de Maio de 2000. Por que, então, publicá-lo agora, 28 meses depois? Porque tudo o que aqui se explica foi e continua a ser válido, plenamente confirmado pelo desenrolar posterior dos factos. A crise aprofundou-se e ganhou novas dimensões, estendeu-se a novas regiões do mundo e agora, para fugir ao colapso sistémico, o império procura saídas guerreiras. Mas nem por isso as políticas, aqui descritas, do FMI e do BM foram alteradas. Continuam exactamente as mesmas. O seu objectivo prioritário é salvar os credores dos países aprisionados na cadeia da dívida, países espoliados pela via financeira mas sob a constante ameaça militar. Viu-se isso ainda agora com a crise argentina, com a presente crise uruguaia e com o empréstimo de US$ 30 mil milhões concedido ao Brasil para salvar os banqueiros de Nova York. O poder explicativo deste artigo não se reduziu com o passagem do tempo. Por isso vale a pena lê-lo ou relê-lo.
resistir.info


GUERRA FINANCEIRA

por Michel Chossudovsky [*]


              "As práticas dos cambistas sem escrúpulos estão sob acusação no tribunal da opinião pública, repudiadas pelos corações e pelas mentes dos homens" (Discurso de Abertura de Franklin D. Roosevelt, 1933)

Prof. Michel Chossudovsky A humanidade vive, na era posterior à Guerra Fria, uma crise económica a uma escala sem precedentes que leva ao empobrecimento acelerado de grandes sectores da população do mundo. A queda virtual das moedas nacionais em todas as regiões do mundo contribuiu para desestabilizar as economias nacionais enquanto precipita países inteiros para uma pobreza desastrosa.

A crise não se limita ao Sudeste Asiático nem à ex União Soviética. O colapso no nível de vida começa a ocorrer, de forma abrupta e simultânea num grande número de países. Esta crise mundial de finais do século XX é mais devastadora que a Grande Depressão dos anos 30. Tem profundas implicações geopolíticas: A deslocação económica foi acompanhada também pela irrupção de conflitos regionais, pela ruptura de sociedades nacionais, e nalguns casos , pela destruição de países inteiros. É, de longe, a mais séria crise da história moderna.

A existência de uma "crise financeira global" é negada de forma ágil pelos média ocidentais, os seus impactos sociais são desvalorizados ou deformados; as instituições internacionais, incluindo as Nações Unidas, negam a crescente maré de pobreza do mundo: " O progresso na redução da pobreza durante os (finais do) Século Vinte é notável e sem precedentes...". O " consenso" é que a economia ocidental está "saudável" e as "correcções de mercado" em Wall Street devem ser largamente atribuídas à "gripe asiática" e à difícil "transição" da Rússia "para uma economia de mercado livre".

EVOLUÇÃO DA CRISE FINANCEIRA GLOBAL

A queda dos mercados das moedas asiáticas (iniciada em meados de 1997) foi acompanhada em outubro de 1997 pela dramática fusão das maiores bolsas do mundo. No incerto despertar da recuperação temporária de Wall Street em princípios de 1998, estimulada sobretudo pela explosão dos mercados de valores e financeiros do Japão, voltou a cair, meses mais tarde para atingir um novo momento crucial em agosto com a espectacular caída em picado do rublo russo. O Dow Jones caiu 554 pontos a 31 de Agosto (a sua maior queda na história da bolsa de Nova York) conduzindo, em Setembro à dramática fusão dos mercados de valores de todo o mundo.

Em poucas semanas (desde o pico de 9337 do Dow Jones a meados de Julho) evaporaram-se 2300 mil milhões de dólares de "ganhos sobre o papel" do mercado de valores dos Estados Unidos. A queda livre do rublo tinha levado os maiores bancos comerciais de Moscovo à falência, conduzindo a uma potencial absorção do sistema financeiro russo por um punhado de bancos e correctores de bolsa ocidentais. Por outro lado, a crise criou o perigo de uma insolvência aos credores ocidentais de Moscovo, incluindo os bancos Deutsche e Dresdner.

