"A Globalização da Pobreza
e a Nova Ordem Mundial"
Agora em edição em portuguesa
por Michel Chossudovsky
[*]
INTRODUÇÃO
No período do pós-guerra-fria, a humanidade atravessa uma crise
económica e social de escala sem precedentes que está a conduzir
ao rápido empobrecimento de vastos sectores da população
mundial. Assiste-se ao colapso de economias nacionais e a um aumento alarmante
do desemprego. Na África subsariana, no Sul da Ásia e em partes
da América Latina, têm-se verificado surtos de fomes a
nível local. Esta «globalização da pobreza»
que, em grande medida, fez retroceder as realizações
alcançadas com a descolonização do pós-guerra
teve o seu início num Terceiro Mundo marcado pela crise da
dívida no princípio dos anos 80 e a consequente
imposição de reformas económicas nefastas pelo Fundo
Monetário Internacional.
A Nova Ordem Mundial é sustentada pela pobreza humana e a
destruição do ambiente. Dá origem ao apartheid social,
promove o racismo e os conflitos étnicos, mina os direitos das mulheres
e, frequentemente, precipita os países para confrontos destrutivos entre
nacionalidades. Desde os anos 90, tem vindo a estender o seu domínio a
todas as principais regiões do Mundo, incluindo a América do
Norte, a Europa Ocidental, os países do antigo bloco soviético e
os «Novos Países Industrializados» (NPI) do Sudeste
Asiático e do Extremo Oriente.
Esta crise a nível mundial é mais devastadora do que a Grande
Depressão dos anos 30. Tem consequências geopolíticas de
grande alcance; a perturbação económica faz-se acompanhar
pelo desencadear de guerras regionais, a fractura de sociedades nacionais e,
nalguns casos, a total destruição de países inteiros. Esta
é, indubitavelmente, a crise económica mais grave da
História Moderna.
A RECESSÃO DO PERÍODO DO PÓS-GUERRA-FRIA
Na ex-União Soviética, como consequência directa do
«tratamento económico» nefasto do FMI iniciado em 1992, o
declínio económico ultrapassou a queda na produção
verificada no auge da Segunda Guerra Mundial, após a
ocupação alemã da Bielorrússia e de partes da
Ucrânia em 1941 e o intenso bombardeamento da infra-estrutura industrial
soviética. De uma situação de emprego total e relativa
estabilidade de preços nos anos 70 e 80 passou-se para um quadro de
subida em flecha da inflação, queda vertical dos salários
reais e da taxa de emprego e abandono dos programas de saúde. A
cólera e a tuberculose alastram a uma velocidade alarmante numa vasta
área da ex-União Soviética [1].
O modelo da ex-União Soviética repete-se na Europa de Leste e nos
Balcãs. Umas após outras, as economias nacionais desmoronam-se.
Nos estados bálticos (Lituânia, Letónia e Estónia),
bem como nas repúblicas caucasianas da Arménia e do
Azerbaijão, verifica-se um declínio da produção
industrial que atinge os 65%. Na Bulgária, as pensões de reforma
tinham descido para dois dólares por mês em 1997 [2]. O Banco
Mundial admitiu que 90% dos búlgaros vivem abaixo do limiar da
pobreza, fixado por aquela instituição em 4 dólares por
mês [3]. Sem meios para pagarem luz, água e transportes, grupos
populacionais
por toda a Europa de Leste e os Balcãs vêem-se brutalmente
arredados da era moderna.
O FIM DOS «TIGRES ASIÁTICOS»
No leste da Ásia, a crise financeira de 1997 marcada por ataques
especulativos contra divisas nacionais contribuiu em grande medida para
o fim dos chamados «tigres asiáticos» (Indonésia,
Tailândia e Coreia). Os acordos de assistência do FMI, impostos
logo após o colapso financeiro, tiveram como consequência imediata
o declínio abrupto do nível de vida das populações.
Na Coreia, na sequência da «mediação» do FMI
decidida após consultas a alto nível com os maiores bancos
comerciais e financeiros do mundo «uma média de mais de 200
companhias por dia fecharam as suas portas [...] Por dia, cerca de 4000
trabalhadores ficavam desempregados» [4].
