por Michel Chossudovsky
[*]
O primeiro dos textos abaixo é uma breve actualização
destinada a examinar o significado mais vasto da recente cisão
verificada no Conselho de
Segurança da ONU.
O segundo texto é um excerto do livro
Guerra e
globalização, a verdade por trás do 11 de Setembro
,
de Michel Chossudovsky.
A cisão no Conselho de Segurança da ONU
Os «desentendimentos» no interior do Conselho de Segurança
respeitante ao Iraque são apresentados, de uma forma indiferente pela
comunicação social, como uma simples fissura diplomática.
Mas, na realidade, estamos perante algo muito mais complexo. Os planos de
guerra da Administração Bush não têm nada a ver com
as «armas de destruição maciça de Saddam» ou com
as suas alegadas ligações a Osama bin Laden.
A proposta invasão do Iraque tem por finalidade excluir os interesses
rivais europeus, russos e chineses dos campos petrolíferos do
Médio Oriente e da Ásia Central. Enquanto nos Balcãs, os
EUA «partilham os despojos» com a Alemanha e a França no
contexto das operações militares sob os auspícios da NATO
e da ONU, a invasão do Iraque pretende estabelecer a hegemonia dos EUA,
ao mesmo tempo enfraquecendo a influência franco-alemã e russa na
região.
O embate entre as Grandes Potências («Velha Europa» contra o
eixo militar anglo-americano) diz respeito, em termos gerais, a:
1- Defesa e complexo militar-industrial
2- Controle de reservas petrolíferas e de gás.
3- Sistemas monetários e cambiais: embate entre o Euro e o Dólar.
1- Defesa e complexo militar-industrial
Ocorreram alterações fundamentais na estrutura das
alianças militares sob a superfície dourada da diplomacia
internacional. A França e a Alemanha estabeleceram acordos de
cooperação militar com a Rússia desde 1999.
A NATO está dividida. Enquanto a Grã-Bretanha e os EUA deram as
mãos através da chamada «Ponte Atlântica» para a
produção de defesa, conjuntamente com uma
cooperação estreita em operações militares e de
inteligência, desenvolveram-se significativas divisões entre os
EUA e vários dos seus «parceiros europeus». O eixo
anglo-americano para a produção de armamento está em
choque com o seu poderoso rival franco-alemão, a European Aerospace and
Defense Corporation (EADS). A indústria de defesa ocidental rachou ao
meio com os sistemas da British Aerospace contra o competitivo conglomerado
EADS franco-alemão, agora que aqueles estão firmemente alinhados
com os maiores cinco produtores americanos de armamento.
Controle de reservas petrolíferas e de gás
A extensa região Médio Oriente-Ásia Central envolve mais
de 70% das reservas mundiais de petróleo e gás natural. De acordo
com o Comando Central dos EUA o «Objectivo do envolvimento dos
EUA...é proteger os seus interesses vitais na região
garantir o acesso ininterrupto dos EUA / Aliados ao petróleo do
Golfo». Por outras palavras, esta é uma guerra de conquista, que
envolve também conglomerados petrolíferos rivais, incluindo os da
Rússia e França, que têm interesses petrolíferos
consideráveis no Iraque e no Irão.
Por sua vez, os gigantes petrolíferos anglo-americanos
(BP-Amoco-Chevron-Texaco-Exxon-Mobil-Shell) apoiados pelo eixo militar
anglo-americano, confrontam-se com os gigantes petrolíferos europeus
Total-Fina-Elf e o italiano ENI, que têm interesses importantes no
Iraque, Irão e na Ásia Central. Washington tentou, em anos
recentes, quebrar o acordo da França com Teerão, sob o pretexto
de que transgredia abertamente o Decreto das Sanções
Irão-Líbia. O que isto implica é que o maior conglomerado
petrolífero europeu dominado por interesses petrolíferos
franceses, belgas e italianos em associação com os seus
parceiros iranianos e russos está, potencialmente, numa rota de
colisão com o consórcio petrolífero anglo-americano, que
por sua vez é apoiado pelo eixo militar anglo-americano:
o Iraque possui actualmente 11% do petróleo mundial e está
apenas em segundo lugar em relação à Arábia Saudita
quanto ao tamanho das suas reservas (112 mil milhões de barris). Os
custos de exploração são menos de metade dos da
exploração em mar alto. O acesso directo ao Golfo Pérsico
e ao Oceano Índico assegura rotas de abastecimento estrategicamente
seguras. Os gigantes petrolíferos anglo-americanos (BP, Chevron-Texaco,
Shell, Exxon) estão todos ausentes no Irão e Iraque, que
assinaram contratos petrolíferos e acordos de partilha de
produção com empresas petrolíferas francesas, russas e
chinesas. Devido às sanções da ONU ao Iraque, os acordos
assinados por Bagdad não são (oficialmente)
efectivos. (Eric Waddell,
The Batlle for Oil, Global Outlook,
Edição Nº 3. Inverno de 2003).
