O eixo militar anglo-americano

por Michel Chossudovsky [*]


O primeiro dos textos abaixo é uma breve actualização destinada a examinar o significado mais vasto da recente cisão verificada no Conselho de Segurança da ONU.

O segundo texto é um excerto do livro Guerra e globalização, a verdade por trás do 11 de Setembro , de Michel Chossudovsky.



A cisão no Conselho de Segurança da ONU

Os «desentendimentos» no interior do Conselho de Segurança respeitante ao Iraque são apresentados, de uma forma indiferente pela comunicação social, como uma simples fissura diplomática.

Mas, na realidade, estamos perante algo muito mais complexo. Os planos de guerra da Administração Bush não têm nada a ver com as «armas de destruição maciça de Saddam» ou com as suas alegadas ligações a Osama bin Laden.

A proposta invasão do Iraque tem por finalidade excluir os interesses rivais europeus, russos e chineses dos campos petrolíferos do Médio Oriente e da Ásia Central. Enquanto nos Balcãs, os EUA «partilham os despojos» com a Alemanha e a França no contexto das operações militares sob os auspícios da NATO e da ONU, a invasão do Iraque pretende estabelecer a hegemonia dos EUA, ao mesmo tempo enfraquecendo a influência franco-alemã e russa na região.

O embate entre as Grandes Potências («Velha Europa» contra o eixo militar anglo-americano) diz respeito, em termos gerais, a:

1- Defesa e complexo militar-industrial
2- Controle de reservas petrolíferas e de gás.
3- Sistemas monetários e cambiais: embate entre o Euro e o Dólar.

1- Defesa e complexo militar-industrial

Ocorreram alterações fundamentais na estrutura das alianças militares sob a superfície dourada da diplomacia internacional. A França e a Alemanha estabeleceram acordos de cooperação militar com a Rússia desde 1999.

A NATO está dividida. Enquanto a Grã-Bretanha e os EUA deram as mãos através da chamada «Ponte Atlântica» para a produção de defesa, conjuntamente com uma cooperação estreita em operações militares e de inteligência, desenvolveram-se significativas divisões entre os EUA e vários dos seus «parceiros europeus». O eixo anglo-americano para a produção de armamento está em choque com o seu poderoso rival franco-alemão, a European Aerospace and Defense Corporation (EADS). A indústria de defesa ocidental rachou ao meio com os sistemas da British Aerospace contra o competitivo conglomerado EADS franco-alemão, agora que aqueles estão firmemente alinhados com os maiores cinco produtores americanos de armamento.

Controle de reservas petrolíferas e de gás

A extensa região Médio Oriente-Ásia Central envolve mais de 70% das reservas mundiais de petróleo e gás natural. De acordo com o Comando Central dos EUA o «Objectivo do envolvimento dos EUA...é proteger os seus interesses vitais na região – garantir o acesso ininterrupto dos EUA / Aliados ao petróleo do Golfo». Por outras palavras, esta é uma guerra de conquista, que envolve também conglomerados petrolíferos rivais, incluindo os da Rússia e França, que têm interesses petrolíferos consideráveis no Iraque e no Irão.

Por sua vez, os gigantes petrolíferos anglo-americanos (BP-Amoco-Chevron-Texaco-Exxon-Mobil-Shell) – apoiados pelo eixo militar anglo-americano, confrontam-se com os gigantes petrolíferos europeus Total-Fina-Elf e o italiano ENI, que têm interesses importantes no Iraque, Irão e na Ásia Central. Washington tentou, em anos recentes, quebrar o acordo da França com Teerão, sob o pretexto de que transgredia abertamente o Decreto das Sanções Irão-Líbia. O que isto implica é que o maior conglomerado petrolífero europeu dominado por interesses petrolíferos franceses, belgas e italianos – em associação com os seus parceiros iranianos e russos – está, potencialmente, numa rota de colisão com o consórcio petrolífero anglo-americano, que por sua vez é apoiado pelo eixo militar anglo-americano:

“o Iraque possui actualmente 11% do petróleo mundial e está apenas em segundo lugar em relação à Arábia Saudita quanto ao tamanho das suas reservas (112 mil milhões de barris). Os custos de exploração são menos de metade dos da exploração em mar alto. O acesso directo ao Golfo Pérsico e ao Oceano Índico assegura rotas de abastecimento estrategicamente seguras. Os gigantes petrolíferos anglo-americanos (BP, Chevron-Texaco, Shell, Exxon) estão todos ausentes no Irão e Iraque, que assinaram contratos petrolíferos e acordos de partilha de produção com empresas petrolíferas francesas, russas e chinesas. Devido às sanções da ONU ao Iraque, os acordos assinados por Bagdad não são (“oficialmente”) efectivos”. (Eric Waddell, The Batlle for Oil, Global Outlook, Edição Nº 3. Inverno de 2003).

Segundo o Washington Post (15/Set/2002): “Uma destituição do presidente Saddam Hussein dirigida pelos EUA podia abrir uma oportunidade sumarenta para as companhias americanas há muito banidas do Iraque, eliminando os acordos petrolíferos entre Bagdad com a Rússia, a França e outros países, e alterando os mercados petrolíferos mundiais... Também anunciado, um proposto acordo económico de US$ 40 mil milhões entre o Iraque e a Rússia inclui oportunidades para companhias russas explorarem petróleo no deserto ocidental do Iraque. A companhia francesa Total-Fina-Elf negociou os direitos de exploração do vasto campo de Majnoon, perto da fronteira iraniana, que pode conter até 30 mil milhões de barris de petróleo”.

A guerra não está a ser executada apenas para que o eixo se apodere das reservas de petróleo do Iraque, destina-se também a cancelar os contratos das companhias petrolíferas rivais russas e europeias, assim como excluir a França, Rússia e China da região.

3- Dinheiro e sistemas cambiais: conflito entre o Euro e o Dólar

O que está em causa é a rivalidade entre duas unidades monetárias globais competitivas: o euro e o dólar americano. O processo de integração monetária europeia reduziu a hegemonia do dólar americano.

O processo de dolarização que é, em última instância, um instrumento de conquista económica, é minado pelo euro.

Wall Street enfrenta interesses financeiros competitivos franco-alemães. A guerra ao Iraque não tem a ver só com o controle das reservas de petróleo bruto. O controle da criação de dinheiro e crédito é parte integrante do processo da conquista económica.




O eixo militar anglo-americano

A guerra à Jugoslávia em 1999, contribuiu para reforçar os laços estratégicos, militares e de inteligência entre Washington e Londres.. Após a guerra da Jugoslávia, o secretário de Defesa americano William Cohen e o seu homólogo inglês, Geoff Hoon, assinaram uma “Declaração de Princípios para Equipamentos de Defesa e Cooperação Industrial” a fim de “melhorar a cooperação na obtenção de armas e protecção de segredos tecnológicos” ao mesmo tempo que pedia “facilidades para mais acções conjuntas militares e possíveis uniões de defesa industrial.” (25)

O objectivo de Washington era encorajar a formação de uma “ponte transatlântica pela qual o “DoD” (Departamento de Defesa dos EUA) pode levar a política de globalização à Europa... O nosso objectivo é melhorar a operacionalidade e a eficácia dos combates bélicos através de ligações industriais mais estreitas entre empresas americanas e aliadas”. (26)

Nas palavras de William Cohen, secretário de Defesa do Presidente Clinton:

(O acordo) facilitará a interacção entre as nossas respectivas indústrias (britânicas e americanas) de forma a que possamos ter uma abordagem harmonizada à repartição de tecnologia, trabalhando em cooperação nas combinações de parceria e, potencialmente, também em fusões. (27)

O acordo foi assinado em 1999, pouco depois da criação da British Aerospace Systems (BAES) resultante da fusão da British Aerospace (BA) e com a GEC Marconi . A British Aerospace Systems já estava firmemente associada aos maiores empreiteiros americanos no campo da defesa, a Lockheed Martin e a Boeing.(28)

A agenda escondida por trás da “ponte transatlântica” anglo-americana é finalmente deslocar os conglomerados militares franco-alemães e assegurar o domínio do complexo industrial militar americano (em aliança com os principais empreiteiros britânicos no campo da defesa).