Entretanto, na Indonésia, num cenário de violentos confrontos
nas ruas, os salários praticados pelas fábricas ilegais nas zonas
de exportação, que empregavam mão-de-obra barata, desceram
de 40 para 20 dólares por mês; e o FMI insistiu na
desindexação dos salários como forma de mitigar as
pressões inflacionárias.
Na China, com a privatização ou falência obrigatória
de milhares de empresas estatais, 35 milhões de trabalhadores
estão sob a ameaça de desemprego [5].
Segundo uma estimativa recente, existem cerca de 130 milhões de
trabalhadores excedentários nas zonas rurais da China [6].
Por ironia, o Banco Mundial tinha previsto que, com a adopção de
reformas do «mercado livre», a pobreza na China desceria para 2,7% no
ano 2000. [7]
POBREZA E PERTURBAÇÃO ECONÓMICA NO OCIDENTE
Já durante o período Reagan-Thatcher, as duras medidas de
austeridade implementadas tinham resultado na gradual
desintegração do Estado social. As medidas de
«estabilização económica» (em princípio
adoptadas para «atenuar os males da inflação»)
contribuíram para a queda do vencimento dos trabalhadores e para o
enfraquecimento do papel do Estado. Desde os anos 90, a terapia
económica aplicada nos países desenvolvidos contém muitos
dos ingredientes essenciais dos programas de ajustamento estrutural impostos
pelo FMI e pelo Banco Mundial ao Terceiro Mundo e à Europa de Leste.
No entanto, em contraste com os países em vias de desenvolvimento, as
medidas políticas de reforma na Europa e na América do Norte
são impostas sem a mediação do FMI. A
acumulação de grandes dívidas públicas nos
países ocidentais tem proporcionado às elites financeiras uma
alavanca política, bem como o poder de ditar as políticas
económicas e sociais aos governos. Sob a capa do neoliberalismo, as
despesas públicas são reduzidas e os programas de
assistência social abandonados. As políticas estatais promovem a
desregulação do mercado de trabalho: desindexação
dos salários, emprego a tempo parcial, reforma antecipada e
imposição de cortes salariais «voluntários».
Por sua vez, a prática de desgaste que transfere o fardo social
do desemprego para os grupos etários mais jovens contribuiu para
impedir a entrada no mercado de trabalho a toda uma geração [8].
As regras da gestão de recursos humanos nos Estados Unidos são:
«'dar cabo' dos sindicatos, voltar os trabalhadores mais velhos
contra os mais novos, chamar os fura-greves, baixar os salários e acabar
com o seguro médico pago pelas empresas» [9].
Desde os anos 80, uma grande parte da mão-de-obra nos Estados Unidos tem
vindo a ser desviada de postos de trabalho bem remunerados e sindicalizados
para empregos de salário mínimo.
«Terceiro-mundismo»
de cidades ocidentais:
a pobreza nos guetos e zonas desfavorecidas da América é a
vários títulos comparável com a verificada no Terceiro
Mundo. Embora a taxa de desemprego «oficial» dos Estados Unidos tenha
descido nos anos 90, o número de pessoas com empregos a tempo parcial e
mal remunerados subiu em flecha. Em consequência do declínio nos
postos de trabalho com salário mínimo, grandes sectores da
população vêem-se completamente afastados do mercado de
trabalho: «O gume verdadeiramente selvático da recessão fere
o âmago das comunidades e dos novos imigrantes em Los Angeles, onde as
taxas de desemprego triplicaram e não existe uma rede de
segurança social. As pessoas estão em queda livre e as suas vidas
desintegram-se, com o desaparecimento de empregos de salário
mínimo.» [10]
Por outro lado, a reestruturação económica criou
divisões profundas entre classes sociais e grupos étnicos. O
ambiente das grandes zonas metropolitanas caracteriza-se pelo «apartheid
social»
: a paisagem urbana encontra-se compartimentada segundo linhas sociais e
étnicas. O Estado, por sua vez, é cada vez mais repressivo na
forma como gere os conflitos sociais e procura controlar as
manifestações de descontentamento da sociedade civil.