Segundo o
Washington Post
(15/Set/2002): Uma destituição do presidente Saddam Hussein
dirigida pelos EUA podia abrir uma oportunidade sumarenta para as companhias
americanas há muito banidas do Iraque, eliminando os acordos
petrolíferos entre Bagdad com a Rússia, a França e outros
países, e alterando os mercados petrolíferos mundiais...
Também anunciado, um proposto acordo económico de US$ 40 mil
milhões entre o Iraque e a Rússia inclui oportunidades para
companhias russas explorarem petróleo no deserto ocidental do Iraque. A
companhia francesa Total-Fina-Elf negociou os direitos de
exploração do vasto campo de Majnoon, perto da fronteira
iraniana, que pode conter até 30 mil milhões de barris de
petróleo.
A guerra não está a ser executada apenas para que o eixo se
apodere das reservas de petróleo do Iraque, destina-se também a
cancelar os contratos das companhias petrolíferas rivais russas e
europeias, assim como excluir a França, Rússia e China da
região.
3- Dinheiro e sistemas cambiais: conflito entre o Euro e o Dólar
O que está em causa é a rivalidade entre duas unidades
monetárias globais competitivas: o euro e o dólar americano. O
processo de integração monetária europeia reduziu a
hegemonia do dólar americano.
O processo de
dolarização
que é, em última instância, um instrumento de conquista
económica, é minado pelo euro.
Wall Street enfrenta interesses financeiros competitivos franco-alemães.
A guerra ao Iraque não tem a ver só com o controle das reservas
de petróleo bruto. O controle da criação de dinheiro e
crédito é parte integrante do processo da conquista
económica.
O eixo militar anglo-americano
A guerra à Jugoslávia em 1999, contribuiu para reforçar os
laços estratégicos, militares e de inteligência entre
Washington e Londres.. Após a guerra da Jugoslávia, o
secretário de Defesa americano William Cohen e o seu homólogo
inglês, Geoff Hoon, assinaram uma Declaração de
Princípios para Equipamentos de Defesa e Cooperação
Industrial a fim de melhorar a cooperação na
obtenção de armas e protecção de segredos
tecnológicos ao mesmo tempo que pedia facilidades para mais
acções conjuntas militares e possíveis uniões de
defesa industrial. (25)
O objectivo de Washington era encorajar a formação de uma
ponte transatlântica pela qual o DoD (Departamento de
Defesa dos EUA) pode levar a política de globalização
à Europa... O nosso objectivo é melhorar a operacionalidade e a
eficácia dos combates bélicos através de
ligações industriais mais estreitas entre empresas americanas e
aliadas. (26)
Nas palavras de William Cohen, secretário de Defesa do Presidente
Clinton:
(O acordo) facilitará a interacção entre as nossas
respectivas indústrias (britânicas e americanas) de forma a que
possamos ter uma abordagem harmonizada à repartição de
tecnologia, trabalhando em cooperação nas
combinações de parceria e, potencialmente, também em
fusões. (27)
O acordo foi assinado em 1999, pouco depois da criação da British
Aerospace Systems (BAES) resultante da fusão da British Aerospace (BA) e
com a GEC Marconi . A British Aerospace Systems já estava firmemente
associada aos maiores empreiteiros americanos no campo da defesa, a Lockheed
Martin e a Boeing.(28)
A agenda escondida por trás da ponte transatlântica
anglo-americana é finalmente deslocar os conglomerados militares
franco-alemães e assegurar o domínio do complexo industrial
militar americano (em aliança com os principais empreiteiros
britânicos no campo da defesa).
