O ALCA é um desastre,
adverte Prémio Nobel Alternativo

por María Teresa Peñaloza [*]


Manfred Max-Neef O Prémio Nobel Alternativo 1983, o economista chileno Manfred A. Max Neef, não é inimigo do mercado mas sim da imposição de regras do jogo nos acordos internacionais que seguem os ditames de uma religião: o Neoliberalismo que tem o seu próprio Vaticano — o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC).

«Como Vaticano que se preza, considera-se infalível, acha que sabe muito melhor do que nós o que é bom para a América Latina, e impõe a sua política em nome da nossa salvação», exprimiu o autor de "Economia Descalça", "Sociedade civil e cultura democrática" e "Desenvolvimento à Escala Humana", trabalhos pelos quais foi galardoado pelo Parlamento da Suécia com o Prémio Nobel Alternativo.

Este economista inspirado em Schumacher (o autor de "Small is Beautiful") participou no passado dia 18 de Novembro no Primeiro Congresso Internacional de Universidades para o Desenvolvimento Sustentável e o Meio Ambiente, programa promovido pela Universidade de Manizales (Colômbia), onde fez uma análise dos métodos do actual modelo económico dominante e das suas consequências. A entrevista que se segue foi efectuada pela editora de economia do jornal local.


UMA RELIGIÃO

Que incidência negativa teve o neoliberalismo no desenvolvimento da América Latina?

Percorrendo os países no mapa damo-nos conta de como estão. Vejamos o que se passa na Colômbia, Venezuela, Peru, Bolívia, Argentina (um dos casos mais dramáticos). São produto de um modelo económico em que os seres humanos são prescindíveis, em que a única coisa importante é o crescimento económico e o lucro fundamentalmente orientado para as grandes corporações transnacionais.

Qual deve ser a política económica que propenda para o desenvolvimento que se interesse pelo ser humano e que permita uma verdadeira redistribução da riqueza?

Uma política que não esqueça que a economia é para servir as pessoas e não as pessoas para servir a economia. Isto significa fortalecer os mercados internos, as pequenas, médias e microempresas que são as que nos nossos países proporcionam 80% do emprego, através de um processo vigoroso de apoio real e não meramente retórico e que os excedentes, se os houver, se lancem sem problemas num comércio livre internacional; mas pô-lo como prioridade na absurda suposição de que vai ser bom para todos e que amanhã seremos felizes se seguirmos a nova religião, simplesmente não funciona. E nesse sentido o discurso neoliberal, se se quiser realmente entender, deve-se analisar como um discurso religioso: é dogmático e simplista; tem a sua santíssima trindade: crescimento económico, comércio livre e globalização; tem o seu próprio Vaticano, que é o Fundo Monetário, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC) que, como Vaticano que se preze, é infalível, sabe muito melhor que nós o que é bom para nós e em nome da nossa salvação impõe-no; e os bons resultados são óbvios: o paraíso está sempre suficientemente longe para nunca podermos cobrar a conta.

Com este Vaticano, os países latino-americanos só vêem o inferno?

Vivem no inferno! Isto vê-se em toda a parte.

A EVIDÊNCIA

Refira-nos exemplos concretos.

Em matéria de rendimentos, se virmos a década de 60, a diferença entre o quintil [1] de maior rendimento a nível mundial e o quintil menor era de um para 30; hoje em dia é de um para 85, vê-se claramente uma verdadeira deterioração do rendimento. Três mil milhões de seres humanos vivem abaixo da linha da pobreza e da miséria; das 100 maiores economias do mundo, 54 são empresas e só 46 são países. Estamos a viver num mundo diferente, antes era de nações, hoje é de nações em plena decadência substituídas por grandes empresas transnacionais que são quem tem força para controlar política, económica e culturalmente, e em informação e meios de comunicação. O mundo que se nos descreve é o dos que têm o microfone na mão, que são eles.

Como quebrar esse jugo, se já sabemos as consequências de estar contra o FMI?

É a velha ideia de que somos incapazes na América Latina, que é resolver uma cooperação mais intensa, eficaz e séria entre nós mesmos, coisa que nunca conseguimos, nem sequer mediocremente. Inventámos instituições como o Convénio Andino, o ALCA e outros pactos, mas daí nunca surge nada concreto. Entretanto, vemos a Europa que teve em menos de um século três guerras e há uma União Europeia. O lógico é a colaboração entre os que estão em níveis relativamente parecidos, com problemas relativamente similares e com potenciais parecidos; mas num convénio entre um pigmeu e um gigante, não é difícil imaginar quem é que fica a ganhar.