Com a onda de fusões corporativas,
downsizing
e encerramento de fábricas, todas as categorias da força laboral
são afectadas. A recessão atinge a classe média e os
escalões superiores da força laboral. Os orçamentos
destinados à investigação são reduzidos,
cientistas, engenheiros e outros profissionais vão para o desemprego e
funcionários públicos superiores e gestores são
forçados a pedir a reforma antecipada...
Entretanto, as realizações do período inicial do
pós-guerra têm vindo a ser anuladas através da
suspensão dos planos de seguro de desemprego e da
privatização dos fundos de pensões. Escolas e hospitais
fecham as suas portas, criando-se assim as condições
necessárias para a privatização total dos serviços
sociais.
UMA ECONOMIA CRIMINOSA FLORESCENTE
As reformas do «mercado livre» favorecem o desenvolvimento de
actividades ilícitas, bem como a concomitante
«internacionalização» de uma economia criminosa. Na
América Latina e na Europa de Leste, as organizações
criminosas têm vindo a investir na aquisição de bens do
Estado ao abrigo dos programas de privatização apoiados pelo
FMI-Banco Mundial. Segundo as Nações Unidas, a receita total a
nível mundial das «organizações criminosas
transnacionais» (OCT) é da ordem de um milhão de
biliões de dólares, representando um montante equivalente ao PIB
(Produto Interno Bruto) do grupo de países com baixo rendimento com uma
população de cerca de 3 mil milhões de pessoas [11].
Esta estimativa das Nações Unidas abrange tráfico de
narcóticos, vendas de armamento, contrabando de materiais nucleares,
etc, assim como as receitas derivadas da economia de serviços
controlados pela máfia (prostituição, jogo, câmbios
ilícitos, etc). O que estes dados não transmitem adequadamente
é a magnitude dos investimentos de rotina em negócios
«legítimos» por parte de organizações
criminosas, assim como o controlo significativo que estas exercem sobre os
recursos produtivos em muitas áreas da economia legal.
Os grupos criminosos colaboram rotineiramente com empreendimentos legais
através de investimentos numa série de actividades
«legítimas», as quais não somente lhes proporcionam uma
fachada para o branqueamento de dinheiro como também providenciam um
processo adequado para a acumulação de riqueza fora do
âmbito da economia criminosa. Segundo um observador, «os grupos de
crime organizado têm um melhor desempenho do que a maioria das empresas
do índice
Fortune 500
[...] com organizações que se assemelham mais à General
Motors do que à tradicional máfia siciliana» [12].
Segundo um depoimento prestado a um subcomité do Congresso dos Estados
Unidos por Jim Moody, o director do FBI, as organizações
criminosas na Rússia estão «a cooperar com outros grupos
criminosos estrangeiros, incluindo os sediados em Itália e na
Colômbia [...] a transição para o capitalismo [na
ex-União Soviética] proporcionou novas oportunidades rapidamente
exploradas pelas organizações criminosas» [13].
BANQUEIROS DE WALL STREET NOS BASTIDORES
Tem vindo a desenvolver-se um «
consenso político
»; por todo o mundo, os governos adoptaram inequivocamente objectivos de
cariz neoliberal. As mesmas medidas económicas são aplicadas a
nível mundial. Sob a jurisdição do FMI, do Banco Mundial e
da Organização Mundial de Comércio, as reformas criam um
«ambiente propício» para as actividades de bancos globais e
empresas multinacionais. Não se trata, todavia, de um sistema de mercado
«livre»: embora assente numa retórica neoliberal, o chamado
«
programa de ajustamento estrutural
» apoiado pelo acordo de Bretton Woods constitui um novo enquadramento
intervencionista.
No entanto, o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial de
Comércio constituem meros órgãos burocráticos.
São organismos reguladores que operam sob uma capa intergovernamental e
se encontram mandatados por poderosos interesses económicos e
financeiros. Os banqueiros de Wall Street e os líderes do maior
conglomerado de empresas estão por detrás destas
instituições globais. Reúnem regularmente à porta
fechada com o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial de
Comércio, bem como em inúmeros pontos de encontro internacionais.
