Multilateralismo: Apenas uma questão económica?

Andrés Piqueras [*]

O desenvolvimento desenvolve a desigualdade, Eduardo Galeano.

Ultimamente, tem-se falado muito da possibilidade de substituir o dólar e, assim, começar a derrubar os EUA da sua posição hegemónica global. Vou, por isso, apresentar algumas considerações que retiro do que o meu amigo e professor Wim Dierckxsens escreveu pouco antes da sua morte, bem como outras que desenvolvemos em conjunto sobre este tema. Obviamente, estou a actualizá-las para o momento presente.


A UE está a ver como o aumento do custo da energia em resultado da crise que a NATO criou na Ucrânia a está a afetar diretamente, especialmente porque está a perder um mercado significativo como a Rússia para os seus próprios produtos de exportação. A “guerra económica” contra a China desencadeada por Washington, e especialmente pela Administração Trump, também a está a ferir, uma vez que a economia real da UE está integrada nos mercados chineses e não pode facilmente desvincular-se deles, longe disso. Além disso, no novo contexto criado pela NATO, a UE é obrigada a comprar gás e bens militares caros aos EUA. A instabilidade económica que esta política está a causar à UE fará com que, a muito curto prazo, a NATO (e especialmente o Eixo Anglo-Saxónico – EUA+Reino Unido) se torne uma ameaça maior para a UE do que a Rússia-OCS (Organização de Cooperação de Xangai).

Assim, a UE tem de procurar formas de obter mais petróleo da Ásia Central ou de outros locais, mas a OPEP+ declarou, de um modo geral, que não pretende aumentar a sua quota com as formações do Império Ocidental. Por seu lado, a Rússia foi rapidamente forçada a criar um mecanismo segundo o qual as entidades estatais que lhe são hostis teriam de lhe comprar gás e petróleo em rublos e, gradualmente, todas as matérias-primas estratégicas (a partir de 1 de abril de 2022, as entidades hostis à Rússia, a UE em primeiro lugar, teriam de pagar o gás russo apenas em rublos). O G7, depois de ter tentado recusar, não conseguiu manter a sua posição e os industriais alemães, do Ruhr à Baviera, organizaram uma revolta para poderem abrir contas bancárias em rublos para comprar gás russo, actualidad.rt.com/actualidad/430461-reuters-alemania-italia-permitir-abrir-cuentas-rublos). Além disso, a taxa de câmbio das suas moedas não está à mercê dos “jogos de mercado” internacionais, mas a soma é paga em moeda estrangeira – por exemplo, em euros – equivalente ao preço atual do ouro em rublos. Aliás, isto significa também que o rublo deixou de ser uma moeda fiduciária (sem suporte económico e/ou energético real), como o dólar.

Figura 1.

Desde então, a moeda russa fortaleceu-se (Figura 1) e, pela primeira vez neste tipo de guerra económica, as sanções contra ela prejudicaram mais os sancionadores.

Esta situação é largamente favorecida pelo facto de a Rússia ter uma balança comercial positiva, principalmente por ser tão rica em recursos primários. Com um fundo de energia deste género, é muito difícil vencer desta forma. De facto, não é possível, a médio prazo, substituir a energia russa, uma vez que a economia mundial depende das suas exportações, especialmente, mas não só, de petróleo, carvão e gás natural. Veja-se a Figura 2 para o caso do gás, por exemplo.

Em 2020, 41% das exportações mundiais de gás natural provinham da Rússia (Figura 2). O gás natural é também particularmente importante para “equilibrar” os fornecimentos de eletricidade eólica e solar, sem o que não existiria uma plataforma fundamental de “estabilidade” à qual as outras fontes podem depois ser acopladas ou interligadas. A Europa absorve quase 45% das importações mundiais de gás natural.

Figura 2.

Com o aumento da procura de ouro para pagar a energia russa, o preço do ouro está a subir e, com ele, a procura de ouro. Para cobrir esta procura, os países da NATO entregam normalmente, em vez de ouro físico, contratos de entrega para o futuro (papel); contratos que a Rússia, em particular, já não aceita. A disparidade entre a quantidade de ouro físico que existe e a quantidade de metal vendido sob a forma de “papel” é gigantesca, pelo que cada vez mais o que é vendido e comprado como “ouro” é fictício (“gold pledges”). Este facto, por sua vez, motiva aqueles que têm promessas de ouro a começar a fazerem lobbying para receber o metal. As entregas falham e os seguros (derivados) não conseguem cobrir “adequadamente” o que é exigido. Isto estabelece a tendência para uma maior pressão ascendente sobre o preço do ouro físico.

Isto só enfraquece ainda mais o petrodólar-NATO.

De facto, a fé no dólar como moeda fiduciária e fictícia é hoje basicamente sustentada pelo poder militar dos EUA, incluindo a NATO.