Além disso, esta integração na área da produção de defesa foi também correspondida pela cooperação cada vez maior entre a CIA e o MI5 britânico na esfera da inteligência e operações encobertas, sem mencionar as operações conjuntas de Forças Especiais britânicas e americanas.

Os Estados Unidos e a Alemanha

O complexo militar-industrial britânico está cada vez mais integrado no americano. Por sua vez, emergiram fracturas significativas entre Washington e Berlim. A integração franco-alemã na produção aeroespacial e de defesa está dirigida, fundamentalmente, contra o domínio americano no mercado de armamento. Este depende da parceria entre os “Cinco Grandes” da América e a indústria de defesa britânica, sob os auspícios do acordo da ponte transatlântica.

Desde os princípios dos anos 90 que o governo de Bonn encoraja a consolidação do complexo militar-industrial alemão, dominado pela Daimler, Siemens e Krupp. Tiveram lugar várias fusões importantes na indústria de defesa na Alemanha em resposta às mega-fusões entre os produtores de armas e de armamentos aeroespaciais americanos.(29)

Já em 1996 Paris e Bonn haviam formado uma agência conjunta de armamentos com o mandato de “administrar programas comuns e adjudicar contratos em nome de ambos os governos.” (30) Ambos os países afirmaram que “não desejavam que a Grã-Bretanha entrasse na agência.”

Por sua vez, a França e a Alemanha controlam agora as indústrias Airbus que competem com a Lockheed-Martin americana. (A BAES britânica possui os restantes 20%). Os alemães estão também a colaborar no programa de lançamento do satélite Ariane Space, onde a Deutsche Aerospace (DASA) é a principal accionista.

Nos finais de 1999, em resposta à “aliança” da British Aerospace com a Lockheed Martin, a Aerospace-Matra fundiu-se com a DASA da Daimler constituindo o maior grupo de defesa da Europa. E no ano seguinte formou-se o European Aeronautic Defence and Space Co. (EADS), integrando DASA Matra e as Construcciones Aeronauticas, SA, da Espanha. A EADS e os seus rivais anglo-americanos competem para o fornecimento de armas aos novos membros do leste europeu da NATO (O terceiro maior empreiteiro europeu de armas é a Thomson, que em anos recentes teve vários projectos com o produtor americano de armas Raytheon).

Enquanto a EADS coopera ainda com a britânica BAES na produção de mísseis e tem negócios com os “Cinco Grandes” dos EUA, incluindo Northrop Grumman, a indústria ocidental de defesa e do espaço aéreo tende a ser dividida em dois grupos distintos: por um lado, a EADS dominada pela França e Alemanha, por outro, os “Seis Grandes” anglo-americanos, que incluem os empreiteiros americanos dos “Cinco Grandes” (Lockheed Martin, Raytheon, General Dynamics, Boeing e Northrop Grumman), mais a poderosa BAES britânica.

Integrada no Departamento de Defesa americano sob ao auspícios do acordo da “ponte atlântica”, a BAES era, em 2001, o quinto maior empreiteiro de defesa do Pentágono. Sob os auspícios da “ponte transatlântica”, a BAES opera livremente no mercado americano através da sua subsidiária BAE Systems North America (31)

A integração franco-alemã em armamento nuclear

A aliança franco-alemã para a produção militar, sob os auspícios da EADS, abre a porta à integração da Alemanha (que não possui oficialmente armas nucleares) no programa de armamento nuclear da França. A este respeito, a EADS já produz uma larga variedade de mísseis balísticos, incluindo o M51 de ogiva nuclear...para a Armada Francesa. (32)

Euro versus Dólar:
Rivalidade entre agrupamentos financeiros rivais


O sistema europeu de divisa comum tem uma acção directa nas divisões políticas e estratégicas. A decisão de Londres de não adoptar a moeda comum europeia é consistente com a integração dos interesses financeiros e bancários britânicos com a Wall Street, sem mencionar a aliança anglo-americana na indústria petrolífera (como na BP-Amoco) e na produção de armamento (“Cinco Grandes” mais BAES). Por outras palavras, esta incerta relação entre a libra britânica e o dólar americano é parte integrante do novo eixo anglo-americano.