Nestas reuniões e sessões de consulta participam igualmente os
representantes de poderosos grupos de pressão de empresas globais, tais
como a Câmara Internacional de Comércio (CIC) (International
Chamber of Commerce ICC), o Diálogo de Negócios
Transatlântico (DNT) (Trans Atlantic Business Dialogue TABD) (que
reúne nos seus encontros anuais os líderes do maior conglomerado
de empresas do Ocidente com políticos e funcionários da
Organização Mundial de Comércio), o Conselho de
Comércio Internacional dos Estados Unidos (United States Council for
International Business USCIB), o Fórum Económico Mundial
de Davos, o Instituto Internacional de Finanças (IIF) sediado em
Washington e que representa os maiores bancos e instituições
financeiras do mundo, etc. Outras organizações
«semi-secretas» que desempenham um papel importante na
definição das instituições da Nova Ordem Mundial
incluem a Comissão Trilateral, o grupo Bildeberg e o Conselho
para as Relações Estrangeiras.
A ECONOMIA DA MÃO-DE-OBRA BARATA
A globalização da pobreza está a processar-se durante um
período de rápidos avanços tecnológicos e
científicos. Enquanto estes últimos contribuem para o incremento
substancial da
capacidade potencial
do sistema económico de produzir os bens e serviços
necessários, os níveis acrescentados de produtividade não
se traduzem numa correspondente redução dos níveis de
pobreza global. No dealbar de um novo milénio, este declínio
global do nível de vida das populações não resulta
de uma escassez de recursos produtivos.
Pelo contrário, o
downsizing
, a reestruturação corporativa e a transferência da
produção para locais de mão-de-obra barata no Terceiro
Mundo têm vindo a conduzir ao aumento do desemprego e à
redução dos salários dos trabalhadores urbanos e rurais.
Esta nova ordem económica sustenta-se com a pobreza humana e com a
mão-de-obra barata
: os altos níveis de desemprego nacional, tanto em países
desenvolvidos como em países em vias de desenvolvimento,
contribuíram para fazer baixar os salários reais. O desemprego
foi internacionalizado, com o capital migrando de um país para outro
numa busca contínua de fontes de mão-de-obra mais barata. Segundo
a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o desemprego
afecta mil milhões de pessoas a nível mundial, ou seja, cerca de
um terço da força de trabalho global [14].
Os mercados de trabalho nacionais deixaram de ser segregados: os trabalhadores
de diferentes países encontram-se em clara concorrência uns com os
outros. Com a desregulação dos mercados de trabalho, os direitos
dos trabalhadores são anulados.
O desemprego global funciona como uma alavanca reguladora dos custos laborais a
nível mundial: a abundância de mão-de-obra barata no
Terceiro Mundo e no ex-Bloco de Leste contribui para o abaixamento dos
salários nos países desenvolvidos. Praticamente todas as
categorias da força de trabalho (sem excluir os trabalhadores altamente
qualificados, os profissionais liberais e os cientistas) são afectadas;
simultaneamente, a concorrência pelos postos de trabalho fomenta
divisões sociais baseadas em classe social, grupo étnico, sexo e
idade.
MICROEFICIÊNCIA, MACROINSUFICIÊNCIA
As empresas globais minimizam os custos do trabalho a nível mundial. Os
salários reais no Terceiro Mundo e na Europa de Leste chegam a ser
setenta vezes inferiores aos dos EUA, da Europa Ocidental ou do Japão:
as possibilidades de produção são praticamente
inesgotáveis, dada a grande quantidade de trabalhadores pobres em todo o
mundo.
Enquanto as teorias económicas vigentes acentuam a
«distribuição eficaz» dos «escassos recursos»
da sociedade, as duras realidades sociais põem em questão as
consequências destes meios de distribuição. Assiste-se ao
encerramento de fábricas, pequenas e médias empresas são
empurradas para a falência, trabalhadores qualificados e
funcionários públicos são despedidos e o capital humano e
material é desperdiçado em nome da «eficiência».
O impulso imparável para a utilização «eficaz»
dos recursos da sociedade ao nível microeconómico conduz a uma
situação diametralmente oposta ao nível
macroeconómico. Quando existem grandes quantidades de capacidade
industrial desaproveitada e milhões de trabalhadores desempregados, os
recursos não estão a ser utilizados eficientemente. O capitalismo
moderno parece totalmente incapaz de mobilizar estes recursos humanos e
materiais desaproveitados.
