A universidade brasileira sem reforma e o seu atraso renovado
por Henrique Júdice Magalhães
[*]
1
A América Latina, em geral, e a Argentina, em particular, comemoram, em
2018, o centenário da rebelião estudantil que, com epicentro na
Universidade de Córdoba, levou à
reforma universitária
naquele país e abalou o cenário acadêmico do continente.
Os estudantes cordobeses padeciam, em 1918, o domínio de sua
universidade pela Corda Frates, que manipulava a designação de
dirigentes e professores no interesse pessoal de seus membros e na
conveniência ideológica do obscurantismo clerical. A esse problema
particular, deram soluções universais: admissão de
professores por concurso com participação discente; liberdade
para qualquer pessoa dar cursos em sua área de conhecimento;
representação paritária de professores, estudantes e
egressos nas deliberações internas; ensino baseado na
crítica; interação com o extramuros. Conquistas que
mudaram as universidades argentinas e de outras nações onde o
movimento teve eco (México, Peru, Cuba) e se fazem, ainda hoje, ausentes
no Brasil.
Porém, o mais importante efeito da rebelião dividia seus
participantes e só veio a se concretizar plena e oficialmente em 1953: o
fim do vestibular.
2
De início, o acesso à educação superior dependia
lá e aqui de um exame de suficiência: entravam todos
os que atingissem uma nota previamente definida. Mas a falta de
transparência sobre conteúdos e critérios tolhia o acesso
das classes não privilegiadas.
Nos anos 20, quando as universidades argentinas, sob o impulso democratizante
de 18, se abrem aos setores sociais remediados, o Estado oligárquico
brasileiro autoriza suas escolas superiores (universidade, só havia a
atual UFRJ) a limitar vagas. Nos 50, quando isso se torna um problema social no
Brasil, a Argentina extingue o vestibular e fixa como único requisito de
acesso ao ensino superior o diploma secundário.
3
"Fomos aprovados, queremos estudar" era a palavra de ordem de um dos
pontos altos do movimento estudantil brasileiro: a tomada da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da USP (1968). Pouco antes (1961-64), uma
das reformas de base reivindicadas com a simpatia do governo
João Goulart
era a universitária.
O contínuo crescimento do número de jovens que obtinham a nota de
aprovação no vestibular, mas não as poucas vagas (os ditos
"excedentes"), tornara a democratização do acesso ao
curso superior uma bandeira estudantil com forte respaldo social.
Duas contrarreformas a frustraram, consolidando e aprofundando o afastamento
entre a universidade pública e o povo e sujeitando o ensino superior
brasileiro a uma mistura única no mundo entre clientelismo e
acumulação de capital. Uma foi promovida pela ditadura de 1964; a
outra, pelo PT. Graças a elas, só temos a "comemorar",
hoje, a renovação dos vícios de um sistema
universitário que reflete e realimenta os desta sociedade.
4
Uma contrarreforma dá ao problema gerador da reivindicação
de reforma uma resposta capaz de preservar os interesses que esta atingiria.
Modifica estruturas para que sigam atendendo, com mais eficácia, aos
mesmos fins. Tal se deu aqui nos anos 60/70 com o acesso das classes
médias ao ensino superior e nos 2000/2010 com o das classes populares.
5
A ditadura de 64 e as agências de inteligência dos EUA sabiam do
potencial explosivo da questão dos excedentes e que não a
contornariam só com repressão nem podiam depender de uma
estrutura universitária incapaz de formar a quantidade de profissionais
necessária a uma economia urbana em expansão e ao próprio
Estado.
Mas temiam abrir a universidade pública às massas quando os
estudantes organizados dentro dela ou pela reivindicação de nela
entrar compunham, junto aos operários que reerguiam a fronte em
Contagem, Osasco e Cabo de Santo Agostinho, a vanguarda política do povo
brasileiro (em 1969, na Argentina, a aliança operário-estudantil
enterrou, com o
Cordobazo,
outra ditadura).