O que está em jogo é a rivalidade entre duas unidades monetárias globais concorrentes: o euro e o dólar americano, com a libra britânica a ser dilacerada entre os sistemas monetários dominantes, europeu e americano. Por outras palavras, dois sistemas monetários e financeiros rivais estão a competir mundialmente pelo controle da criação de dinheiro e de crédito. As implicações geopolíticas e estratégicas são incalculáveis pois são também marcadas por rupturas na indústria de defesa ocidental e nos negócios petrolíferos.

A política monetária, quer na Europa quer na América, embora esteja formalmente sob jurisdição estatal, é largamente controlada pelo sector bancário privado. O Banco Central Europeu localizado em Francoforte – embora oficialmente sob a jurisdição da União Europeia – é, na prática, administrado por uma mão cheia de bancos privados europeus, incluindo os maiores bancos da Alemanha e agrupamentos financeiros.

A Federal Reserve Boarddos EUA é, formalmente, supervisionada pelo Estado – e caracterizada por ter uma relação estreita com o Ministério das Finanças dos EUA. Diferentemente do Banco Central Europeu, os 12 bancos Federais de Reserva (onde o Banco Federal de Reserva de Nova Iorque é o mais importante) são controlados pelos seus accionistas, que são instituições bancárias privadas. Por outras palavras, o “Fed,” como é conhecido nos EUA, responsável pela política monetária e, portanto, pela criação de dinheiro para a nação é, realmente, controlado por interesses privados da Wall Street.

Sistemas monetários e “conquista económica”

Na Europa do Leste, na antiga União Soviética e nos Balcãs, que se estendem para a Ásia Central, o dólar e o euro competem um com o outro. No fim de contas, o controle dos sistemas monetários nacionais é a base da colonização dos países. Enquanto o dólar americano predomina por todo o Hemisfério Ocidental, o euro e o dólar americano estão em conflito na ex-União Soviética, Ásia Central, África a sul da Saara e Médio Oriente.

Nos Balcãs e nos Estados do Báltico, os bancos centrais operam geralmente no estilo colonial das "currency boards", utilizando, invariavelmente, o euro como divisa substituta (proxy currency) . O significado disto é: interesses financeiros alemães e europeus têm o controle da criação de dinheiro e de crédito. Isto é, o atrelamento (pegging) da moeda nacional ao euro — ao invés do dólar americano — significa que tanto a divisa comor o sistema monetário ficarão nas mãos dos interesses bancários alemães e da União Europeia.

De modo mais geral, o euro domina na retaguarda da Alemanha: Europa do Leste, Estados Bálticos e Balcãs ao passo que o dólar americano tende a predominar no Cáucaso e na Ásia Central. Nos países GUUAM (que têm acordos militares de cooperação com Washington) o dólar tende (com a excepção da Ucrânia) a eclipsar o euro.

A “dólarização” das divisas nacionais faz parte integrante da “Estratégia da Estrada da Seda" (" Silk Road Strategy ”, SRS) americana. Esta consiste primeiro em desestabilizar e a seguir substituir as divisas nacionais pelas notas verdes americanas numa área que vai do Mediterrâneo à fronteira ocidental da China. O objectivo subjacente é estender o domínio do Federal Reserve System — isto é, da Wall Street — sobre um vasto território.

Trata-se de uma escalada “imperial” pelo controle das várias divisas nacionais. O controle da criação de dinheiro e do crédito é uma parte integral do processo de conquista económica, que por sua vez é apoiado pela militarização do corredor euro-asiático.