ACUMULAÇÃO DE RIQUEZA, DISTORÇÃO DA
PRODUÇÃO
Esta reestruturação económica global promove a
estagnação no fornecimento dos bens e serviços
necessários e simultaneamente desvia os recursos existentes para
investimentos lucrativos na economia dos bens de luxo. Ao mesmo tempo, com o
esgotamento da criação de capital em actividades produtivas, o
lucro é cada vez mais frequentemente procurado em
transacções especulativas e fraudulentas, o que, por sua vez,
contribui para a ocorrência de perturbações nos principais
mercados financeiros mundiais.
Uma minoria social privilegiada tem vindo a acumular vastas fortunas à
custa da grande maioria da população. O número de
bilionários nos EUA subiu de 13 em 1982 para 149 em 1996 e ultrapassou
os 300 em 2000. O «Clube Global de Bilionários» (com cerca de
450 sócios) é detentor de uma riqueza total que excede em muito a
soma dos produtos internos brutos do grupo de países de baixo
rendimento, com 59% da população mundial (ver quadro 1.1). [15]
A riqueza pessoal da família Walton, do noroeste do Arkansas,
proprietários da cadeia de lojas Wal-Mart (85 mil milhões de
dólares) a herdeira, Alice Walton, os seus irmãos Robson,
John e Jim e a mãe, Helen atinge mais do dobro do PIB do
Bangladeche (33,4 mil milhões de dólares), com uma
população de 127 milhões de pessoas e um rendimento anual
per capita
de 260 dólares [16].
A acrescentar a este quadro, o processo de acumulação de riqueza
desenrola-se cada vez mais frequentemente à margem da economia real,
divorciado de actividades produtivas e comerciais fidedignas. «O sucesso
no mercado de acções de Wall Street [ou seja, das
transacções especulativas] foi responsável pela maior
parte dos bilionários no ano passado [1996].» [17].
Por sua vez, os milhares de milhões de dólares adquiridos
através destas transacções especulativas são
desviados para contas confidenciais em mais de 50 paraísos fiscais
offshore
em todo o mundo. Segundo uma estimativa do banco de investimentos americano
Merrill Lynch, os depósitos individuais geridos através de bancos
privados em paraísos fiscais
offshore
totalizam cerca de 3,3 mil biliões de dólares [18].
O FMI calcula que os bens
offshore
de empresas e de indivíduos atinjam os 5,5 mil biliões de
dólares, um valor equivalente a 25% do rendimento total mundial [19]
Nos anos 90, as fortunas das elites do Terceiro Mundo, depositadas em contas
secretas e, em grande medida, obtidas por meios ilícitos, foram
calculadas em cerca de 600 mil milhões de dólares, estando um
terço desta quantia depositado na Suíça [20].
PRODUÇÃO EXCEDENTÁRIA:
AUMENTO DA OFERTA, DIMINUIÇÃO DA PROCURA
O aumento da produção no sistema do capitalismo global resulta da
«minimização do emprego» e da contracção
dos salários dos trabalhadores. Este processo, por sua vez, afecta os
níveis de procura por parte do consumidor de bens e serviços
necessários: capacidade ilimitada de produção, capacidade
limitada de consumo. Numa economia global de mão-de-obra barata, o
processo de aumento da produção (através de
downsizing
, despedimentos colectivos e abaixamento de salários) contribui para
reduzir a capacidade de consumo da sociedade.
Por conseguinte, a tendência é para a produção
excedentária a uma escala jamais vista. Por outras palavras, a
expansão corporativa neste sistema só pode verificar-se
através da concomitante eliminação da capacidade produtiva
inactiva, nomeadamente através da falência e da
liquidação de «empresas excedentárias». Estas
últimas são preteridas em favor da produção
mecanizada mais avançada: a totalidade de certas áreas da
indústria encontra-se inactiva, a economia de vastas regiões
é afectada, e só está a ser utilizada uma parte do
potencial agrícola mundial.