Desde o principio das reformas macro-económicas da Rússia, depois da primeira injecção da "terapia de choque" do FMI em 1992, confiscaram-se (através dos programas de privatização e falências forçadas) e transferiram-se para as mãos de capitalistas ocidentais uns 500 mil milhões de dólares de activos russos — incluindo fábricas do complexo militar-industrial, infraestruturas e recursos naturais. No brutal período subsequente à Guerra Fria, está a desmantelar-se todo um sistema económico e social.

GUERRA FINANCEIRA

A corrida desenfreada, a nível mundial, pela apropriação de riquezas através da "manipulação financeira" é a força por detrás desta crise. É também a fonte de agitação social e de devastação social. Segundo o conhecido especulador de divisas e milionário George Soros (que teve US$ 1,6 mil milhões de ganhos especulativos com a dramática queda da libra inglesa em 1992) "a extensão do mecanismo de mercado a todos os terrenos tem o potencial de destruir a sociedade".

Esta manipulação das forças de mercado pelos actores poderosos constitui uma forma de guerra financeira e económica. Não é necessário recolonizar territórios perdidos ou enviar exércitos invasores. Nos finais do século vinte, a "conquista de nações" directa, significando o controle sobre os activos produtivos, a mão de obra, os recursos naturais, pode ser realizada de forma impessoal a partir da sala de direcção de uma corporação: as ordens são enviadas através de um computador ou pelo telemovel. Os dados pertinentes são transmitidos instantaneamente aos principais mercados financeiros — resultando frequentemente em disrupções imediatas no funcionamento das economias nacionais.

"A guerra financeira" também adopta instrumentos especulativos complexos, incluindo toda a gama do comércio de derivados, transações de futuros de comércio externo, fundos indexados, etc. Utilizaram-se instrumentos especulativos com o fim último de capturar a riqueza financeira e de adquirir o controle sobre os activos produtivos. Nas palavras do primeiro ministro da Malásia, Mahathir Mamad: "Esta desvalorização deliberada da moeda de um país pelos especuladores com divisas, unicamente para obter ganhos, é a negação dos direitos das nações independentes".

A apropriação da riqueza global pela manipulação das forças do mercado é regularmente apoiada pelas letais intervenções macro-económicas do FMI que actua quase simultaneamente no transtorno desapiedado das economias nacionais em todo o mundo. "A guerra financeira" não conhece fronteiras territoriais; não limita as suas acções a encurralar antigos inimigos da era da Guerra Fria. Na Coreia, na Indonésia e na Tailândia, os cofres dos bancos centrais foram saqueados por especuladores institucionais enquanto as autoridades monetárias tentavam em vão reforçar as suas debilitadas moedas. Em 1997, mais de 199 mil milhões de dólares das reservas de divisas da Ásia foram confiscadas e transferidas, no espaço de poucos meses, para mãos privadas do sector financeiro. Com o andamento das desvalorizações monetárias, as receitas reais e o emprego precipitaram-se virtualmente em poucas horas, conduzindo à pobreza maciça países que tinham conseguido alcançar um progresso económico e social significativo no período do pós guerra.

A trapaça financeira no mercado das divisas estrangeiras desestabilizou as economias nacionais, criando assim as condições prévias para a pilhagem posterior dos activos produtivos dos países asiáticos pelos chamados "investidores abutres estrangeiros". Na Tailândia, 56 bancos e instituições financeiras domésticas, foram fechadas por ordem do FMI e o desemprego aumentou virtualmente de um dia para o outro. De forma semelhante, na Coreia, a "operação de resgate" do FMI lançou uma cadeia letal de falências que conduziram ao encerramento directo dos "bancos comerciais aflitos".

Como resultado da "mediação" do FMI (realizada em Dezembro de 1997, depois de consultas ao mais alto nível com os maiores bancos comerciais e mercantis do mundo) "fecharam-se uma média de mais de 200 companhias por dia (...) 4000 trabalhadores foram lançados para a rua na qualidade de desempregados". Como resultado do congelamento de créditos e do "fecho instantâneo de bancos", em 1998 esperavam-se umas 1500 falências, incluindo 90 por cento das empresas de construção da Coreia (com dívidas combinadas de 20 mil milhões de dólares às instituições financeiras domésticas).