Além disso, esta integração na área da
produção de defesa foi também correspondida pela
cooperação cada vez maior entre a CIA e o MI5 britânico na
esfera da inteligência e operações encobertas, sem
mencionar as operações conjuntas de Forças Especiais
britânicas e americanas.
Os Estados Unidos e a Alemanha
O complexo militar-industrial britânico está cada vez mais
integrado no americano. Por sua vez, emergiram fracturas significativas entre
Washington e Berlim. A integração franco-alemã na
produção aeroespacial e de defesa está dirigida,
fundamentalmente, contra o domínio americano no mercado de armamento.
Este depende da parceria entre os Cinco Grandes da América e
a indústria de defesa britânica, sob os auspícios do acordo
da ponte transatlântica.
Desde os princípios dos anos 90 que o governo de Bonn encoraja a
consolidação do complexo militar-industrial alemão,
dominado pela Daimler, Siemens e Krupp. Tiveram lugar várias
fusões importantes na indústria de defesa na Alemanha em resposta
às mega-fusões entre os produtores de armas e de armamentos
aeroespaciais americanos.(29)
Já em 1996 Paris e Bonn haviam formado uma agência conjunta de
armamentos com o mandato de administrar programas comuns e adjudicar
contratos em nome de ambos os governos. (30) Ambos os países
afirmaram que não desejavam que a Grã-Bretanha entrasse na
agência.
Por sua vez, a França e a Alemanha controlam agora as indústrias
Airbus que competem com a Lockheed-Martin americana. (A BAES britânica
possui os restantes 20%). Os alemães estão também a
colaborar no programa de lançamento do satélite Ariane Space,
onde a Deutsche Aerospace (DASA) é a principal accionista.
Nos finais de 1999, em resposta à aliança da British
Aerospace com a Lockheed Martin, a Aerospace-Matra fundiu-se com a DASA da
Daimler constituindo o maior grupo de defesa da Europa. E no ano seguinte
formou-se o European Aeronautic Defence and Space Co. (EADS), integrando DASA
Matra e as Construcciones Aeronauticas, SA, da Espanha. A EADS e os seus rivais
anglo-americanos competem para o fornecimento de armas aos novos membros do
leste europeu da NATO (O terceiro maior empreiteiro europeu de armas é a
Thomson, que em anos recentes teve vários projectos com o produtor
americano de armas Raytheon).
Enquanto a EADS coopera ainda com a britânica BAES na
produção de mísseis e tem negócios com os
Cinco Grandes dos EUA, incluindo Northrop Grumman, a
indústria ocidental de defesa e do espaço aéreo tende a
ser dividida em dois grupos distintos: por um lado, a EADS dominada pela
França e Alemanha, por outro, os Seis Grandes
anglo-americanos, que incluem os empreiteiros americanos dos Cinco
Grandes (Lockheed Martin, Raytheon, General Dynamics, Boeing e Northrop
Grumman), mais a poderosa BAES britânica.
Integrada no Departamento de Defesa americano sob ao auspícios do acordo
da ponte atlântica, a BAES era, em 2001, o quinto maior
empreiteiro de defesa do Pentágono. Sob os auspícios da
ponte transatlântica, a BAES opera livremente no mercado
americano através da sua subsidiária BAE Systems North America
(31)
A integração franco-alemã em armamento nuclear
A aliança franco-alemã para a produção militar, sob
os auspícios da EADS, abre a porta à integração da
Alemanha (que não possui oficialmente armas nucleares) no programa de
armamento nuclear da França. A este respeito, a EADS já produz
uma larga variedade de mísseis balísticos, incluindo o M51 de
ogiva nuclear...para a Armada Francesa. (32)
Euro versus Dólar:
Rivalidade entre agrupamentos financeiros rivais
O sistema europeu de divisa comum tem uma acção directa nas
divisões políticas e estratégicas. A decisão de
Londres de não adoptar a moeda comum europeia é consistente com a
integração dos interesses financeiros e bancários
britânicos com a Wall Street, sem mencionar a aliança
anglo-americana na indústria petrolífera (como na BP-Amoco) e na
produção de armamento (Cinco Grandes mais BAES). Por
outras palavras, esta incerta relação entre a libra
britânica e o dólar americano é parte integrante do novo
eixo anglo-americano.