Esta oferta global excessiva de bens de consumo é uma consequência
directa do declínio no poder de compra e do aumento dos níveis de
pobreza. Este último resulta também da
minimização dos custos de trabalho
e do emprego a nível mundial sob o impacto das reformas do FMI, do
Banco Mundial e da Organização Mundial de Comércio.
Por sua vez, o excesso de oferta contribui para acentuar o abaixamento das
receitas dos produtores directos, através da desactivação
da capacidade excedentária de produção. Contrariamente
à «Lei de Say», arvorada pela corrente neoliberal,
a oferta não cria a sua própria procura
. Desde o início dos anos 80, o excesso de produção de
bens de consumo, com a consequente queda dos preços (reais) destes bens,
tem sido causa de grandes perturbações, especialmente entre os
produtores primários do Terceiro Mundo, mas também na área
da manufactura.
INTEGRAÇÃO GLOBAL, DESINTEGRAÇÃO LOCAL
Nos países em vias de desenvolvimento, a totalidade de algumas
áreas da indústria fornecedora do mercado interno é
empurrada para a falência, em cumprimento de ordens do Banco Mundial e do
FMI. O sector urbano informal que, tradicionalmente, desempenha um papel
importante na criação de emprego foi minado, em
consequência da desvalorização de divisas, da
liberalização das importações e da política
de
dumping
. Na África subsariana, por exemplo, o sector informal da
indústria do pronto-a-vestir foi completamente destruído e
substituído pelo mercado de roupas em segunda mão (importadas do
Ocidente a 80 dólares a tonelada) [21].
Contra este pano de fundo de estagnação económica (com
taxas negativas de crescimento registadas na Europa de Leste, na
ex-União Soviética e na África subsariana), as maiores
empresas mundiais beneficiam de um crescimento sem precedentes e da
expansão do seu quinhão do mercado global. No entanto, este
processo desenrolou-se em grande medida através do afastamento dos
sistemas produtivos preexistentes ou seja, à custa dos produtores
locais, regionais e nacionais. A expansão e o «lucro» das
maiores empresas mundiais assentam numa contracção global do
poder de compra e no empobrecimento de vastos sectores da
população mundial. Por sua vez, as reformas do «mercado
livre» contribuíram de forma brutal para a abertura de novas
fronteiras económicas, simultaneamente garantindo o «lucro»
através da imposição de salários baixíssimos
e da desregulação do mercado de trabalho. Neste processo, a
pobreza é um
factor positivo da oferta
. A gama de reformas do FMI--Banco Mundial-Organização Mundial de
Comércio imposta ao nível mundial desempenha um papel decisivo na
regulamentação dos custos do trabalho em nome do capital
corporativo.
Trata-se da lei da sobrevivência do mais forte: as empresas com as
tecnologias mais avançadas, ou as que podem impor salários mais
baixos, sobrevivem numa economia mundial marcada pela produção
excedentária. Embora o espírito do liberalismo
anglo-saxónico se empenhe na «promoção da
concorrência», na prática as medidas políticas
macroeconómicas do G-7 (através de controlos fiscais e
monetários apertados) têm promovido uma onda de fusões
corporativas e de aquisições, assim como a falência de
pequenas e médias empresas.
A DESTRUIÇÃO DA ECONOMIA LOCAL
Ao nível local, as pequenas e médias empresas são
empurradas para a falência ou obrigadas a produzir para um distribuidor
global. Por sua vez, as grandes multinacionais apoderaram-se dos mercados ao
nível local através do sistema de
franchising
corporativo. Este processo permite ao grande capital corporativo (o
franchiser
) obter o controlo dos recursos humanos, da mão-de-obra barata e da
capacidade empresarial. Uma grande parte dos ganhos das pequenas empresas
locais e/ou dos retalhistas é assim retida pela sociedade global,
enquanto a maior parte dos custos do investimento cabe ao produtor independente
(o
franchisee
).