É por isso que é tão decisivo para os EUA-NATO não perderem a sua guerra contra a Rússia através da Ucrânia, pois caso contrário, para além das consequências geoestratégicas muito negativas, o sistema do petrodólar poderia sofrer um duro golpe ao ser derrotado também no campo de batalha.

Mas uma nova moeda ou um conjunto de moedas que substitua o domínio internacional do dólar tem necessariamente de ser apoiada pelas matérias-primas e recursos naturais cada vez mais escassos que restam, como aconteceu até 1971, quando o dólar-ouro dos EUA entrou em colapso e o lugar do ouro foi ocupado pela NATO, ou seja, dólar-NATO/petróleo-saudita.

O FACTOR DE MUDANÇA...

Para já, temos que, com a ligação do rublo à energia, o valor do rublo subiu imediatamente. Isto também significou que, a partir de agora, países como a Alemanha tiveram de comprar rublos com euros ou entregar bens tangíveis (como carros) em troca de petróleo.

Perante as sanções da NATO, o rublo-petróleo (e as moedas apoiadas em matérias-primas em geral, incluindo o ouro) parece ter subido em vez de descer. Isto contrasta agora com a falta de ancoragem material do dólar e de outras moedas imperiais ocidentais.

A confiança nelas está a diminuir, enquanto um número crescente de acordos comerciais está a ser implementado entre formações sócio-estatais outrora “periféricas” do sistema mundial capitalista, mas que estão em vias de o reconfigurar de tal forma que as velhas chaves do sistema começam a esbater-se.

Há já algum tempo que assistimos a uma escalada de desenvolvimentos sincronizados que alteram o jogo do domínio mundial do dólar, ou seja, dos EUA. A rúpia-rublo com a Índia, o petro-yuan com a Arábia Saudita e o Irão, os cartões Mir-Union Pay emitidos pelos bancos da Rússia, os acordos Rússia-Irão com um SWIFT alternativo, o projeto de União Económica Eurásia-China para um sistema monetário/financeiro independente... Torna-se claro que 13% do planeta, basicamente anglo-saxónico, já não pode impor tão facilmente o seu domínio aos outros 87% do mundo.

Esta pode ser uma das versões daquilo a que chamam “multipolaridade”.

... E A CHINA

Multipolaridade que se torna mais palpável a todos os níveis quando o gigante dragão asiático é incorporado nas coordenadas. A vantagem da China a este respeito não reside apenas no seu dinamismo económico, mas também no facto de, juntamente com a Rússia, ser o principal produtor e comprador de ouro. A China e a Rússia acumularam reservas gigantescas que sustentam o yuan – e o rublo.

Em 26 de março de 2018, a China tomou a decisão de lançar o sistema de troca petro-yuan-ouro na Bolsa Internacional de Energia e, em maio, o sistema de troca metal-yuan-ouro. Este sistema está destinado a subverter o sistema monetário internacional. A China propõe-se trocar os yuanes recebidos por ouro, não só contra a entrega de petróleo, mas também na compra de metais. A Bolsa de Valores de Hong Kong também emitirá contratos de futuros em yuan sobre petróleo e metais derivados que serão convertíveis em ouro. Os exportadores de petróleo poderão mesmo levantar esses certificados de ouro fora da China, ou seja, o petro-yuan estará disponível para pagamento mesmo nos chamados “Bullion Banks” em Londres.

A fixação do preço do petróleo em yuan - juntamente com o plano da Bolsa de Valores de Hong Kong de vender contratos físicos de ouro com preços em yuan - criou um sistema através do qual a China poderá contornar o sistema bancário dos EUA e não só o sistema global de pagamentos interbancários baseado no dólar (Swift), mas também todo o sistema de Bretton Woods. Além disso, não são apenas o petróleo, o gás e os metais que estão a entrar nesta nova situação global, mas também outras mercadorias que em breve o poderão fazer. É de esperar, portanto, que a China se desfaça progressivamente das obrigações do Tesouro dos Estados Unidos em troca de dólares e que, por sua vez, troque esses dólares por yuan.

Mas, para evitar o que aconteceu ao dólar no início dos anos 70, quando os EUA tiveram de abandonar o padrão-ouro, é de esperar que a China introduza gradualmente o yuan como moeda de troca (mercadoria por mercadoria), a fim de manter ouro suficiente como reserva. Além disso, a estratégia China-Multipolar não consiste em atacar frontalmente o sistema dos petrodólares, mas sim em fazer com que o yuan ocupe um espaço suficiente para poder funcionar com soberania, a fim de construir um mundo multipolar de moedas, qualquer coisa como um saco único de moedas cujo peso respetivo é função da realidade produtiva e energética que lhe está subjacente [John Ross explicou de forma convincente, na minha opinião, por mais que se discutam alguns pontos, porque é que a desdolarização não pode ser feita da forma simples e acelerada que muitos apregoam ( Qual é a estratégia realista para a desdolarização ? John Ross). O artigo de Vijay Prashad (Está o reinado do dólar a chegar ao seu fim? Vijay Prashad.)].

