"A Globalização da Pobreza
e a Nova Ordem Mundial"

  • Agora em edição em portuguesa
  • por Michel Chossudovsky [*]

    Capa da edição portuguesa, lançada pela Editorial Caminho em Nov/2003. INTRODUÇÃO

    No período do pós-guerra-fria, a humanidade atravessa uma crise económica e social de escala sem precedentes que está a conduzir ao rápido empobrecimento de vastos sectores da população mundial. Assiste-se ao colapso de economias nacionais e a um aumento alarmante do desemprego. Na África subsariana, no Sul da Ásia e em partes da América Latina, têm-se verificado surtos de fomes a nível local. Esta «globalização da pobreza» — que, em grande medida, fez retroceder as realizações alcançadas com a descolonização do pós-guerra — teve o seu início num Terceiro Mundo marcado pela crise da dívida no princípio dos anos 80 e a consequente imposição de reformas económicas nefastas pelo Fundo Monetário Internacional.

    A Nova Ordem Mundial é sustentada pela pobreza humana e a destruição do ambiente. Dá origem ao apartheid social, promove o racismo e os conflitos étnicos, mina os direitos das mulheres e, frequentemente, precipita os países para confrontos destrutivos entre nacionalidades. Desde os anos 90, tem vindo a estender o seu domínio a todas as principais regiões do Mundo, incluindo a América do Norte, a Europa Ocidental, os países do antigo bloco soviético e os «Novos Países Industrializados» (NPI) do Sudeste Asiático e do Extremo Oriente.

    Esta crise a nível mundial é mais devastadora do que a Grande Depressão dos anos 30. Tem consequências geopolíticas de grande alcance; a perturbação económica faz-se acompanhar pelo desencadear de guerras regionais, a fractura de sociedades nacionais e, nalguns casos, a total destruição de países inteiros. Esta é, indubitavelmente, a crise económica mais grave da História Moderna.

    A RECESSÃO DO PERÍODO DO PÓS-GUERRA-FRIA

    Na ex-União Soviética, como consequência directa do «tratamento económico» nefasto do FMI iniciado em 1992, o declínio económico ultrapassou a queda na produção verificada no auge da Segunda Guerra Mundial, após a ocupação alemã da Bielorrússia e de partes da Ucrânia em 1941 e o intenso bombardeamento da infra-estrutura industrial soviética. De uma situação de emprego total e relativa estabilidade de preços nos anos 70 e 80 passou-se para um quadro de subida em flecha da inflação, queda vertical dos salários reais e da taxa de emprego e abandono dos programas de saúde. A cólera e a tuberculose alastram a uma velocidade alarmante numa vasta área da ex-União Soviética [1].

    O modelo da ex-União Soviética repete-se na Europa de Leste e nos Balcãs. Umas após outras, as economias nacionais desmoronam-se. Nos estados bálticos (Lituânia, Letónia e Estónia), bem como nas repúblicas caucasianas da Arménia e do Azerbaijão, verifica-se um declínio da produção industrial que atinge os 65%. Na Bulgária, as pensões de reforma tinham descido para dois dólares por mês em 1997 [2]. O Banco Mundial admitiu que 90% dos búlgaros vivem abaixo do limiar da pobreza, fixado por aquela instituição em 4 dólares por mês [3]. Sem meios para pagarem luz, água e transportes, grupos populacionais por toda a Europa de Leste e os Balcãs vêem-se brutalmente arredados da era moderna.

    O FIM DOS «TIGRES ASIÁTICOS»

    No leste da Ásia, a crise financeira de 1997 — marcada por ataques especulativos contra divisas nacionais — contribuiu em grande medida para o fim dos chamados «tigres asiáticos» (Indonésia, Tailândia e Coreia). Os acordos de assistência do FMI, impostos logo após o colapso financeiro, tiveram como consequência imediata o declínio abrupto do nível de vida das populações. Na Coreia, na sequência da «mediação» do FMI — decidida após consultas a alto nível com os maiores bancos comerciais e financeiros do mundo — «uma média de mais de 200 companhias por dia fecharam as suas portas [...] Por dia, cerca de 4000 trabalhadores ficavam desempregados» [4]. Entretanto, na Indonésia, num cenário de violentos confrontos nas ruas, os salários praticados pelas fábricas ilegais nas zonas de exportação, que empregavam mão-de-obra barata, desceram de 40 para 20 dólares por mês; e o FMI insistiu na desindexação dos salários como forma de mitigar as pressões inflacionárias.