Observa-se um processo paralelo na Europa Ocidental. Com o tratado de
Maastricht, o processo de reestruturação política na
União Europeia tem cada vez mais em consideração
interesses financeiros dominantes, à custa da unidade das sociedades
europeias. Neste sistema, o poder estatal tem deliberadamente vindo a sancionar
o desenvolvimento de monopólios privados: o grande capital
destrói o pequeno capital em todas as formas de que este se reveste. Com
a tendência para a formação de blocos económicos
tanto na Europa como na América do Norte, assiste-se à
eliminação do empresário ao nível regional ou
local, a vida nas cidades sofre transformações e a propriedade
privada a pequena escala desaparece completamente. O «comércio
livre» e a integração económica proporcionam uma
maior mobilidade às empresas globais enquanto, simultaneamente, impedem
(através de barreiras institucionais e não tarifárias) o
movimento do pequeno capital a nível local [22].
Embora aparente unidade política, a «integração
económica» (sob o domínio da empresa global) promove com
frequência facções e lutas sociais entre sociedades
nacionais e no seio destas.
GUERRA E GLOBALIZAÇÃO
A imposição de reformas macroeconómicas e de
transacções comerciais sob a supervisão do FMI, do Banco
Mundial e da Organização Mundial de Comércio (OMC)
destina-se a recolonizar certos países de forma
«pacífica» através da manipulação
deliberada das forças de mercado. Embora não requeira
expli-citamente o uso de força, a aplicação brutal de
reformas económicas constitui, no entanto, uma forma de guerra. Os
perigos da guerra, a um nível mais geral, devem ser compreendidos. A
guerra e a globalização não são questões
estanques.
O que acontece aos países que se recusam a «abrir-se» aos
bancos ocidentais e às empresas multinacionais em cumprimento das ordens
da Organização Mundial de Comércio? Os serviços de
informação das potências militares ocidentais e dos seus
vários órgãos burocráticos têm contactos
rotineiros com o poder financeiro instituído. O FMI, o Banco Mundial e a
OMC que policiam as reformas económicas ao nível de
país colaboram igualmente com a NATO nas suas várias
missões de «manutenção de paz», já para
não referir o financiamento de reconstrução
«pós-conflito» sob os auspícios das
instituições de Bretton Woods...
No dealbar do terceiro milénio, a guerra e o «mercado livre»
andam de mãos dadas. A guerra não necessita da OMC ou de um
tratado de investimento multilateral (ou seja, um MAI Multilateral
Investment Treaty) entrincheirado no direito internacional.
A guerra é o «MAI» de último recurso
. A guerra destrói fisicamente o que não foi desmantelado
através da desregulação, da privatização e
da imposição de reformas do «mercado livre». A total
colonização através da guerra e a instalação
de protectorados ocidentais equivalem à concessão de
«tratamento nacional» aos bancos ocidentais e às empresas
multina-cionais (como estipulado pela OMC) em todos os sectores de actividade.
A «diplomacia dos mísseis» é uma réplica da
«diplomacia dos canhões» utilizada para implementar o
«comércio livre» no século xix. A Missão Cushing
dos EUA à China em 1844 (na sequência das Guerras do Ópio)
foi um aviso ao governo imperial chinês de que «a recusa em ceder
às exigências americanas poderia considerar-se uma
declaração de guerra» [23].
O DESARMAMENTO DA NOVA ORDEM MUNDIAL
A ideologia do mercado «livre» defende uma forma nova e brutal de
intervencionismo do Estado, assente na interferência deliberada nas
forças de mercado. Suprimindo os direitos dos cidadãos, o
«comércio livre», sob a égide da
Organização Mundial de Comércio (OMC) concede
«direitos inalienáveis» aos maiores bancos do mundo e
às empresas globais. O processo de implementação de
acordos internacionais, conduzido pela Organização Mundial de
Comércio ao nível nacional e internacional, passa invariavelmente
ao lado do processo democrático. Por outras palavras, ao conceder
poderes alargados ao poder financeiro instituído, os artigos da OMC
ameaçam conduzir ao enfraquecimento de sociedades nacionais (ver
capítulo 1).
A Nova Ordem Mundial baseia-se no «falso consenso» de Washington e de
Wall Street, que impõe o «sistema de mercado livre» como a
única opção possível na senda ditada pelo
avanço da «prosperidade global». Todos os partidos
políticos, sem exceptuar os Verdes, os Sociais-Democratas e os partidos
ex-Comunistas, aceitam agora este consenso.