Embora os interesses bancários americanos e os alemães-UE se enfrentem pelo controle das economias nacionais e sistemas monetários, parece que também concordaram em “partilhar os despojos” – isto é, estabelecer as respectivas “esferas de influência”. Recordando as políticas do passado de “partilha” nos finais do século XIX, os EUA e a Alemanha concordaram na divisão dos Balcãs: a Alemanha ganha controle das divisas nacionais na Croácia, Bósnia e Kosovo onde o euro tem curso legal. Em troca, os EUA estabeleceram uma presença militar permanente na região (i.e. a base militar de Bondsteel, no Kosovo).

O corte transversal das alianças militares

A ruptura que se deu entre fabricantes de armamentos anglo-americanos e franco-alemães, incluindo as rupturas dentro da aliança militar ocidental, parece ter favorecido um incremento da cooperação militar entre a Rússia por um lado e a França e Alemanha por outro.

Em anos recentes, a França e a Alemanha haviam entrado em discussões bilaterais com a Rússia sobre áreas de produção de defesa, investigação aeroespacial e cooperação militar. Nos finais de 1998, Paris e Moscovo concordaram em fazer exercícios conjuntos de infantaria e consultas militares bilaterais. Por sua vez, Moscovo tem procurado parceiros alemães e franceses para participarem no desenvolvimento do seu complexo militar-industrial.

Nos princípios de 2000, Rudolph Sharping, ministro de Defesa alemão, visitou Moscovo para consultas bilaterais com o seu homólogo russo. Foi assinado um acordo bilateral relativo a 33 projectos de cooperação militar incluindo o treino de especialistas militares russos na Alemanha.(33) Este acordo foi alcançado fora da estrutura da NATO e sem consulta prévia a Washington.

A Rússia também assinou um “acordo de cooperação militar a longo prazo” com a Índia em fins de 1998, que foi seguido, uns meses depois, por um acordo de defesa entre a Índia e a França. O acordo entre Delhi e Paris incluía a transferência de tecnologia militar francesa, assim como o investimento de multinacionais francesas na indústria de defesa indiana. Esta incluía facilidades para a produção de mísseis balísticos e ogivas nucleares, matéria em que as empresas francesas eram especialistas.

O acordo franco-indiano tem uma relevância directa nas relações indo-paquistanesas. Também colide com os interesses estratégicos dos EUA na Ásia Central e do Sul. Enquanto Washington tem estado a injectar ajuda militar no Paquistão, a Índia está a ser apoiada pela França e pela Rússia.

É visível que a França e os EUA estão em lados opostos no conflito Índia-Paquistão.

Com o Paquistão e a Índia à beira da guerra, na sequência do 11 de Setembro, a Força Aérea dos EUA tomou virtualmente controle do espaço aéreo do Paquistão, como também de várias instalações militares. Entretanto, a apenas umas poucas semanas do princípio dos bombardeamentos no Afeganistão, em 2001, a França e a Índia iniciavam manobras militares conjuntas no Mar da Arábia. Também logo a seguir ao 11 de Setembro, a Índia recebeu grandes quantidades de armas russas ao abrigo do acordo de cooperação militar indo-russo.

A nova doutrina de segurança nacional de Moscovo

A política estrangeira americana da era pós-guerra fria considerava a Ásia Central e o Cáucaso como “áreas estratégicas”. Contudo, esta política já não consiste em conter a “expansão do comunismo”, mas antes em evitar que a Rússia e a China venham a ser potências capitalistas concorrentes. Nesta perspectiva, os EUA aumentaram a sua presença militar ao longo de todo o paralelo 40, que vai da Bósnia e Kosovo até às antigas repúblicas soviéticas da Geórgia, Azerbaijão, Turcomenistão e Uzbequistão, as quais assinaram acordos militares bilaterais com Washington.