    Na China, com a privatização ou falência obrigatória de milhares de empresas estatais, 35 milhões de trabalhadores estão sob a ameaça de desemprego [5]. Segundo uma estimativa recente, existem cerca de 130 milhões de trabalhadores excedentários nas zonas rurais da China [6]. Por ironia, o Banco Mundial tinha previsto que, com a adopção de reformas do «mercado livre», a pobreza na China desceria para 2,7% no ano 2000. [7]

    POBREZA E PERTURBAÇÃO ECONÓMICA NO OCIDENTE

    Já durante o período Reagan-Thatcher, as duras medidas de austeridade implementadas tinham resultado na gradual desintegração do Estado social. As medidas de «estabilização económica» (em princípio adoptadas para «atenuar os males da inflação») contribuíram para a queda do vencimento dos trabalhadores e para o enfraquecimento do papel do Estado. Desde os anos 90, a terapia económica aplicada nos países desenvolvidos contém muitos dos ingredientes essenciais dos programas de ajustamento estrutural impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial ao Terceiro Mundo e à Europa de Leste.

    No entanto, em contraste com os países em vias de desenvolvimento, as medidas políticas de reforma na Europa e na América do Norte são impostas sem a mediação do FMI. A acumulação de grandes dívidas públicas nos países ocidentais tem proporcionado às elites financeiras uma alavanca política, bem como o poder de ditar as políticas económicas e sociais aos governos. Sob a capa do neoliberalismo, as despesas públicas são reduzidas e os programas de assistência social abandonados. As políticas estatais promovem a desregulação do mercado de trabalho: desindexação dos salários, emprego a tempo parcial, reforma antecipada e imposição de cortes salariais «voluntários».

    Por sua vez, a prática de desgaste — que transfere o fardo social do desemprego para os grupos etários mais jovens — contribuiu para impedir a entrada no mercado de trabalho a toda uma geração [8]. As regras da gestão de recursos humanos nos Estados Unidos são: «'dar cabo' dos sindicatos, voltar os trabalhadores mais velhos contra os mais novos, chamar os fura-greves, baixar os salários e acabar com o seguro médico pago pelas empresas» [9].

    Desde os anos 80, uma grande parte da mão-de-obra nos Estados Unidos tem vindo a ser desviada de postos de trabalho bem remunerados e sindicalizados para empregos de salário mínimo. «Terceiro-mundismo» de cidades ocidentais: a pobreza nos guetos e zonas desfavorecidas da América é a vários títulos comparável com a verificada no Terceiro Mundo. Embora a taxa de desemprego «oficial» dos Estados Unidos tenha descido nos anos 90, o número de pessoas com empregos a tempo parcial e mal remunerados subiu em flecha. Em consequência do declínio nos postos de trabalho com salário mínimo, grandes sectores da população vêem-se completamente afastados do mercado de trabalho: «O gume verdadeiramente selvático da recessão fere o âmago das comunidades e dos novos imigrantes em Los Angeles, onde as taxas de desemprego triplicaram e não existe uma rede de segurança social. As pessoas estão em queda livre e as suas vidas desintegram-se, com o desaparecimento de empregos de salário mínimo.» [10]

    Por outro lado, a reestruturação económica criou divisões profundas entre classes sociais e grupos étnicos. O ambiente das grandes zonas metropolitanas caracteriza-se pelo «apartheid social» : a paisagem urbana encontra-se compartimentada segundo linhas sociais e étnicas. O Estado, por sua vez, é cada vez mais repressivo na forma como gere os conflitos sociais e procura controlar as manifestações de descontentamento da sociedade civil.