O que está em jogo é a rivalidade entre duas unidades
monetárias globais concorrentes: o euro e o dólar americano, com
a libra britânica a ser dilacerada entre os sistemas monetários
dominantes, europeu e americano. Por outras palavras, dois sistemas
monetários e financeiros rivais estão a competir mundialmente
pelo controle da criação de dinheiro e de crédito. As
implicações geopolíticas e estratégicas são
incalculáveis pois são também marcadas por rupturas na
indústria de defesa ocidental e nos negócios petrolíferos.
A política monetária, quer na Europa quer na América,
embora esteja formalmente sob jurisdição estatal, é
largamente controlada pelo sector bancário privado. O Banco Central
Europeu localizado em Francoforte embora oficialmente sob a
jurisdição da União Europeia é, na
prática, administrado por uma mão cheia de bancos privados
europeus, incluindo os maiores bancos da Alemanha e agrupamentos financeiros.
A Federal Reserve Boarddos EUA é, formalmente, supervisionada pelo
Estado e caracterizada por ter uma relação estreita com o
Ministério das Finanças dos EUA. Diferentemente do Banco Central
Europeu, os 12 bancos Federais de Reserva (onde o Banco Federal de Reserva de
Nova Iorque é o mais importante) são controlados pelos seus
accionistas, que são instituições bancárias
privadas. Por outras palavras, o Fed, como é conhecido nos
EUA, responsável pela política monetária e, portanto, pela
criação de dinheiro para a nação é,
realmente, controlado por interesses privados da Wall Street.
Sistemas monetários e conquista económica
Na Europa do Leste, na antiga União Soviética e nos
Balcãs, que se estendem para a Ásia Central, o dólar e o
euro competem um com o outro. No fim de contas, o controle dos sistemas
monetários nacionais é a base da colonização dos
países. Enquanto o dólar americano predomina por todo o
Hemisfério Ocidental, o euro e o dólar americano estão em
conflito na ex-União Soviética, Ásia Central,
África a sul da Saara e Médio Oriente.
Nos Balcãs e nos Estados do Báltico, os bancos centrais operam
geralmente no estilo colonial das "currency boards", utilizando,
invariavelmente, o euro como divisa substituta
(proxy currency)
. O significado disto é: interesses financeiros alemães e
europeus têm o controle da criação de dinheiro e de
crédito. Isto é, o atrelamento
(pegging)
da moeda nacional ao euro ao invés do dólar americano
significa que tanto a divisa comor o sistema monetário
ficarão nas mãos dos interesses bancários alemães e
da União Europeia.
De modo mais geral, o euro domina na retaguarda da Alemanha: Europa do Leste,
Estados Bálticos e Balcãs ao passo que o dólar americano
tende a predominar no Cáucaso e na Ásia Central. Nos
países GUUAM (que têm acordos militares de
cooperação com Washington) o dólar tende (com a
excepção da Ucrânia) a eclipsar o euro.
A dólarização das divisas nacionais faz parte
integrante da Estratégia da Estrada da Seda" ("
Silk Road Strategy
, SRS) americana. Esta consiste primeiro em desestabilizar e a seguir
substituir as divisas nacionais pelas notas verdes americanas numa área
que vai do Mediterrâneo à fronteira ocidental da China. O
objectivo subjacente é estender o domínio do Federal Reserve
System isto é, da Wall Street sobre um vasto
território.
Trata-se de uma escalada imperial pelo controle das várias
divisas nacionais. O controle da criação de dinheiro e do
crédito é uma parte integral do processo de conquista
económica, que por sua vez é apoiado pela
militarização do corredor euro-asiático.