A guerra na Jugoslávia em 1999 e a subsequente erupção de guerra na Chechénia em Setembro de 1999, foi um ponto de viragem crucial nas relações russo-americanas. E também se verificou uma aproximação entre Moscovo e Pequim, e a assinatura de diversos acordos de cooperação militar entre a Rússia e a China.

O apoio encoberto dos EUA aos dois principais grupos rebeldes chechenos (através do ISI paquistanês) era do conhecimento do governo e dos militares russos (para mais pormenores ver Capítulo II). Contudo, nunca foi tornado público ou levantado a nível diplomático. Em Novembro de 1999, o ministro da Defesa russo, Igor Sergueyev, acusou formalmente Washington de apoiar os rebeldes chechenos. A seguir a uma reunião à porta fechada com o alto comando russo, Sergueyev declarou que:

“Os interesses nacionais dos EUA obrigam que o conflito militar no Cáucaso (Chechénia) seja uma fogueira, ateada por forças exteriores”, acrescentando que “a política do Ocidente constitui um desafio lançado à Rússia com o objectivo derradeiro de enfraquecer a sua posição internacional e de exclui-la das áreas geo-estratégicas. (34)

No rastro da guerra da Chechénia de 1999, no princípio de 2000 uma nova “Doutrina de Segurança Nacional” foi formulada e convertida em lei pelo presidente em exercício Vladimir Putin. Pouco apreciada pelos media internacionais, deu-se uma deslocação crítica nas relações Leste-Ocidente. O documento reafirmava a construção de um Estado russo forte, com o crescimento das forças militares, assim como a reintrodução de controles estatais sobre o capital estrangeiro.

O documento explicava cuidadosamente descrevia o que eram as “ameaças fundamentais” para a segurança nacional e soberania da Rússia. E referia-se, mais especificamente, ao “reforço dos blocos político-militares e alianças”(nomeadamente GUUAM), assim como à “expansão para leste da NATO”, ao mesmo tempo que sublinhava “a possível emergência de bases militares estrangeiras e presenças militares importantes nas proximidades das fronteiras russas”. (35)

O documento confirma que “o terrorismo internacional empreende uma campanha aberta para desestabilizar a Rússia”. Embora não se referindo explicitamente a actividades encobertas da CIA de apoio a grupos terroristas armados, como os rebeldes chechenos, o documento, todavia, chama a atenção para adequadas “acções que afastem e interceptem actividades de espionagem e subversivas por estados estrangeiros contra a Federação Russa.” (36)

Guerra não declarada entre a Rússia e a América

A pedra angular da política estrangeira dos EUA tem sido a de encorajar – sob o disfarce de “manter a paz” e da chamada “resolução de conflitos” – a formação de pequenos Estados pró-EUA, situados estrategicamente no eixo da bacia do Mar Cáspio, que contêm vastas reservas de petróleo e gás:

Os EUA devem desempenhar um papel cada vez mais activo na resolução de conflitos na região. As fronteiras das Repúblicas soviéticas foram intencionalmente desenhadas para evitar a secessão pelas diversas comunidades nacionais da antiga URSS e não com vista a possíveis independências. ... Nem a Europa, nem os nossos aliados na Ásia Oriental, podem defender os nossos (EUA) interesses mútuos nessas regiões se nós (EUA) não conseguirmos tomar a liderança na resolução dos conflitos e crises que se estão a formar já nessas áreas, que eventualmente podem exacerbar as nossas relações com a Europa , e possivelmente, com o nordeste da Ásia. E os piores tipos de desenvolvimentos políticos na Rússia podem vir a ser encorajados. Esta multi-ligação em cadeia, dá à Transcaucásia e à Ásia Central uma importância estratégica para os EUA e seus aliados que negligenciamos com enormes riscos. Por outras palavras, os frutos resultantes do fim da Guerra Fria estão longe de serem colhidos. Ignorar a Transcáucásia e a Ásia Central pode significar que uma grande parte daquela colheita nunca será recuperada. (37)