    Com a onda de fusões corporativas, downsizing e encerramento de fábricas, todas as categorias da força laboral são afectadas. A recessão atinge a classe média e os escalões superiores da força laboral. Os orçamentos destinados à investigação são reduzidos, cientistas, engenheiros e outros profissionais vão para o desemprego e funcionários públicos superiores e gestores são forçados a pedir a reforma antecipada...

    Entretanto, as realizações do período inicial do pós-guerra têm vindo a ser anuladas através da suspensão dos planos de seguro de desemprego e da privatização dos fundos de pensões. Escolas e hospitais fecham as suas portas, criando-se assim as condições necessárias para a privatização total dos serviços sociais.

    UMA ECONOMIA CRIMINOSA FLORESCENTE

    As reformas do «mercado livre» favorecem o desenvolvimento de actividades ilícitas, bem como a concomitante «internacionalização» de uma economia criminosa. Na América Latina e na Europa de Leste, as organizações criminosas têm vindo a investir na aquisição de bens do Estado ao abrigo dos programas de privatização apoiados pelo FMI-Banco Mundial. Segundo as Nações Unidas, a receita total a nível mundial das «organizações criminosas transnacionais» (OCT) é da ordem de um milhão de biliões de dólares, representando um montante equivalente ao PIB (Produto Interno Bruto) do grupo de países com baixo rendimento com uma população de cerca de 3 mil milhões de pessoas [11]. Esta estimativa das Nações Unidas abrange tráfico de narcóticos, vendas de armamento, contrabando de materiais nucleares, etc, assim como as receitas derivadas da economia de serviços controlados pela máfia (prostituição, jogo, câmbios ilícitos, etc). O que estes dados não transmitem adequadamente é a magnitude dos investimentos de rotina em negócios «legítimos» por parte de organizações criminosas, assim como o controlo significativo que estas exercem sobre os recursos produtivos em muitas áreas da economia legal.

    Os grupos criminosos colaboram rotineiramente com empreendimentos legais através de investimentos numa série de actividades «legítimas», as quais não somente lhes proporcionam uma fachada para o branqueamento de dinheiro como também providenciam um processo adequado para a acumulação de riqueza fora do âmbito da economia criminosa. Segundo um observador, «os grupos de crime organizado têm um melhor desempenho do que a maioria das empresas do índice Fortune 500 [...] com organizações que se assemelham mais à General Motors do que à tradicional máfia siciliana» [12]. Segundo um depoimento prestado a um subcomité do Congresso dos Estados Unidos por Jim Moody, o director do FBI, as organizações criminosas na Rússia estão «a cooperar com outros grupos criminosos estrangeiros, incluindo os sediados em Itália e na Colômbia [...] a transição para o capitalismo [na ex-União Soviética] proporcionou novas oportunidades rapidamente exploradas pelas organizações criminosas» [13].

    BANQUEIROS DE WALL STREET NOS BASTIDORES

    Tem vindo a desenvolver-se um « consenso político »; por todo o mundo, os governos adoptaram inequivocamente objectivos de cariz neoliberal. As mesmas medidas económicas são aplicadas a nível mundial. Sob a jurisdição do FMI, do Banco Mundial e da Organização Mundial de Comércio, as reformas criam um «ambiente propício» para as actividades de bancos globais e empresas multinacionais. Não se trata, todavia, de um sistema de mercado «livre»: embora assente numa retórica neoliberal, o chamado « programa de ajustamento estrutural » apoiado pelo acordo de Bretton Woods constitui um novo enquadramento intervencionista.