As ligações insidiosas existentes entre políticos e
funcionários internacionais e poderosos interesses financeiros devem ser
expostas. Para se alcançarem mudanças significativas, as
instituições estatais e as organizações
intergovernamentais têm de ser libertas das garras do poder financeiro
instituído. É igualmente necessário democratizar o sistema
económico e as suas estruturas de gestão e propriedade, pôr
resolutamente em questão a concentração óbvia da
propriedade e das fortunas privadas, desarmar os mercados financeiros,
suspender os negócios especulativos, pôr fim ao branqueamento de
dinheiro, desmantelar o sistema bancário
offshore
, redistribuir os rendimentos e a riqueza, restaurar os direitos dos produtores
directos e reconstruir o sistema de segurança social do Estado.
No entanto, é necessário ter em conta que as estruturas militares
e de segurança ocidentais caucionam e apoiam os interesses
económicos e financeiros dominantes ou seja, tanto a
constituição como o exercício da força militar se
destinam a impor o «comércio livre». O Pentágono
é uma sucursal de Wall Street; a NATO coordena as suas
operações militares com o Banco Mundial e as medidas de
intervenção do FMI, e vice-versa. De forma consistente, os
organismos de segurança e defesa da aliança militar ocidental, em
colaboração com os vários governos e órgãos
burocráticos intergovernamentais (tais como o FMI, o Banco Mundial e a
OMC) partilham um entendimento comum, um consenso ideológico e igual
empenho na Nova Ordem Mundial. Por outras palavras, a campanha internacional
contra a «globalização» deve ser integrada numa
coligação mais alargada de forças sociais empenhadas no
desmantelamento do complexo militar-industrial, da NATO e das
instituições da defesa, nas quais se incluem os serviços
policiais, de informação e de segurança.
Os meios de comunicação globais fabricam as notícias e
distorcem abertamente o curso dos acontecimentos mundiais. Esta «falsa
consciência» que se infiltra na nossa sociedade impede o debate
crítico e mascara a verdade. Em última análise, nega o
acesso a um entendimento colectivo dos mecanismos de um sistema
económico que está a destruir a vida das pessoas. A única
promessa do «mercado livre» é um mundo de agricultores sem
terra, fábricas fechadas, trabalhadores sem emprego e programas sociais
destruídos, com o «amargo remédio económico» da
OMC e do FMI a constituírem a única receita. Temos a
obrigação de restaurar a verdade, denunciar os meios de
comunicação de massas controlados pelas empresas, devolver a
soberania aos nossos países e aos povos dos nossos países e
desarmar e abolir o capitalismo global.
Esta luta deve ter uma ampla base democrática de
sustentação que abranja todos os sectores da sociedade a todos os
níveis, em todos os países, unindo num só ímpeto
trabalhadores, agricultores, produtores independentes, pequenos negociantes,
profissionais liberais, artistas, funcionários públicos, membros
do clero, estudantes e intelectuais. Os elementos de sectores diversos devem
unir-se, os grupos com uma causa específica devem dar-se as mãos
num entendimento comum e colectivo do poder destrutivo e empobrecedor deste
sistema económico. A globalização desta luta é
fundamental e requer um grau de solidariedade e internacionalismo sem
precedentes na História mundial. Este sistema económico global
é alimentado pela divisão social entre países e no seio
destes. A unidade de objectivos e a coordenação ao nível
mundial entre os diversos grupos são cruciais. É
necessário um ímpeto de grande magnitude que congregue os
movimentos sociais nas principais partes do Mundo num objectivo comum e no
empenhamento para a eliminação da pobreza e a
obtenção de uma paz mundial duradoura.
___________
[*]
Director do
Centre for Research on Globalization
.
O texto desta introdução do livro foi cedido gentilmente pela
Editorial Caminho, SA
. Omitiram-se as notas de rodapé.
A Globalização da Pobreza e a Nova Ordem Mundial,
Michel Chossudovsky, Editorial Caminho, 496 pgs., Nov/2003, 24,80 euros, ISBN:
972-21-1582-0.
Esta introdução do livro encontra-se em
http://resistir.info
.
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