Mas o que mais impressiona neste momento é que a China parece ter colocado todos os seus esforços para ganhar força na arena mundial no plano económico e comercial, como se ignorasse o facto de as chaves económicas também se jogarem na arena militar.

Talvez as raízes desta situação possam ser encontradas no lançamento por Zhou Enlai, em 1975, das Quatro Modernizações (que se tornaram o programa oficial do PCC em 1978), para tornar claro que, uma vez que a China estava ainda na fase primária do socialismo, o desenvolvimento económico vinha antes da luta de classes. Uma ideologia que Jiang Zemin parece ter reafirmado no seu relatório ao 15º Congresso do PCC, em 1997, insistindo que “o desenvolvimento é o princípio absoluto, a chave para a solução de todos os problemas da China” (recomendo que sigam o polémico texto sobre a transição da China para o socialismo a partir do interior, onde se reflectem muitas destas orientações programáticas: Será marxista o socialismo com caraterísticas chinesas?)

É verdade que a carência de internacionalismo proletário é proverbial e histórica no caso chinês, mas no ponto a que chegou neste momento a luta pelo poder económico-militar e pelo controlo global do mundo (com o grande buraco de barbárie que o império anglo-saxónico-sionista-otomano está a imprimir na Ásia Ocidental, e um Irão cada vez mais assediado e em perigo) mais a reestruturação direitista-fascista do continente americano e a peça-chave de Cuba em perigo mortal, para além das desestabilizações permanentes em torno de uma Rússia enfraquecida após o golpe na Síria, e cuja, correta ou não,queda de prestígio como aliado pode afetar também o tabuleiro estratégico africano), não permitirá à China continuar a descurar a vertente militar nem o apoio estratégico a formações socio-estatais, se quiser realmente ter não só um papel de relevo, mas a possibilidade de se manter à tona no pântano mortífero no qual a humanidade se despenha entre a barbárie do capitalismo degenerado (com o seu comando EUA-NATO-sionista) e as possibilidades de enveredar por caminhos de um mundo alternativo, por vias não só pós-capitalistas como decididamente socialista.

Mas para isso teremos de ir além do “multipolarismo” [onde até o capitalismo selvagem de formações estatais como a Arábia Saudita, a Índia, o Egito ou os Emirados Árabes tem lugar, tal como o oportunismo mais ou menos corrupto do Brasil – falaremos da África do Sul noutra ocasião – o que significa que enquanto estes actores estatais jogam as cartas monetárias e comerciais com a China com uma mão, podem apoiar ativa ou passivamente as estratégias de guerra dos EUA com a outra, e os primeiros apoiam mesmo diretamente o seu braço sionista (ver, por exemplo, sobre os possíveis paradoxos da “multipolaridade” observatoriodetrabajadores.wordpress.com/2024/12/16/oportunismo-turco-y-multipolaridad-en-siria-joseph-jordan/). E tal como as principais formações atacadas e cercadas estão a ter de recorrer a formas de capitalismo de Estado que controlam os seus próprios recursos e planeiam a economia de forma egocêntrica – tendendo, por força das circunstâncias, para uma “economia de guerra” –, também a China, mais cedo ou mais tarde, para sobreviver, terá de ligar a sua ambicionada transição para o socialismo, por mais “original” e “à chinesa” que seja, a um verdadeiro internacionalismo que construa e viabilize o socialismo a uma escala mais vasta. Assim, o “múltiplo” transforma-se gradualmente em “alternativa”.

A Rússia, que também já teve de lidar com a versão mais militar do confronto, não pode dar-se ao luxo de perder mais aliados nem de continuar a permanecer indecisa (deshojando la margarita) quanto à sua reconciliação com o eixo anglo-saxónico-sionista. Este último nunca deixará de tentar dilacerá-la e transformá-la numa entidade subserviente. Deve impedir que a sua fação interna pró-ocidental continue a prejudicar a sua credibilidade e a permitir-se ser atacada de forma terrorista no seu próprio território (como hoje, com o assassinato do chefe das forças de defesa radiológica, química e biológica do exército russo, Igor Kirillov, e do seu assistente).

A cada dia que passa, bem como no futuro imediato, estarão em causa as possibilidades de tudo o que aqui foi mencionado. E aquele que erra de estratégia ou não consegue avaliar as múltiplas dimensões – com os seus aliados e adversários em cada uma delas – da Guerra Total que está a ser travada, terá perdido. Não há mais espaço para erros.

17/Dezembro/2024

[*] Professor da Universidade Jaume I, Valência

O original encontra-se em andrespiqueras.com/2024/12/17/el-multilateralismo-solo-una-cuestion-economica/

Este artigo encontra-se em resistir.info

23/Dez/24

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