O Parlamento da Coreia do Sul transformou-se num "órgão de referendum". A validação de leis é forçada através da "chantagem financeira": se a legislação não é rapidamente aprovada, de acordo com os prazos do FMI, os pagamentos do compromisso seriam suspensos, com o perigo de uma nova especulação monetária. Por outro lado, o "programa de saída" patrocinado pelo FMI (ou seja, falências forçadas), contribuiu deliberadamente para fragmentar os "chaebols" que são convidados agora a estabelecer "alianças estratégicas com empresas estrangeiras" (o que pode significar o seu eventual controle pelo capital ocidental).

Com a desvalorização, o custo da mão-de-obra coreana também ruiu: "É agora mais barato comprar uma destas empresas (de alta tecnologia) do que comprar uma fábrica — e você recebe grátis toda a distribuição, o reconhecimento da marca e a mão-de-obra especializada"...

A MORTE DOS BANCOS CENTRAIS

Em muitos sentidos, a crise mundial assinala o definhamento dos bancos centrais, o que significa a diminuição da economia nacional, assim como a incapacidade do estado nacional de controlar a criação de moeda por mandato da sociedade. Por outras palavras, as reservas de moeda em mãos privadas de "especuladores institucionais" excedem amplamente as limitadas capacidades dos bancos centrais do mundo. Estes bancos, actuando individual ou colectivamente, já não podem combater a maré de actividade colectiva. A política monetária está nas mãos dos credores privados, que tem a capacidade de congelar orçamentos do Estado, paralisar os processos de pagamentos, frustrar o pagamento regular de salários a milhões de trabalhadores (como na ex União Soviética), e precipitar o colapso de programas sociais e de produção.

Enquanto a crise se aprofunda, os ataques especulativos contra os bancos centrais estendem-se à China, à América Latina e ao Médio Oriente, com consequências económicas e sociais devastadoras. Esta contínua pilhagem das reservas dos bancos centrais, no entanto, não se limita, de forma nenhuma, aos países em vias de desenvolvimento. Também afectou vários países ocidentais incluindo o Canadá e a Austrália, onde as autoridades monetárias não foram capazes de parar o declínio das suas moedas nacionais. No Canadá, como resultado dos ataques especulativos, fizeram-se empréstimos no valor de milhares de milhões de dólares recorrendo a financistas privados para sustentar as reservas do banco central. No Japão — onde o yen caiu para níveis muito baixos — vê-se "o panorama coreano" (segundo o economista Michael Hudson), como um "ensaio geral" para a apropriação do sector financeiro japonês, por uma série de bancos de investimento ocidentais.

Entre outros, os grandes jogadores são Goldman Sachs, Morgan Stanley, Deutsche Morgan Gruenfell, que estão a comprar os empréstimos insolventes dos bancos japoneses a menos de 10 por cento do seu valor nominal. Nos últimos meses, tanto o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Robert Rubin, como a secretária de Estado Madeleine K Albright, exerceram pressão política sobre Tóquio insistindo "em nada menos que uma adjudicação imediata dos maus bancos do Japão — de preferencia a "investidores rapaces" estadunidenses e outros estrangeiros, a preços de emergência. Para atingir os seus objectivos, estão inclusive a pressionar o Japão para que rescreva a sua constituição, reestruture o seu sistema político e o seu governo e reconstrua o seu sistema financeiro. Quando os investidores estrangeiros tiverem o controle dos bancos japoneses, estes bancos começarão a apoderar-se da industria nipónica..."

CREDORES E ESPECULADORES

Os principais bancos e agentes da bolsa de todo o mundo são ao mesmo tempo credores e especuladores institucionais. No actual contexto, contribuem (através dos seus assaltos especulativos) para desestabilizar as moedas nacionais, aumentando assim o volume de dívidas denominadas em dólares.