    No entanto, o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial de Comércio constituem meros órgãos burocráticos. São organismos reguladores que operam sob uma capa intergovernamental e se encontram mandatados por poderosos interesses económicos e financeiros. Os banqueiros de Wall Street e os líderes do maior conglomerado de empresas estão por detrás destas instituições globais. Reúnem regularmente à porta fechada com o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial de Comércio, bem como em inúmeros pontos de encontro internacionais. Nestas reuniões e sessões de consulta participam igualmente os representantes de poderosos grupos de pressão de empresas globais, tais como a Câmara Internacional de Comércio (CIC) (International Chamber of Commerce — ICC), o Diálogo de Negócios Transatlântico (DNT) (Trans Atlantic Business Dialogue — TABD) (que reúne nos seus encontros anuais os líderes do maior conglomerado de empresas do Ocidente com políticos e funcionários da Organização Mundial de Comércio), o Conselho de Comércio Internacional dos Estados Unidos (United States Council for International Business — USCIB), o Fórum Económico Mundial de Davos, o Instituto Internacional de Finanças (IIF) sediado em Washington e que representa os maiores bancos e instituições financeiras do mundo, etc. Outras organizações «semi-secretas» — que desempenham um papel importante na definição das instituições da Nova Ordem Mundial — incluem a Comissão Trilateral, o grupo Bildeberg e o Conselho para as Relações Estrangeiras.

    A ECONOMIA DA MÃO-DE-OBRA BARATA

    A globalização da pobreza está a processar-se durante um período de rápidos avanços tecnológicos e científicos. Enquanto estes últimos contribuem para o incremento substancial da capacidade potencial do sistema económico de produzir os bens e serviços necessários, os níveis acrescentados de produtividade não se traduzem numa correspondente redução dos níveis de pobreza global. No dealbar de um novo milénio, este declínio global do nível de vida das populações não resulta de uma escassez de recursos produtivos.

    Pelo contrário, o downsizing , a reestruturação corporativa e a transferência da produção para locais de mão-de-obra barata no Terceiro Mundo têm vindo a conduzir ao aumento do desemprego e à redução dos salários dos trabalhadores urbanos e rurais. Esta nova ordem económica sustenta-se com a pobreza humana e com a mão-de-obra barata : os altos níveis de desemprego nacional, tanto em países desenvolvidos como em países em vias de desenvolvimento, contribuíram para fazer baixar os salários reais. O desemprego foi internacionalizado, com o capital migrando de um país para outro numa busca contínua de fontes de mão-de-obra mais barata. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o desemprego afecta mil milhões de pessoas a nível mundial, ou seja, cerca de um terço da força de trabalho global [14]. Os mercados de trabalho nacionais deixaram de ser segregados: os trabalhadores de diferentes países encontram-se em clara concorrência uns com os outros. Com a desregulação dos mercados de trabalho, os direitos dos trabalhadores são anulados.

    O desemprego global funciona como uma alavanca reguladora dos custos laborais a nível mundial: a abundância de mão-de-obra barata no Terceiro Mundo e no ex-Bloco de Leste contribui para o abaixamento dos salários nos países desenvolvidos. Praticamente todas as categorias da força de trabalho (sem excluir os trabalhadores altamente qualificados, os profissionais liberais e os cientistas) são afectadas; simultaneamente, a concorrência pelos postos de trabalho fomenta divisões sociais baseadas em classe social, grupo étnico, sexo e idade.

    MICROEFICIÊNCIA, MACROINSUFICIÊNCIA

    As empresas globais minimizam os custos do trabalho a nível mundial. Os salários reais no Terceiro Mundo e na Europa de Leste chegam a ser setenta vezes inferiores aos dos EUA, da Europa Ocidental ou do Japão: as possibilidades de produção são praticamente inesgotáveis, dada a grande quantidade de trabalhadores pobres em todo o mundo.

    Enquanto as teorias económicas vigentes acentuam a «distribuição eficaz» dos «escassos recursos» da sociedade, as duras realidades sociais põem em questão as consequências destes meios de distribuição. Assiste-se ao encerramento de fábricas, pequenas e médias empresas são empurradas para a falência, trabalhadores qualificados e funcionários públicos são despedidos e o capital humano e material é desperdiçado em nome da «eficiência». O impulso imparável para a utilização «eficaz» dos recursos da sociedade ao nível microeconómico conduz a uma situação diametralmente oposta ao nível macroeconómico. Quando existem grandes quantidades de capacidade industrial desaproveitada e milhões de trabalhadores desempregados, os recursos não estão a ser utilizados eficientemente. O capitalismo moderno parece totalmente incapaz de mobilizar estes recursos humanos e materiais desaproveitados.