Embora os interesses bancários americanos e os alemães-UE se
enfrentem pelo controle das economias nacionais e sistemas monetários,
parece que também concordaram em partilhar os despojos
isto é, estabelecer as respectivas esferas de
influência. Recordando as políticas do passado de
partilha nos finais do século XIX, os EUA e a Alemanha
concordaram na divisão dos Balcãs: a Alemanha ganha controle das
divisas nacionais na Croácia, Bósnia e Kosovo onde o euro tem
curso legal. Em troca, os EUA estabeleceram uma presença militar
permanente na região (i.e. a base militar de Bondsteel, no Kosovo).
O corte transversal das alianças militares
A ruptura que se deu entre fabricantes de armamentos anglo-americanos e
franco-alemães, incluindo as rupturas dentro da aliança militar
ocidental, parece ter favorecido um incremento da cooperação
militar entre a Rússia por um lado e a França e Alemanha por
outro.
Em anos recentes, a França e a Alemanha haviam entrado em
discussões bilaterais com a Rússia sobre áreas de
produção de defesa, investigação aeroespacial e
cooperação militar. Nos finais de 1998, Paris e Moscovo
concordaram em fazer exercícios conjuntos de infantaria e consultas
militares bilaterais. Por sua vez, Moscovo tem procurado parceiros
alemães e franceses para participarem no desenvolvimento do seu complexo
militar-industrial.
Nos princípios de 2000, Rudolph Sharping, ministro de Defesa
alemão, visitou Moscovo para consultas bilaterais com o seu
homólogo russo. Foi assinado um acordo bilateral relativo a 33 projectos
de cooperação militar incluindo o treino de especialistas
militares russos na Alemanha.(33) Este acordo foi alcançado fora da
estrutura da NATO e sem consulta prévia a Washington.
A Rússia também assinou um acordo de
cooperação militar a longo prazo com a Índia em fins
de 1998, que foi seguido, uns meses depois, por um acordo de defesa entre a
Índia e a França. O acordo entre Delhi e Paris incluía a
transferência de tecnologia militar francesa, assim como o investimento
de multinacionais francesas na indústria de defesa indiana. Esta
incluía facilidades para a produção de mísseis
balísticos e ogivas nucleares, matéria em que as empresas
francesas eram especialistas.
O acordo franco-indiano tem uma relevância directa nas
relações indo-paquistanesas. Também colide com os
interesses estratégicos dos EUA na Ásia Central e do Sul.
Enquanto Washington tem estado a injectar ajuda militar no Paquistão, a
Índia está a ser apoiada pela França e pela Rússia.
É visível que a França e os EUA estão em lados
opostos no conflito Índia-Paquistão.
Com o Paquistão e a Índia à beira da guerra, na
sequência do 11 de Setembro, a Força Aérea dos EUA tomou
virtualmente controle do espaço aéreo do Paquistão, como
também de várias instalações militares. Entretanto,
a apenas umas poucas semanas do princípio dos bombardeamentos no
Afeganistão, em 2001, a França e a Índia iniciavam
manobras militares conjuntas no Mar da Arábia. Também logo a
seguir ao 11 de Setembro, a Índia recebeu grandes quantidades de armas
russas ao abrigo do acordo de cooperação militar indo-russo.
A nova doutrina de segurança nacional de Moscovo
A política estrangeira americana da era pós-guerra fria
considerava a Ásia Central e o Cáucaso como áreas
estratégicas. Contudo, esta política já não
consiste em conter a expansão do comunismo, mas antes em
evitar que a Rússia e a China venham a ser potências capitalistas
concorrentes. Nesta perspectiva, os EUA aumentaram a sua presença
militar ao longo de todo o paralelo 40, que vai da Bósnia e Kosovo
até às antigas repúblicas soviéticas da
Geórgia, Azerbaijão, Turcomenistão e Uzbequistão,
as quais assinaram acordos militares bilaterais com Washington.
