por Leonardo Silva Andrada
"É preciso que algo mude, para que tudo fique como está"
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, Il Gattopardo
A CPI
[1]
das vacinas escancara um motivo
concreto para a fissura interna do bloco
no poder, quando traz ao sol a disputa entre dois grupos no Ministério
da Saúde. Deixa a descoberto a verdadeira razão para que tantas
notícias de corrupção e desvio venham a conhecimento
público. Não parece razoável acreditar em surtos
republicanos vindos dos envolvidos, que numa manhã deste inverno frio
tenham despertado incomodados com o mau trato do bem público; ou mesmo
que se refira a uma oposição coerente ao projeto bolsonarista,
capitaneada por figuras como o presidente e o relator da CPI, além de
outros membros destacados no desgaste do governo, fustigando depoentes. Sejam
os senadores membros da Comissão, sejam os deputados que apresentam
denúncias ou empresários e outros personagens que forneçam
relatos comprometedores, estamos diante de agentes que jamais tiveram qualquer
simpatia pelo campo político popular, atuaram para que esse governo
fosse eleito e serviram como base de apoio até muito recentemente.
O que esse teatro institucional desvela, uma vez mais, é a
movimentação dos verdadeiros portadores do poder para recolocar
os cachorros no canil, como foi necessário na segunda metade da ditadura
civil-militar. É a história se repetindo de forma farsesca, como
diz a frase já reconhecida até pelo gramado
[2]
da Praça dos
Três Poderes. Sempre que as margens de acumulação do
capital dependem de políticas excessivamente antipopulares, a burguesia
recorre a soluções truculentas para impor um programa
econômico que atenda aos seus interesses. Em 1964 precisaram dos
militares para dar um golpe de Estado, arrebentar as organizações
autônomas da classe trabalhadora e impor uma política
econômica recessiva, que incluía arrocho salarial e ilegalidade
das greves, visando a incorporação do capitalismo brasileiro ao
circuito monopolista e financeiro internacional. O sucesso da estratégia
se revelou no "milagre" que promoveu ao mesmo tempo
concentração, recordes de crescimento junto com rebaixamento
acelerado da renda
[3]
do trabalhador mas ao mesmo tempo acionou mecanismos
que levaram ao desmantelamento da ditadura.
Com o desenvolvimento acelerado (e dependente) do capitalismo brasileiro, houve
adensamento e diferenciação das classes trabalhadoras urbanas,
que, excluídas do processo político, impulsionaram a
contestação, a oposição e o protesto. A
decisão histórica pelo fechamento do regime em 1968, por um lado
debelou (pela repressão violenta, a tortura, o assassinato) a
oposição que se avolumava. Por outro, hipertrofiou o
"Sistema", os agentes da burocracia de origem militar que operavam o
andamento do regime, o que acabou deslocando as lideranças do IPES que
articularam o golpe e garantiam a representação dos interesses
das frações burguesas.
Os setores ligados ao imperialismo tampouco viam com bons olhos esse processo,
receando que um regime excessivamente militarizado, e que parecia escapar do
controle burguês, pudesse adquirir feições nacionalizantes
de fato, deixando de ser mera propaganda ideológica. Ao deslocar
industriais, banqueiros e seus empregados dos postos chave para decisões
que tocavam interesses gerais e específicos, representaram ameaça
ao controle do Estado por seus efetivos donatários. Perderam
espaço na definição da política econômica, o
que atingia o interesse agregado da classe e nas decisões relacionadas a
obras e programas estatais, o que impedia o saque aos recursos públicos
que sempre contribuiu em larga medida para o financiamento do capitalismo
nativo. O crescimento em volume e força do setor militar, no bloco no
poder durante a ditadura civil-militar, foi seu canto do cisne como chefia do
Executivo Federal. Ao deslocar os representantes do verdadeiro poder, estes se
sentiram ameaçados e começaram a abandonar o barco da ditadura,
ao mesmo tempo em que promoviam a articulação da distensão
e da abertura, para controlar o processo de instauração de uma
democracia tutelada.
O movimento de abandono do bolsonarismo por parte dos setores burgueses, que
vem do começo da pandemia e se torna cada vez mais claro e audacioso,
tem características muito semelhantes à dissolução
controlada da ditadura civil-militar, e agora parece que temos à
disposição os elementos concretos para identificar que as
motivações igualmente não estão muito distantes. A
comprovada incompetência de Paulo Guedes para cumprir seu papel de agente
do sistema financeiro, como artífice das reformas encomendadas,
representa a frustração com relação à
orientação macroeconômica que atenderia à classe.