    ACUMULAÇÃO DE RIQUEZA, DISTORÇÃO DA PRODUÇÃO

    Esta reestruturação económica global promove a estagnação no fornecimento dos bens e serviços necessários e simultaneamente desvia os recursos existentes para investimentos lucrativos na economia dos bens de luxo. Ao mesmo tempo, com o esgotamento da criação de capital em actividades produtivas, o lucro é cada vez mais frequentemente procurado em transacções especulativas e fraudulentas, o que, por sua vez, contribui para a ocorrência de perturbações nos principais mercados financeiros mundiais.

    Uma minoria social privilegiada tem vindo a acumular vastas fortunas à custa da grande maioria da população. O número de bilionários nos EUA subiu de 13 em 1982 para 149 em 1996 e ultrapassou os 300 em 2000. O «Clube Global de Bilionários» (com cerca de 450 sócios) é detentor de uma riqueza total que excede em muito a soma dos produtos internos brutos do grupo de países de baixo rendimento, com 59% da população mundial (ver quadro 1.1). [15] A riqueza pessoal da família Walton, do noroeste do Arkansas, proprietários da cadeia de lojas Wal-Mart (85 mil milhões de dólares) — a herdeira, Alice Walton, os seus irmãos Robson, John e Jim e a mãe, Helen — atinge mais do dobro do PIB do Bangladeche (33,4 mil milhões de dólares), com uma população de 127 milhões de pessoas e um rendimento anual per capita de 260 dólares [16].

    A acrescentar a este quadro, o processo de acumulação de riqueza desenrola-se cada vez mais frequentemente à margem da economia real, divorciado de actividades produtivas e comerciais fidedignas. «O sucesso no mercado de acções de Wall Street [ou seja, das transacções especulativas] foi responsável pela maior parte dos bilionários no ano passado [1996].» [17]. Por sua vez, os milhares de milhões de dólares adquiridos através destas transacções especulativas são desviados para contas confidenciais em mais de 50 paraísos fiscais offshore em todo o mundo. Segundo uma estimativa do banco de investimentos americano Merrill Lynch, os depósitos individuais geridos através de bancos privados em paraísos fiscais offshore totalizam cerca de 3,3 mil biliões de dólares [18]. O FMI calcula que os bens offshore de empresas e de indivíduos atinjam os 5,5 mil biliões de dólares, um valor equivalente a 25% do rendimento total mundial [19] Nos anos 90, as fortunas das elites do Terceiro Mundo, depositadas em contas secretas e, em grande medida, obtidas por meios ilícitos, foram calculadas em cerca de 600 mil milhões de dólares, estando um terço desta quantia depositado na Suíça [20].

    PRODUÇÃO EXCEDENTÁRIA: AUMENTO DA OFERTA, DIMINUIÇÃO DA PROCURA

    O aumento da produção no sistema do capitalismo global resulta da «minimização do emprego» e da contracção dos salários dos trabalhadores. Este processo, por sua vez, afecta os níveis de procura por parte do consumidor de bens e serviços necessários: capacidade ilimitada de produção, capacidade limitada de consumo. Numa economia global de mão-de-obra barata, o processo de aumento da produção (através de downsizing , despedimentos colectivos e abaixamento de salários) contribui para reduzir a capacidade de consumo da sociedade.

    Por conseguinte, a tendência é para a produção excedentária a uma escala jamais vista. Por outras palavras, a expansão corporativa neste sistema só pode verificar-se através da concomitante eliminação da capacidade produtiva inactiva, nomeadamente através da falência e da liquidação de «empresas excedentárias». Estas últimas são preteridas em favor da produção mecanizada mais avançada: a totalidade de certas áreas da indústria encontra-se inactiva, a economia de vastas regiões é afectada, e só está a ser utilizada uma parte do potencial agrícola mundial.