A guerra na Jugoslávia em 1999 e a subsequente erupção de
guerra na Chechénia em Setembro de 1999, foi um ponto de viragem crucial
nas relações russo-americanas. E também se verificou uma
aproximação entre Moscovo e Pequim, e a assinatura de diversos
acordos de cooperação militar entre a Rússia e a China.
O apoio encoberto dos EUA aos dois principais grupos rebeldes chechenos
(através do ISI paquistanês) era do conhecimento do governo e dos
militares russos (para mais pormenores ver Capítulo II). Contudo, nunca
foi tornado público ou levantado a nível diplomático. Em
Novembro de 1999, o ministro da Defesa russo, Igor Sergueyev, acusou
formalmente Washington de apoiar os rebeldes chechenos. A seguir a uma
reunião à porta fechada com o alto comando russo, Sergueyev
declarou que:
Os interesses nacionais dos EUA obrigam que o conflito militar no
Cáucaso (Chechénia) seja uma fogueira, ateada por forças
exteriores, acrescentando que a política do Ocidente
constitui um desafio lançado à Rússia com o objectivo
derradeiro de enfraquecer a sua posição internacional e de
exclui-la das áreas geo-estratégicas. (34)
No rastro da guerra da Chechénia de 1999, no princípio de 2000
uma nova Doutrina de Segurança Nacional foi formulada e
convertida em lei pelo presidente em exercício Vladimir Putin. Pouco
apreciada pelos
media
internacionais, deu-se uma deslocação crítica nas
relações Leste-Ocidente. O documento reafirmava a
construção de um Estado russo forte, com o crescimento das
forças militares, assim como a reintrodução de controles
estatais sobre o capital estrangeiro.
O documento explicava cuidadosamente descrevia o que eram as
ameaças fundamentais para a segurança nacional e
soberania da Rússia. E referia-se, mais especificamente, ao
reforço dos blocos político-militares e
alianças(nomeadamente GUUAM), assim como à
expansão para leste da NATO, ao mesmo tempo que sublinhava
a possível emergência de bases militares estrangeiras e
presenças militares importantes nas proximidades das fronteiras
russas. (35)
O documento confirma que o terrorismo internacional empreende uma
campanha aberta para desestabilizar a Rússia. Embora não
se referindo explicitamente a actividades encobertas da CIA de apoio a grupos
terroristas armados, como os rebeldes chechenos, o documento, todavia, chama a
atenção para adequadas acções que afastem e
interceptem actividades de espionagem e subversivas por estados estrangeiros
contra a Federação Russa. (36)
Guerra não declarada entre a Rússia e a América
A pedra angular da política estrangeira dos EUA tem sido a de encorajar
sob o disfarce de manter a paz e da chamada
resolução de conflitos a
formação de pequenos Estados pró-EUA, situados
estrategicamente no eixo da bacia do Mar Cáspio, que contêm vastas
reservas de petróleo e gás:
Os EUA devem desempenhar um papel cada vez mais activo na
resolução de conflitos na região. As fronteiras das
Repúblicas soviéticas foram intencionalmente desenhadas para
evitar a secessão pelas diversas comunidades nacionais da antiga URSS e
não com vista a possíveis independências. ... Nem a Europa,
nem os nossos aliados na Ásia Oriental, podem defender os nossos (EUA)
interesses mútuos nessas regiões se nós (EUA) não
conseguirmos tomar a liderança na resolução dos conflitos
e crises que se estão a formar já nessas áreas, que
eventualmente podem exacerbar as nossas relações com a Europa , e
possivelmente, com o nordeste da Ásia. E os piores tipos de
desenvolvimentos políticos na Rússia podem vir a ser encorajados.