Para completar a insatisfação com o governo, a arraia
miúda do Congresso, que tem na drenagem do erário sua
razão de ser, perdeu postos de controle de recursos para militares da
cota do presidente, ávidos para se aproveitar da chance dourada. A cada
depoimento convenientemente vazado para a imprensa, somos informados de
disputas entre as gangues pelo controle de verbas e nomeações,
que compõem a musculatura do corpo legislativo.
O ritmo lento, gradual e seguro associado à ausência de
oposição aberta e decidida pela burguesia ao final da ditadura,
nas condições atuais de democracia formal se reformulam na
estratégia do sangramento com vistas à anulação
eleitoral, sem contudo colocar o impeachment como resposta urgente, por seus
efeitos de instabilidade e imprevisibilidade. Se, para a burguesia da segunda
metade da ditadura, o regime era um mal menor, para a atual, tolerar Bolsonaro
corresponde ao dique que impede a possibilidade de uma reação
popular que escape ao controle. Da última vez que colocaram essas
engrenagens para funcionar, ao invés do pretendido tucano, elegeram esse
boquirroto com pouca inteligência além de um destacado
talento para criar confusão, o que chama indesejada
atenção para negócios que dependem das sombras.
As alternâncias na intensidade das respostas às reiteradas
provocações do agitador fascista são bons indicadores de
como as forças responsáveis pela renovação da via
prussiana à brasileira se esforçam para evitar a
imprevisibilidade e a instabilidade de um processo de impeachment. As
corporações de mídia, termômetro dos humores do
capital, já apresentaram seus editoriais em favor do afastamento, mas
sua campanha permanente de desidratação não se equipara ao
serviço prestado em 1992 e 2016. Lideranças e figuras
proeminentes do empresariado já assinaram mais de um manifesto com teor
político opositor ao governo, mas não cruzam a linha da
estabilidade; um funcionário do império, representante da
agência de inteligência por trás dos golpes de Estado na
América Latina, assegura que o Brasil é uma democracia robusta
com instituições em pleno funcionamento. O Legislativo é
mantido inerte a peso de ouro, com emendas e "orçamento
paralelo" garantindo a manutenção dos mais de 150 pedidos de
impedimento ausentes da ordem do dia, apesar do faroeste espaguete da CPI, cuja
produção é mobilizada para a tática de
desidratação lenta. O Judiciário, tornado alvo
preferencial após o acerto com o lumpenlegislativo que garantiu o
armistício com o Congresso, ensaia um rosnado, que vem a público
como miado. Ainda que a intensificação dos ataques à
Suprema Corte e a menção vulgar a dois ministros em particular
tenha ensejado resposta conjunta (à exceção do nomeado
pelo presidente), a reação se concretiza através de
inquéritos que devem acompanhar o mesmo ritmo modorrento da sangria a
conta gotas.
As expressões de poder da burguesia, suas figuras públicas, seus
canais de comunicação e seus representantes institucionais, atuam
de forma concertada, no lento compasso que sempre garantiu o controle dos
processos pelo alto, garantindo a renovação da autocracia
burguesa. Dos agentes tradicionalmente responsáveis pela mudança
que mantém as coisas como sempre foram, não surpreende essa
prevenção contra abalos à estabilidade. A nota
trágica é que forças com peso no campo democrático
popular atuam de forma semelhante, desmobilizando e se esforçando para
frear a luta de classes, na cadência ditada pelo calendário
eleitoral. Aparentemente o ator continua preferindo se submeter ao
império dos fatos, ainda que as lições da história
apontem para fatos que anulam e trituram esse mesmo ator.
O ocaso da ditadura resultou em uma transição inconclusa e uma
democracia tutelada, que escorada na institucionalidade constitucional
preservou a autocracia burguesa, como pretendiam os responsáveis pela
condução do processo ao controlar suas etapas. A
atualização da via prussiana à brasileira na
regência do nosso processo histórico tem o peso da
tradição e da consolidação em toda nossa
construção como Nação, e só será
possível escapar a essa repetição quase impositiva,
contrapondo uma força social com a potência necessária para
tal tarefa. Para que o desfecho do processo que vivenciamos em 2021 não
reproduza de forma picaresca o que tivemos em 85 e 88, é preciso
adicionar o elemento que faltou àquela quadra histórica: a
intervenção decidida das classes trabalhadoras, articuladas em um
projeto político autônomo e que corresponda a seus interesses.
Façamos nós, por nossas mãos, tudo que a nós nos
diz respeito.
07/Agosto/2021
NR
[1] CPI: Comissão Parlamentar de Inquérito
[2] Gramado: relvado
[3] Renda: rendimento
O original encontra-se em
pcb.org.br/portal2/27674/cpi-impeachment-e-via-prussiana-a-brasileira/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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