    Esta oferta global excessiva de bens de consumo é uma consequência directa do declínio no poder de compra e do aumento dos níveis de pobreza. Este último resulta também da minimização dos custos de trabalho e do emprego a nível mundial sob o impacto das reformas do FMI, do Banco Mundial e da Organização Mundial de Comércio.

    Por sua vez, o excesso de oferta contribui para acentuar o abaixamento das receitas dos produtores directos, através da desactivação da capacidade excedentária de produção. Contrariamente à «Lei de Say», arvorada pela corrente neoliberal, a oferta não cria a sua própria procura . Desde o início dos anos 80, o excesso de produção de bens de consumo, com a consequente queda dos preços (reais) destes bens, tem sido causa de grandes perturbações, especialmente entre os produtores primários do Terceiro Mundo, mas também na área da manufactura.

    INTEGRAÇÃO GLOBAL, DESINTEGRAÇÃO LOCAL

    Nos países em vias de desenvolvimento, a totalidade de algumas áreas da indústria fornecedora do mercado interno é empurrada para a falência, em cumprimento de ordens do Banco Mundial e do FMI. O sector urbano informal — que, tradicionalmente, desempenha um papel importante na criação de emprego — foi minado, em consequência da desvalorização de divisas, da liberalização das importações e da política de dumping . Na África subsariana, por exemplo, o sector informal da indústria do pronto-a-vestir foi completamente destruído e substituído pelo mercado de roupas em segunda mão (importadas do Ocidente a 80 dólares a tonelada) [21].

    Contra este pano de fundo de estagnação económica (com taxas negativas de crescimento registadas na Europa de Leste, na ex-União Soviética e na África subsariana), as maiores empresas mundiais beneficiam de um crescimento sem precedentes e da expansão do seu quinhão do mercado global. No entanto, este processo desenrolou-se em grande medida através do afastamento dos sistemas produtivos preexistentes — ou seja, à custa dos produtores locais, regionais e nacionais. A expansão e o «lucro» das maiores empresas mundiais assentam numa contracção global do poder de compra e no empobrecimento de vastos sectores da população mundial. Por sua vez, as reformas do «mercado livre» contribuíram de forma brutal para a abertura de novas fronteiras económicas, simultaneamente garantindo o «lucro» através da imposição de salários baixíssimos e da desregulação do mercado de trabalho. Neste processo, a pobreza é um factor positivo da oferta . A gama de reformas do FMI--Banco Mundial-Organização Mundial de Comércio imposta ao nível mundial desempenha um papel decisivo na regulamentação dos custos do trabalho em nome do capital corporativo.

    Trata-se da lei da sobrevivência do mais forte: as empresas com as tecnologias mais avançadas, ou as que podem impor salários mais baixos, sobrevivem numa economia mundial marcada pela produção excedentária. Embora o espírito do liberalismo anglo-saxónico se empenhe na «promoção da concorrência», na prática as medidas políticas macroeconómicas do G-7 (através de controlos fiscais e monetários apertados) têm promovido uma onda de fusões corporativas e de aquisições, assim como a falência de pequenas e médias empresas.

    A DESTRUIÇÃO DA ECONOMIA LOCAL

    Ao nível local, as pequenas e médias empresas são empurradas para a falência ou obrigadas a produzir para um distribuidor global. Por sua vez, as grandes multinacionais apoderaram-se dos mercados ao nível local através do sistema de franchising corporativo. Este processo permite ao grande capital corporativo (o franchiser ) obter o controlo dos recursos humanos, da mão-de-obra barata e da capacidade empresarial. Uma grande parte dos ganhos das pequenas empresas locais e/ou dos retalhistas é assim retida pela sociedade global, enquanto a maior parte dos custos do investimento cabe ao produtor independente (o franchisee ).