Esta multi-ligação em cadeia, dá à
Transcaucásia e à Ásia Central uma importância
estratégica para os EUA e seus aliados que negligenciamos com enormes
riscos. Por outras palavras, os frutos resultantes do fim da Guerra Fria
estão longe de serem colhidos. Ignorar a Transcáucásia e a
Ásia Central pode significar que uma grande parte daquela colheita nunca
será recuperada. (37)
O complexo militar-industrial da Rússia
Juntamente com a articulação da doutrina de Segurança
Nacional de Moscovo, o Estado russo planeava recuperar o controle
económico e financeiro de áreas importantes do complexo
militar-industrial da Rússia. Por exemplo, a formação de
uma empresa única de projectistas e fabricantes de todos os
complexos anti-aéreos era encarada em cooperação com
os empreiteiros de defesa da Rússia. (38)
Esta proposta de re-centralização da indústria
de defesa russa, em resposta a considerações de segurança
nacional, era também motivada pela fusão dos principais
concorrentes estrangeiros na área do
procurement
militar. O desenvolvimento de novas possibilidades científicas e de
produção também era contemplado, baseado no levantamento
do potencial militar da Rússia, assim como da sua capacidade de competir
com os seus rivais ocidentais no mercado global de armamentos.
A Doutrina de Segurança Nacional também relaxava os
critérios pelos quais a Rússia podia utilizar armas nucleares...
que seriam permitidas se a existência do país estivesse
ameaçada. (39)
A Rússia reserva-se o direito do uso de todas as forças e meios
à sua disposição, incluindo armas nucleares, no caso de
uma agressão militar criar uma ameaça à própria
existência da Federação Russa como Estado soberano
independente. (40)
Em resposta à iniciativa de Washington da "Guerra das
Estrelas", Moscovo desenvolveu o Míssil e Escudo Nuclear da
Rússia. O governo russo anunciou em 1998 a criação
de uma nova geração de mísseis balísticos
intercontinentais, conhecidos como Topol-M (SS-27). Estes novos mísseis
de uma só ogiva (estacionados na região de Saratov) estão
presentemente em prontidão total de combate contra um
primeiro ataque inesperado dos EUA, que (na sequência do 11 de
Setembro) constitui a principal pretensão do Pentágono na
eventualidade de uma guerra nuclear. O Topol-M é leve e
móvel, concebido para ser disparado de um veículo. A sua
mobilidade significa que está melhor protegido de um primeiro ataque
inesperado do que um míssil estacionado num silo.(41)
Após a adopção do Documento de Segurança Nacional
(NSD) em 2000, o Kremlin confirmou que não excluía um
primeiro ataque com ogivas nucleares se for atacado mesmo por meios
puramente convencionais (42)
Meia-volta política sob o presidente Vladimir Putin
Desde o início do seu mandato, o presidente Vladimir Putin
seguindo os passos do seu predecessor Boris Yeltsin no Kremlin
contribuiu para reverter a Doutrina de Segurança Nacional. A sua
implementação a nível político também foi
protelada.
Neste momento, as direcções políticas em
relação ao estrangeiro do Governo Putin são confusas e
pouco claras. Há divisões significativas no âmbito
político e militar. Na frente diplomática, o novo presidente tem
procurado (estabelecer) um '
rapprochement'
com Washington e a Aliança Militar Ocidental no chamado combate ao
terrorismo. Contudo, seria prematuro concluir que as aberturas
diplomáticas de Putin implicam uma reversão permanente da
Doutrina de Segurança Nacional Russa do ano 2000.
Após o 11 de Setembro deu-se, contudo, uma viragem significativa na
política estrangeira da Rússia, largamente orquestrada pelo
presidente Putin. A Administração Putin, à revelia da Duma
russa, aceitou o processo do Alargamento da NATO aos Estados
Bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) implicando a
instalação de bases militares da NATO na fronteira ocidental da
Rússia. Entretanto, o acordo de cooperação militar de
Moscovo com Pequim, assinado após a guerra da Jugoslávia em 1999,
está virtualmente em suspenso.
A China está, obviamente, a observar com profunda apreensão a
capitulação russa destas posições. E também
está preocupada pela presença da Força Aérea dos
EUA junto às suas fronteiras, no Uzbequistão, Tajiquistão
e na República do Quirguizistão... Tudo o que o senhor Putin
ganhou com a melhoria espectacular das relações da Rússia
com a China, Índia, Vietname, Cuba e outros países, ruiu de uma
noite para outra. O que sobressaiu foi um conceito primitivo de Gorbachev dos
valores humanos comuns i.e. a subordinação dos
interesses russos aos interesses do Ocidente. (43)
Ironicamente, o Presidente russo está a apoiar a guerra ao
terrorismo da América que é dirigida, em último
caso, contra Moscovo. A agenda escondida de Washington é destruir os
interesses económicos e estratégicos no corredor
euro-asiático, fechar ou tomar as instalações militares
russas, ao mesmo tempo que transforma as antigas repúblicas
soviéticas (e, eventualmente, a Federação Russa) em
protectorados americanos.