Reaparecem então como credores para cobrar essas dívidas. Por fim, são convocados como "conselheiros de política" ou como consultores de "programas de bancarrota" patrocinados pelo FMI e pelo Banco Mundial, dos quais eles são os beneficiários finais. Na Indonésia, por exemplo, no meio dos distúrbios de rua e após a renuncia de Suharto, a privatização de sectores chave da economia indonésia ordenada pelo FMI foi confiada a oito dos maiores bancos comerciais do mundo, incluindo a Lehman Brothers, Crédit Suisse-First Boston, Goldman Sachs e UBS/SBC Warburg Dillon Read.

Os maiores gerentes de moeda do mundo, incendeiam os países e depois são chamados como bombeiros (sob o "plano de resgate" do FMI) para extinguir o fogo. Por fim são eles que decidem quais as empresas a serem fechadas e quais a serem leiloadas a investidores estrangeiros a preços de liquidação.

QUEM FINANCIA OS RESGATES DO FMI?

Sob repetidos ataques especulativos, os bancos centrais asiáticos haviam pactuado uma série de contratos multimilionários (no futuro mercado de divisas) numa vã tentativa de proteger a sua moeda. Com o esgotamento total das suas reservas de moeda dura, as autoridades monetárias viram-se obrigadas a pedir empréstimos de grandes somas de dinheiro através do acordo de resgate do FMI. Seguindo um esquema concebido durante a crise mexicana de 1994-5, o dinheiro para um resgate, no entanto, não se destina a "resgatar o país", na prática o dinheiro nunca entrou na Coreia, nem na Tailândia, nem na Indonésia, destinou-se a reembolsar os "especuladores institucionais", para se ter a certeza de que poderiam cobrar o seu multimilionário botim. Por sua vez, os tigres asiáticos foram domesticados pelos seus amos financeiros. Transformados em cordeiros, foram "encurralados" para que pagassem os juros dessas imensas dívidas em dólares até meados do terceiro milénio.

Mas, "de onde veio o dinheiro" para financiar essas operações multimilionárias? Só uma pequena parte vem dos recursos do FMI. Começando com o resgate mexicano de 1995, apelou-se aos países do G7, inclusive ao Tesouro dos Estados Unidos para que fizessem grandes contribuições de somas globais para estas operações de resgate patrocinadas pelo FMI, o que levou a aumentos consideráveis nos níveis da dívida pública. Mas, numa jogada irónica, a emissão da dívida publica dos Estados Unidos para financiar os resgates é avalizada e garantida pelo mesmo grupo de bancos comerciais de Wall Street envolvidos nos assaltos especulativos.

Por outras palavras, aqueles que garantem a emissão da dívida pública (para financiar o resgate) são os mesmos que no final das contas se apoderam do botim (por exemplo como credores da Coreia ou da Tailândia) ou seja são os beneficiários finais do dinheiro do resgate (o que essencialmente constitui uma "rede de segurança" para o especulador institucional). As amplas quantidades de dinheiro concedidas com os pacotes de resgate têm a finalidade de permitir aos países asiáticos o cumprimento das suas obrigações de dívida com as mesmas instituições financeiras que, para começar, contribuíram para precipitar a quebra das suas moedas nacionais. Como resultado deste circulo vicioso, um punhado de bancos comerciais e correctores de bolsa enriqueceram para além de qualquer limite; e também aumentaram o seu domínio sobre os governos e sobre os políticos de todo o mundo.

UMA FORTE MEDICINA ECONÓMICA

Desde a crise mexicana de 1994-5, o FMI tem tido um papel crucial na criação do "ambiente financeiro", no qual os bancos e os gerentes de divisas globais, conduzem os seus ataques especulativos. Os bancos globais anseiam por conseguir acesso a informações privilegiadas. Os ataques especulativos com êxito requerem a implementação simultânea, por sua conta de "uma medicina económica forte" sob os acordos de resgate do FMI. Os "seis grandes" dos bancos comerciais de Wall Street (incluindo o Chase, Bank America, Citicorp e J.P. Morgan) e os "cinco grandes" dos bancos mercantis (Goldman Sachs, Lehman Brothers, Morgan Stanley e Salomon Smith Barney), foram consultados sobre as cláusulas a serem incluídas nos acordos de resgate. No caso da dívida a curto prazo coreana, as maiores instituições de Wall Street foram convocadas no dia de Natal (24 de Dezembro de 1997), para conversações de alto nível no Banco da Reserva Federal de Nova Iorque. Os bancos globais têm um interesse directo no declínio das moedas nacionais.