    Observa-se um processo paralelo na Europa Ocidental. Com o tratado de Maastricht, o processo de reestruturação política na União Europeia tem cada vez mais em consideração interesses financeiros dominantes, à custa da unidade das sociedades europeias. Neste sistema, o poder estatal tem deliberadamente vindo a sancionar o desenvolvimento de monopólios privados: o grande capital destrói o pequeno capital em todas as formas de que este se reveste. Com a tendência para a formação de blocos económicos tanto na Europa como na América do Norte, assiste-se à eliminação do empresário ao nível regional ou local, a vida nas cidades sofre transformações e a propriedade privada a pequena escala desaparece completamente. O «comércio livre» e a integração económica proporcionam uma maior mobilidade às empresas globais enquanto, simultaneamente, impedem (através de barreiras institucionais e não tarifárias) o movimento do pequeno capital a nível local [22]. Embora aparente unidade política, a «integração económica» (sob o domínio da empresa global) promove com frequência facções e lutas sociais entre sociedades nacionais e no seio destas.

    GUERRA E GLOBALIZAÇÃO

    A imposição de reformas macroeconómicas e de transacções comerciais sob a supervisão do FMI, do Banco Mundial e da Organização Mundial de Comércio (OMC) destina-se a recolonizar certos países de forma «pacífica» através da manipulação deliberada das forças de mercado. Embora não requeira expli-citamente o uso de força, a aplicação brutal de reformas económicas constitui, no entanto, uma forma de guerra. Os perigos da guerra, a um nível mais geral, devem ser compreendidos. A guerra e a globalização não são questões estanques.

    O que acontece aos países que se recusam a «abrir-se» aos bancos ocidentais e às empresas multinacionais em cumprimento das ordens da Organização Mundial de Comércio? Os serviços de informação das potências militares ocidentais e dos seus vários órgãos burocráticos têm contactos rotineiros com o poder financeiro instituído. O FMI, o Banco Mundial e a OMC — que policiam as reformas económicas ao nível de país — colaboram igualmente com a NATO nas suas várias missões de «manutenção de paz», já para não referir o financiamento de reconstrução «pós-conflito» sob os auspícios das instituições de Bretton Woods...

    No dealbar do terceiro milénio, a guerra e o «mercado livre» andam de mãos dadas. A guerra não necessita da OMC ou de um tratado de investimento multilateral (ou seja, um MAI — Multilateral Investment Treaty) entrincheirado no direito internacional. A guerra é o «MAI» de último recurso . A guerra destrói fisicamente o que não foi desmantelado através da desregulação, da privatização e da imposição de reformas do «mercado livre». A total colonização através da guerra e a instalação de protectorados ocidentais equivalem à concessão de «tratamento nacional» aos bancos ocidentais e às empresas multina-cionais (como estipulado pela OMC) em todos os sectores de actividade. A «diplomacia dos mísseis» é uma réplica da «diplomacia dos canhões» utilizada para implementar o «comércio livre» no século xix. A Missão Cushing dos EUA à China em 1844 (na sequência das Guerras do Ópio) foi um aviso ao governo imperial chinês de que «a recusa em ceder às exigências americanas poderia considerar-se uma declaração de guerra» [23].

    O DESARMAMENTO DA NOVA ORDEM MUNDIAL

    A ideologia do mercado «livre» defende uma forma nova e brutal de intervencionismo do Estado, assente na interferência deliberada nas forças de mercado. Suprimindo os direitos dos cidadãos, o «comércio livre», sob a égide da Organização Mundial de Comércio (OMC) concede «direitos inalienáveis» aos maiores bancos do mundo e às empresas globais. O processo de implementação de acordos internacionais, conduzido pela Organização Mundial de Comércio ao nível nacional e internacional, passa invariavelmente ao lado do processo democrático. Por outras palavras, ao conceder poderes alargados ao poder financeiro instituído, os artigos da OMC ameaçam conduzir ao enfraquecimento de sociedades nacionais (ver capítulo 1).

    A Nova Ordem Mundial baseia-se no «falso consenso» de Washington e de Wall Street, que impõe o «sistema de mercado livre» como a única opção possível na senda ditada pelo avanço da «prosperidade global». Todos os partidos políticos, sem exceptuar os Verdes, os Sociais-Democratas e os partidos ex-Comunistas, aceitam agora este consenso.

