Violação dos direitos humanos e modelo neoliberal

por Gladys Marín M. [*]

Gladys Marín. A nova tentativa de solucionar por decreto o drama dos direitos humanos, manifestado na proposta da Unión Demócrata Independiente (UDI) e a declaração de oito ex-tenentes generais, mais uma vez voltou-se contra aqueles que apoiaram o golpe militar, pois a única coisa que se verificou foi um novo avanço da verdade histórica. Neste caso, as revelações que vieram à luz acerca das exumações de corpos de detidos desaparecidos entre 1978 e 1989 não fazem senão revelar a natureza política de Estado que esteve na origem das condutas criminais dos seus agentes.

Alguns, alvoroçados, celebram estas manifestações como um passo em direcção à reconciliação, em circunstâncias nas quais só se limitam a reconhecer aquilo que todo o mundo sabe e que sofremos na própria carne desde o primeiro dia, e que além disso está a ser comprovado dia a dia no plano judicial.

Que avanço há nisso? E o que significaria o seu contrário?

O facto de que hoje apareçam reconhecendo o que o peso dos factos lhes impede de continuar a negar não faz senão desnudar a falsidade e a covardia da atitude que mantiveram até agora. Não só mataram como mentiram e enganaram ao longo de todos estes anos.

Mas agora que a verdade histórica aflorou de maneira insofismável, faz-se necessário esclarecer conexões e consequências.

Há um aspecto que passou quase desapercebido nesta polémica, mas que no nosso entender apresenta uma inter-relação absoluta. Nós sempre sustentamos que assim como o Golpe Militar de 1973 não foi um facto abstracto nem foi produto "da espiral de violência" da qual "todos fomos responsáveis", a violação dos direitos humanos tão pouco obedeceu só à patologia criminal dos seus autores directos.

Afirmarmos que há uma correlação indissociável entre a violação dos direitos humanos e a implantação a sangue e fogo do actual modelo socio-económico vigente, isto é, o sistema neoliberal. Mais ainda: postulamos que a violação dos direitos humanos foi uma condição necessária para a implantação do modelo, caracterizado por níveis de desigualdade inéditos e sofrimento social, escandalosa distribuição regressiva do rendimento nacional e uma inusitada concentração da riqueza e da propriedade dos meios de produção, cujas bases essenciais permanecem inalteradas ao fim de três governos da Concertação.

Um exemplo recente das orientações básicas do modelo está na aprovação do aumento em 1% do IVA, com o pretexto de financiar programas sociais. Ou seja, assiste-se ao absurdo de que as políticas assistenciais do governo financiam-se com o castigo ao consumo dos destinatários dessas políticas, ao invés de corrigirem as injustiças da distribuição regressiva do rendimento financiando esses programas sociais com um royalty às exportações da grande mineração do cobre, ou por meio de um IVA diferenciado com taxa elevada para artigos suntuários ou reduzindo a despesa militar, a mais elevada da América Latina.

Se fosse aplicado um royalty às exportações da grande mineração privada do cobre obter-se-ia pelo menos 300 milhões de dólares por ano, folgadamente suficientes para financiar a despesa social solicitada pelo governo. Mas este prefere meter a mão no bolso das pessoas, com a agravante de que isso ocorre num país que ostenta um dos maiores índices de desigualdade do mundo na distribuição do rendimento nacional.

No último relatório do Programa de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, divulgado apenas há uns poucos dias, verifica-se que o Chile é o segundo país com a pior distribuição na América Latina, atrás do Brasil.

O Chile ostenta o duvidoso privilégio de figurar como o novo país do mundo com a pior desigualdade na distribuição do rendimento, superado apenas pela África do Sul, Brasil, Paraguai, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Botswana e Swazilândia, nessa mesma ordem.

Na rubrica Desigualdade do Rendimento, o mesmo relatório do PNUD estabelece que no ano 2000 os 10% mais pobres tiveram uma participação de 1,1% no rendimento ou consumo, ao passo que os 10% mais ricos tiveram uma participação de 34,6% no mesmo. Se estes indicador for medido por quintís de rendimento, temos que os 20% mais pobres tiveram uma participação de 3,2% no rendimento ou consumo, ao passo que os 20% mais ricos tiveram uma participação de 61,3% no rendimento.

Os números do relatório de Caracterización Socioeconómica Nacional (CASEN), do ano 2000, elaborado pelo Ministério da Planificação Nacional, são consistentes com o relatório do PNUD, pois demonstram que os 10% da população com maiores recursos concentram 42,3% dos rendimentos, e que recebe os mesmo que os oito primeiros decís, isto é, ganha o equivalente à soma dos rendimentos de 80% da população. A diferença entre os dois decís extremos, ou seja, os 10% mais e os 10% mais pobres, aumentou de 30,14 vezes em 1990 para 38 vezes no ano 2000.

Os guardiões do dogma neoliberal afirmam que o "jorro" do crescimento é o único factor de redistribuição de recursos e a única via para terminar com a pobreza. Mas a realidade mostra que a única coisa que conseguiram foi elevar os 30% da população abaixo da linha de pobreza na década de 70 para os 40% no ano de 1990.

A soma do desemprego e do emprego informal desagua num número próximo aos dois milhões de pessoas excluídas do mercado de trabalho. Se se considerar o seu grupo familiar, uma média de 4,4 pessoas por família, segundo números do INE, verifica-se que o sistema condena à pobreza cerca de oito milhões de chilenos, ou mais de nove, se se incluírem os cerca de 500 mil trabalhadores que ganham o salário mínimo.

A ofensiva para "flexibilizar" o mercado de trabalho agora em voga, sob o pretexto do "crescimento", submete o sector assalariado a graus de exploração crescentes, com salários miseráveis e jornadas cada vez mais prolongadas, muitas vezes sem contratos nem leis sociais, sob permanente ameaça de despedimentos e instabilidade laboral. Suas organizações sindicais são perseguidas e é-lhes impedido o direito de greve real.

A outra cara da medalha é a extraordinária concentração dos meios de produção e a transnacionalização da economia chilena. Além da grande mineração do cobre, na actualidade a presença do capital transnacional é majoritária e extraordinariamente concentrada em sectores vitais da economia do país, como a banca, a previdência e os seguros, a actividade agroexportadora e a indústria salmoneira, a electricidade, o gás e as telecomunicações, os serviços sanitários e a infra-estrutura viária, portos e aeroportos. Agora que a verdade histórica acerca da génese do golpe militar de 1973 e a violação do direitos humanos ficou estabelecida, não devemos passar por alto que a sua finalidade última era instalar um modelo socio-económico injusto, excludente e estruturalmente desigual, como esta resumida síntese de números e estatísticas contribui para demonstrar.

30/Jul/03

[*] Presidenta do Partido Comunista do Chile.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
04/Ago/03