Em Abril de 1997, apenas dois meses depois do princípio da crise monetária asiática, o Instituto de Finanças Internacionais (IFI), um think tank com base em Washington que representa os interesses de uns 290 bancos e correctores de bolsa globais, havia "instado às autoridades nos mercados em vias de desenvolvimento a que se opusessem às pressões de aumento das taxas de cambio onde fosse necessário...". Esta petição (comunicada numa carta formal ao FMI, assinala em termos que não deixam lugar a dúvidas, que o FMI deveria propiciar um ambiente no qual fosse permitido que as moedas nacionais declinassem). O FMI ordenou à Indonésia que libertasse a sua moeda apenas três meses antes da dramática queda da rúpia.

Segundo o multimilionário e candidato presidencial estadunidense Steve Forbes: "o FMI precipitou a crise? Esta agencia propicia a abertura e a transparência das economias nacionais, mas rivaliza com a CIA a escurecer as suas próprias operações. Teve, por exemplo, conversações secretas com a Tailândia, advogando a favor da desvalorização que provocou instantaneamente a catastrófica cadeia de acontecimentos?"(...) As prescrições do FMI, exacerbaram a doença? As moedas destes países caíram a níveis absurdamente baixos".

DESREGULAÇÃO DOS MOVIMENTOS DE CAPITAIS

As regras internacionais que regulam os movimentos de dinheiro e de capitais (através das fronteiras internacionais) contribuem para determinar "os campos de batalha financeiros nos quais os bancos e os especuladores travam os seus ataques mortíferos. Na sua campanha mundial para se apropriar de riquezas económicas e financeiras, os bancos globais e as corporações internacionais, pressionaram activamente para a desregulamentação total dos fluxos de capitais internacionais, incluindo o movimento de dinheiro "quente" e "sujo".

Cedendo a estas exigências (depois de apressadas consultas com os ministros de finanças do G7), o comité interino do FMI adoptou um veredicto final para liberalizar os movimentos de capitais, em Abril de 1998. O comunicado oficial revelou que o FMI procederá a uma Emenda dos seus Artigos a fim de "converter a liberalização dos movimentos de capital, um dos propósitos do Fundo e estender, na medida em que seja necessário, a jurisdição do Fundo com este fim". O director geral do FMI, Sr. Michael Camdessus, no entanto, concedeu, num tom desapaixonado que "uma quantidade de países em vias de desenvolvimento podem sofrer ataques especulativos depois de abrir a sua conta de capitais" enquanto reiterava (ad nauseam) que isto pode ser evitado mediante a adopção de "políticas macro-económicas saudáveis e sistemas financeiros fortes, nos países membros". (por exemplo a "cura económica para o desastre", padrão do FMI).

A decisão do FMI de liberalizar os movimentos de capitais, foi adoptada à porta fechada (convenientemente escondida dos olhos do público e com pouca cobertura jornalística) apenas duas semanas antes de grupos de cidadãos de todo o mundo se reunissem, em finais de Abril de 1998, em manifestações de massas em Paris em oposição ao controverso Acordo Multilateral sobre Inversões (AMI) sob os auspícios da OCDE. Este acordo teria concedido direitos caucionados aos bancos e às corporações multinacionais, anulando as leis nacionais sobre inversões estrangeiras e anulando os direitos fundamentais dos cidadãos.

O AMI

Constitui um acto de capitulação da parte dos governos democráticos frente aos bancos e às corporações multinacionais. O momento escolhido era certamente o apropriado: enquanto a aprovação do AMI tinha chegado, provisoriamente, a um ponto morto, a desregulamentação das inversões estrangeiras proposta através de um caminho mais expedito, fora oficialmente lançada: a Emenda dos Artigos derrogaria, para todo e qualquer propósito prático, os poderes dos governos nacionais para regular a inversão estrangeira. Anularia também os esforços dos cidadãos de todo o mundo contra o AMI: lograr-se-ia a desregulamentação da inversão estrangeira ("de uma tacada") sem necessidade de um complicado acordo multilateral sob os auspícios da OCDE ou da OMC, e sem o aborrecimento legal de um tratado global de investimentos baseado na lei internacional.