    As ligações insidiosas existentes entre políticos e funcionários internacionais e poderosos interesses financeiros devem ser expostas. Para se alcançarem mudanças significativas, as instituições estatais e as organizações intergovernamentais têm de ser libertas das garras do poder financeiro instituído. É igualmente necessário democratizar o sistema económico e as suas estruturas de gestão e propriedade, pôr resolutamente em questão a concentração óbvia da propriedade e das fortunas privadas, desarmar os mercados financeiros, suspender os negócios especulativos, pôr fim ao branqueamento de dinheiro, desmantelar o sistema bancário offshore , redistribuir os rendimentos e a riqueza, restaurar os direitos dos produtores directos e reconstruir o sistema de segurança social do Estado.

    No entanto, é necessário ter em conta que as estruturas militares e de segurança ocidentais caucionam e apoiam os interesses económicos e financeiros dominantes — ou seja, tanto a constituição como o exercício da força militar se destinam a impor o «comércio livre». O Pentágono é uma sucursal de Wall Street; a NATO coordena as suas operações militares com o Banco Mundial e as medidas de intervenção do FMI, e vice-versa. De forma consistente, os organismos de segurança e defesa da aliança militar ocidental, em colaboração com os vários governos e órgãos burocráticos intergovernamentais (tais como o FMI, o Banco Mundial e a OMC) partilham um entendimento comum, um consenso ideológico e igual empenho na Nova Ordem Mundial. Por outras palavras, a campanha internacional contra a «globalização» deve ser integrada numa coligação mais alargada de forças sociais empenhadas no desmantelamento do complexo militar-industrial, da NATO e das instituições da defesa, nas quais se incluem os serviços policiais, de informação e de segurança.

    Os meios de comunicação globais fabricam as notícias e distorcem abertamente o curso dos acontecimentos mundiais. Esta «falsa consciência» que se infiltra na nossa sociedade impede o debate crítico e mascara a verdade. Em última análise, nega o acesso a um entendimento colectivo dos mecanismos de um sistema económico que está a destruir a vida das pessoas. A única promessa do «mercado livre» é um mundo de agricultores sem terra, fábricas fechadas, trabalhadores sem emprego e programas sociais destruídos, com o «amargo remédio económico» da OMC e do FMI a constituírem a única receita. Temos a obrigação de restaurar a verdade, denunciar os meios de comunicação de massas controlados pelas empresas, devolver a soberania aos nossos países e aos povos dos nossos países e desarmar e abolir o capitalismo global.

    Esta luta deve ter uma ampla base democrática de sustentação que abranja todos os sectores da sociedade a todos os níveis, em todos os países, unindo num só ímpeto trabalhadores, agricultores, produtores independentes, pequenos negociantes, profissionais liberais, artistas, funcionários públicos, membros do clero, estudantes e intelectuais. Os elementos de sectores diversos devem unir-se, os grupos com uma causa específica devem dar-se as mãos num entendimento comum e colectivo do poder destrutivo e empobrecedor deste sistema económico. A globalização desta luta é fundamental e requer um grau de solidariedade e internacionalismo sem precedentes na História mundial. Este sistema económico global é alimentado pela divisão social entre países e no seio destes. A unidade de objectivos e a coordenação ao nível mundial entre os diversos grupos são cruciais. É necessário um ímpeto de grande magnitude que congregue os movimentos sociais nas principais partes do Mundo num objectivo comum e no empenhamento para a eliminação da pobreza e a obtenção de uma paz mundial duradoura.

    ___________
    [*] Director do Centre for Research on Globalization . O texto desta introdução do livro foi cedido gentilmente pela Editorial Caminho, SA . Omitiram-se as notas de rodapé.

    A Globalização da Pobreza e a Nova Ordem Mundial, Michel Chossudovsky, Editorial Caminho, 496 pgs., Nov/2003, 24,80 euros, ISBN: 972-21-1582-0.


    Esta introdução do livro encontra-se em http://resistir.info .

    18/Nov/03