O DESASTRE

O Acordo de Livre Comércio para as Américas (ALCA) seria destruidor para os países latino-americanos?

O ALCA é um desastre se for levado avante, e dou toda a razão à frase de Lula da Silva de que mais do que integração é uma apropriação, particularmente por parte dos Estados Unidos. O ALCA contem uma verdade oculta: que muitos dos políticos nem sequer sabem o que há por trás dos tratados de comércio livre.

Qual é a verdade oculta?

Basicamente é que os países que seguem as regras da OMC de facto renunciam à sua autonomia nacional. Dentro dos regulamentos da OMC, qualquer lei nacional que exista e resulte num problema para o comércio de qualquer grande empresa, o país tem de submeter as suas leis próprias nacionais aos interesses da empresa, por ordem da OMC. Isto sobrepõe-se a todos os esforços que os cidadãos de um país fizeram para obter qualquer facto digno para se superar. Se resultar que é um obstáculo para um livre investimento ou para um processo de comércio livre, o país tem de ajustar as suas leis a isso.

A América Latina está cega perante essa realidade?

Há uma coisa que é realmente insólita. Após a Ronda do Uruguai, quando se aprovou a criação da OMC, o documento que era de 700 páginas, ninguém o tinha lido. O Parlamento do Japão aprovou-o sem que existisse uma tradução para japonês. Nos Estados Unidos, nenhum dos membros do Congresso havia lido o documento. Um dos seus membros, do Partido Republicano, que o leu um mês depois de se ter adiado a votação, disse que ia votar a favor, mas depois de conhecê-lo votaria contra. Está a acontecer uma coisa de loucos. Garanto-lhe que nenhum dos nossos políticos vai ser a excepção. Estas são coisas que se aceitam e celebram, geram entusiasmo na base de declarações epidérmicas, sem ninguém ter ido ao fundo do assunto. Este é um caso patológico, é uma doença colectiva muito difícil de explicar.

Os governos são irresponsáveis quando dizem aos empresários que se não se prepararem para o ALCA morrerão porque vão ficar fora da negociação?

Isso são frases feitas. Mas os políticos que as dizem nem sequer leram os documentos da OMC, que aliás estão escritos de propósito da maneira mais complicada para que ninguém os entenda. Tem de se arranjar advogados muito especializados para os traduzirem, e mesmo assim se encontrarem algum exemplar, que é das coisas mais difíceis de conseguir. E esta é a religião do dogma que diz que o comércio livre é bom e quanto mais livre melhor e todos seremos felizes se nos lançarmos no comércio livre.

A América Latina está a correr para um abismo?

Já está no abismo. Se este tipo de processos nos levou à situação em que estamos, como pretender curar-nos mais com o mesmo remédio? Esclareço que não sou inimigo do comércio livre mas da forma como se pretende impô-lo, por cima dos interesses nacionais. É um processo antidemocrático. O neoliberalismo conseguiu em três décadas o que o cristianismo e o islão não conseguiram em dois mil anos, conquistar o mundo inteiro.

REFLEXÕES

«O caminho para a América Latina é tentar uma aliança entre todos, em lugar de procurar acordos sub-regionais. Nas condições actuais, tem de se estabelecer um acordo de toda a América Latina. É trágico dizê-lo, mas nós não levamos as coisas a sério, por isso qualquer um maior tenta logo impor-nos uma solução.» 

«Se as pessoas se ocupassem de averiguar o que aconteceu no México com o NAFTA, veria que cerca de 10 milhões de camponeses indígenas ficaram desprovidos de tudo. Estão a emigrar para as cidades à procura de um trabalho que não existe. Um país que era da cultura do milho, agora importa milho altamente subsidiado dos Estados Unidos, pois destruiu a sua própria produção».

19/Nov/02


[*] Editora de Economia do jornal "La Patria", de Manizales, Colômbia.

A entrevista em espanhol encontra-se em
http://www.moir.org.co/ALCA/Colombia/advierte_nobel_alternativo.htm .
Tradução de José Colaço Barreiros.


Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info
02/Dez/02