O complexo militar-industrial da Rússia

Juntamente com a articulação da doutrina de Segurança Nacional de Moscovo, o Estado russo planeava recuperar o controle económico e financeiro de áreas importantes do complexo militar-industrial da Rússia. Por exemplo, a formação de “uma empresa única de projectistas e fabricantes de todos os complexos anti-aéreos” era encarada em cooperação com os empreiteiros de defesa da Rússia. (38)

Esta proposta de “re-centralização” da indústria de defesa russa, em resposta a considerações de segurança nacional, era também motivada pela fusão dos principais concorrentes estrangeiros na área do procurement militar. O desenvolvimento de novas possibilidades científicas e de produção também era contemplado, baseado no levantamento do potencial militar da Rússia, assim como da sua capacidade de competir com os seus rivais ocidentais no mercado global de armamentos.

A Doutrina de Segurança Nacional também “relaxava os critérios pelos quais a Rússia podia utilizar armas nucleares... que seriam permitidas se a existência do país estivesse ameaçada”. (39)

A Rússia reserva-se o direito do uso de todas as forças e meios à sua disposição, incluindo armas nucleares, no caso de uma agressão militar criar uma ameaça à própria existência da Federação Russa como Estado soberano independente. (40)

Em resposta à iniciativa de Washington da "Guerra das Estrelas", Moscovo desenvolveu o “Míssil e Escudo Nuclear da Rússia”. O governo russo anunciou em 1998 a criação de uma nova geração de mísseis balísticos intercontinentais, conhecidos como Topol-M (SS-27). Estes novos mísseis de uma só ogiva (estacionados na região de Saratov) estão presentemente em “prontidão total de combate” contra “um primeiro ataque inesperado” dos EUA, que (na sequência do 11 de Setembro) constitui a principal pretensão do Pentágono na eventualidade de uma guerra nuclear. “O Topol-M é leve e móvel, concebido para ser disparado de um veículo. A sua mobilidade significa que está melhor protegido de um primeiro ataque inesperado do que um míssil estacionado num silo”.(41)

Após a adopção do Documento de Segurança Nacional (NSD) em 2000, o Kremlin confirmou que não excluía “um primeiro ataque” com ogivas nucleares “se for atacado mesmo por meios puramente convencionais” (42)

Meia-volta política sob o presidente Vladimir Putin

Desde o início do seu mandato, o presidente Vladimir Putin – seguindo os passos do seu predecessor Boris Yeltsin no Kremlin – contribuiu para reverter a Doutrina de Segurança Nacional. A sua implementação a nível político também foi protelada.

Neste momento, as direcções políticas em relação ao estrangeiro do Governo Putin são confusas e pouco claras. Há divisões significativas no âmbito político e militar. Na frente diplomática, o novo presidente tem procurado (estabelecer) um ' rapprochement' com Washington e a Aliança Militar Ocidental no chamado “combate ao terrorismo”. Contudo, seria prematuro concluir que as aberturas diplomáticas de Putin implicam uma reversão permanente da Doutrina de Segurança Nacional Russa do ano 2000.

Após o 11 de Setembro deu-se, contudo, uma viragem significativa na política estrangeira da Rússia, largamente orquestrada pelo presidente Putin. A Administração Putin, à revelia da Duma russa, aceitou o processo do “Alargamento da NATO” aos Estados Bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) implicando a instalação de bases militares da NATO na fronteira ocidental da Rússia. Entretanto, o acordo de cooperação militar de Moscovo com Pequim, assinado após a guerra da Jugoslávia em 1999, está virtualmente em suspenso.