Torna-se claro, que a intenção de entrar para a NATO expressa por
Putin no ano passado (2000) de uma forma repentina, reflectiu a ideia
amadurecida há muito tempo de uma profunda (i.e. em
relação às posições tomadas previamente por
Gorbachev e Yeltsin) integração da Federação Russa
na chamada comunidade internacional. De facto, a
intenção é comprimir a Rússia para dentro do
sistema económico, político e militar Ocidental. Mesmo como
parceiro menor. Mesmo ao preço de sacrificar uma política externa
independente. (44)
O texto acima é um excerto da última parte do Capítulo 5
de
War and Globalization.
A numeração das notas indicada abaixo é a mesma do
capítulo 5 original do qual foi extraído o excerto.
Notas
25. Reuters, 5 de Fevereiro de 2000
26. Para mais pormenores ver Vago Muradian,
Pentagon Sees Bridge to Europe, Defence Daily,
Vol.204,Nº40, Dez.01, 1999.
27. Ibidem
28. Vago Muradian, Pentagon Sees Bridge to Europe, Defence Daily,
Vol.204, Nº40, Dez.(ver também a análise de Michel Collon em
Poker Menteus, Editions EPO, Bruxelas,1998, p.156.)
29. Ver também análise de Michel Collon em Poker Menteur,
Editions EPO, Bruxelas,1998, p.156
30. American Monsters, European Minnows: Defence Companies. The Economist, 13
de Janeiro de 1996
31. British Aerospace Systems, home page em
http://www.BAESystems.com/globalfootprint/northamerica/northamerica.htm
32. BAES, EADS Hopeful That Bush Will Broaden Transatlantic Cooperation,
Defence Daily International, 29, 2001
33. Interfax, 1 de Março de 2002
34. Ver The New York Times, 15 de Novembro de 1999; ver também o artigo
de Steve Levine, The New York Times, 20 de Novembro de 1999.
35. Para consultar o documento ver Federation of American Scientists (FAS)
http://www.faz.org/nuke/guide/russia/doctrine/gazeta012400.htm
36. Ibidem.
37. Joseph Jofi, Pipeline Diplomacy:The Clinton Administration's Fight for
Baku-Ceyhan, Woodrow Wilson Case Study, Nº1 Princeton University, 1999
38. Mikhail Kozyrev, the White House Calls for the Fire Vedomosti, 1 de
Novembro de 1999, p.1
39. Ver Andrew Jack, Russia Turns Back Clock, Financial Times, Londres, 15 de
Janeiro de 2000.p.1
40. Citado por Nicolai Sokov em Russia's New National Security Concept; The
Nuclear Angle, Centre for Non Proliferation Studies, Monterrey,
http://.miis.edu/pubs/reports/sokov2.htm
Janeiro de 2000
41. BBC, Russia Deploys New Nuclear Missiles, Londres, Dezembro de 1998
42. Stephen J. Blank, Nuclear Strategy and Nuclear Proliferation in Russian
Commission to Assess the British Missile Threat to the United States, Appendix
III:Unclassified Working Papers, Federation of American Scientists (FAS),
http://www.fas.org/irp/threat/missile/rumsfeld/toc.3.htm
. Washington DC, sem data
43. V.Tetekin, Putin's Ten Blows, Centre for Research on Globalisation (CRG)
http://globalresearch.ca/articles/TET112A.html
, 27 de Dezembro de 2001.
44. Ibidem.
O livro de Michel Chossudovsky,
War and Globalisation, The Truth Behind September 11,
pode ser encomendado online (em francês ou em inglês).
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Traduzido por João Manuel Pinheiro
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