CRIANDO UM GUARDIÃO FINANCEIRO GLOBAL

Enquanto se desenvolve a agressiva corrida pela riqueza global, e a crise financeira atinge alturas perigosas, os bancos e os especuladores internacionais estão ansiosos por ter um papel mais directo na formação de estruturas financeiras que lhes sejam vantajosas, assim como estão ansiosos por "controlar" no âmbito de país. Os conservadores do mercado livre nos Estados Unidos (associados ao partido republicano), culparam o FMI pela sua imprudente conduta. Apesar do status intergovernamental do FMI, estão a exigir um maior controle dos Estados Unidos sobre o FMI. Também indicam que, no futuro, o FMI deveria ter um papel mais contemplativo (semelhante ao das agencias de qualificação de risco, como Moody's ou Standard and Poor) enquanto consignavam o financiamento dos resgates multimilionários ao sector privado.

Depois de, em 1998, terem discutido este assunto à porta fechada, os maiores bancos e companhias de inversão do mundo apresentaram uma iniciativa mais inteligente (acomodada no seu idioma mais suave) através do seu vogal em Washington (o Instituto de Finanças Internacionais). A proposta dos bancos consistia na criação de um "Guardião Financeiro" — o chamado " Conselho Consultivo do Sector Privado" — com o fim de supervisionar regularmente as actividades do FMI. "O Instituto (de Finanças Internacionais), com o selo quase universal das maiores firmas de finanças privadas, está preparado para trabalhar com a comunidade oficial para adiantar o processo".

Respondendo à iniciativa dos bancos globais, o FMI solicitou passos concretos "para fortalecer a participação do sector privado no manejo da crise" — o que pode ser interpretado como "um arranjo para compartilhar a crise", entre o FMI e os bancos globais. A comunidade bancária internacional também estabeleceu o seu próprio "Comité Directivo Sobre as Finanças dos Mercados Emergentes", integrado por alguns dos homens de finanças mais poderosos do mundo, incluindo William Rodes, vice-presidente do Citibank e Sir David Walker, presidente da Morgan Stanley.

A agenda oculta por trás destas diferentes iniciativas é transformar gradualmente o FMI — do seu status actual como organismo intergovernamental — numa burocracia com a máxima legalidade que venha a servir mais efectivamente os interesses dos bancos globais. E o mais importante é que, os bancos e os especuladores querem ter acesso aos pormenores das negociações do FMI com os governos membros, o que os capacitaria a posicionarem cuidadosamente os seus assaltos aos mercados financeiros, tanto antes como depois de um acordo de resgate do FMI. Os bancos globais (apontando para a necessidade de "transparência") apelaram a que "o FMI disponha pormenores preciosos (sobre as suas negociações com os governos nacionais) sem revelar informações confidenciais..."

Mas, o que na realidade querem, é informação interna privilegiada. A actual crise financeira, não só leva ao ocaso das instituições estatais nacionais em todo o mundo, mas também consiste num desmantelamento (e possível privatização) das instituições do pós-guerra estabelecidas pelos pais fundadores da Conferencia de Bretton Woods em 1994. Em flagrante contraste com o actual papel destrutivo do FMI, os seus arquitectos desejariam que essas instituições salvaguardassem a estabilidade das economias nacionais. Nas palavras de Henry Morgenthau, secretário do Tesouro dos Estados Unidos, na sua declaração de encerramento da conferencia (22 de Julho de 1944): "Viemos aqui para desenvolver métodos que eliminem os males económicos — a desvalorização monetária competitiva e os obstáculos que afectam o comércio — que precederam a actual guerra. Tivemos êxito neste esforço".

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[*] Professor da Universidade de Montreal, Canadá.  Autor de A globalização da pobreza, director do Centro de Investigação sobre a Globalização .

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

13/Set/02