A China está, obviamente, a observar com profunda apreensão a capitulação russa destas posições. E também está preocupada pela presença da Força Aérea dos EUA junto às suas fronteiras, no Uzbequistão, Tajiquistão e na República do Quirguizistão... Tudo o que o senhor Putin ganhou com a melhoria espectacular das relações da Rússia com a China, Índia, Vietname, Cuba e outros países, ruiu de uma noite para outra. O que sobressaiu foi um conceito primitivo de Gorbachev dos “valores humanos comuns” – i.e. a subordinação dos interesses russos aos interesses do Ocidente. (43)

Ironicamente, o Presidente russo está a apoiar a “guerra ao terrorismo” da América que é dirigida, em último caso, contra Moscovo. A agenda escondida de Washington é destruir os interesses económicos e estratégicos no corredor euro-asiático, fechar ou tomar as instalações militares russas, ao mesmo tempo que transforma as antigas repúblicas soviéticas (e, eventualmente, a Federação Russa) em protectorados americanos.

Torna-se claro, que a intenção de entrar para a NATO expressa por Putin no ano passado (2000) de uma forma repentina, reflectiu a ideia amadurecida há muito tempo de uma profunda (i.e. em relação às posições tomadas previamente por Gorbachev e Yeltsin) integração da Federação Russa na chamada “comunidade internacional”. De facto, a intenção é comprimir a Rússia para dentro do sistema económico, político e militar Ocidental. Mesmo como parceiro menor. Mesmo ao preço de sacrificar uma política externa independente. (44)

O texto acima é um excerto da última parte do Capítulo 5 de War and Globalization. A numeração das notas indicada abaixo é a mesma do capítulo 5 original do qual foi extraído o excerto.

Notas

25. Reuters, 5 de Fevereiro de 2000
26. Para mais pormenores ver Vago Muradian, “ Pentagon Sees Bridge to Europe”, Defence Daily, Vol.204,Nº40, Dez.01, 1999.
27. Ibidem
28. Vago Muradian, “Pentagon Sees Bridge to Europe”, Defence Daily, Vol.204, Nº40, Dez.(ver também a análise de Michel Collon em Poker Menteus, Editions EPO, Bruxelas,1998, p.156.)
29. Ver também análise de Michel Collon em Poker Menteur, Editions EPO, Bruxelas,1998, p.156
30. American Monsters, European Minnows: Defence Companies. The Economist, 13 de Janeiro de 1996
31. British Aerospace Systems, home page em http://www.BAESystems.com/globalfootprint/northamerica/northamerica.htm
32. BAES, EADS Hopeful That Bush Will Broaden Transatlantic Cooperation, Defence Daily International, 29, 2001
33. Interfax, 1 de Março de 2002
34. Ver The New York Times, 15 de Novembro de 1999; ver também o artigo de Steve Levine, The New York Times, 20 de Novembro de 1999.
35. Para consultar o documento ver Federation of American Scientists (FAS) http://www.faz.org/nuke/guide/russia/doctrine/gazeta012400.htm
36. Ibidem.
37. Joseph Jofi, Pipeline Diplomacy:The Clinton Administration's Fight for Baku-Ceyhan, Woodrow Wilson Case Study, Nº1 Princeton University, 1999
38. Mikhail Kozyrev, the White House Calls for the Fire Vedomosti, 1 de Novembro de 1999, p.1
39. Ver Andrew Jack, Russia Turns Back Clock, Financial Times, Londres, 15 de Janeiro de 2000.p.1
40. Citado por Nicolai Sokov em Russia's New National Security Concept; The Nuclear Angle, Centre for Non Proliferation Studies, Monterrey, http://.miis.edu/pubs/reports/sokov2.htm Janeiro de 2000
41. BBC, Russia Deploys New Nuclear Missiles, Londres, Dezembro de 1998
42. Stephen J. Blank, Nuclear Strategy and Nuclear Proliferation in Russian Commission to Assess the British Missile Threat to the United States, Appendix III:Unclassified Working Papers, Federation of American Scientists (FAS), http://www.fas.org/irp/threat/missile/rumsfeld/toc.3.htm . Washington DC, sem data
43. V.Tetekin, Putin's Ten Blows, Centre for Research on Globalisation (CRG) http://globalresearch.ca/articles/TET112A.html , 27 de Dezembro de 2001.
44. Ibidem.




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Traduzido por João Manuel Pinheiro


Este artigo encontra-se em http://resistir.info
30/Mar/03