6
Ao mesmo tempo, criaram-se novas universidades estatais, sobretudo no interior;
ampliaram-se vagas nas já existentes, com novos cursos; e abriram-se
cursos superiores nas escolas técnicas federais, também em
expansão. O desvirtuamento dessas ações (positivas em
princípio) pela concepção ideológica
congênita às novas instituições, sobre as quais o
dispositivo burocrático do poder central e as oligarquias locais
exerciam um controle bem maior que sobre as preexistentes, era o problema
menor, embora grave.
Muito pior foi o gordo subsídio ao ensino superior privado, que absorveu
muito mais matrículas que o estatal. Com isso, escoaram-se
milhões de jovens para escolas sem organização discente,
reduzindo-se a base social do movimento estudantil e a pressão sobre o
Estado. E azeitaram-se as relações da facção que o
geria com os donos delas (igrejas, sobretudo a católica; esquemas
políticos regionais; e meia dúzia de capitalistas típicos).
À questão social da escassez de vagas, ofereceram-se penosas
soluções individuais: obter bolsas também
pré-limitadas, encarando colegas, sobretudo os da mesma origem social,
como concorrentes; endividar-se; usar o salário para pagar mensalidades,
etc.
Não é acidental que se tenha dado a essas escolas, para ministrar
uma formação em geral restrita, dinheiro capaz de custear
número maior de vagas nas públicas. A formação dos
quadros dirigentes e funcionários mais graduados do Estado e das
empresas manteve-se em poucas instituições, cabendo às
demais formar mão-de-obra em ambiente despolitizado e devolver aos
artífices dessa política parcela do dinheiro que eles fazem
jorrar para elas.
7
O tópico 6 descreve também a ação do PT em seu
ciclo de gerenciamento do Estado (2003-16), que se completa com
financeirização e formação de monopólios no
sistema privado e reserva de cotas para estratos sociais não
privilegiados.
8
Em 12/04/2004, na
Folha de São Paulo,
Marta Salomon e Luciana Constantino mostraram ser possível duplicar as
vagas das universidades federais com os impostos e contribuições
que as particulares "filantrópicas" não pagam.
Em 16/05, no mesmo jornal, o então ministro da Educação,
Tarso Genro, e seu então adjunto e logo sucessor,
Fernando Haddad
(FH-2), responderam que a ideia de que o ensino privado seja mantido por quem o
usa, e não por toda a população via Estado, é
neoliberal e elevaria mensalidades. Em defesa do subsídio às
"instituições educacionais de assistência
social", base do
ProUni
, alegaram que "a desoneração tributária do
pão não favorece o padeiro, mas quem tem fome". (Em 2013,
quando caía a carga fiscal das empresas de ônibus e subiam as
passagens, Tarso, então governador do RS, e FH-2, prefeito de São
Paulo e associado para tal fim ao então governador Geraldo Alckmin,
responderam via PM [Polícia Militar] com balas de borracha, cassetetes e
gás
lacrimogêneo aos jovens trabalhadores e estudantes que questionavam a
aparente incoerência).
9
Nos anos 50, o embate sobre entrega de recursos públicos a escolas
privadas opusera Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira a Carlos Lacerda. O PT
optou por Lacerda. E fez pior.
O dispositivo da lei de educação de 1961 que permitiu isso
obrigava os destinatários dessas verbas a ter gratuitamente alunos
pobres "no valor correspondente ao recebido". A de 1971 dispôs
que a subvenção se daria quando custasse menos que abrir escolas
públicas. E, no auge ideológico do privatismo (1998),
condicionou-se a imunidade fiscal das
pilantrópicas
[1]
à reversão de no mínimo 20% de seu faturamento total
à gratuidade e limitou-se a isenção previdenciária
ao valor das mensalidades de que abrissem mão.
Já o ProUni só requer delas a reserva de 10% das vagas a
bolsistas integrais e ainda estende as isenções de imposto de
renda
[2]
, PIS e contribuições sociais sobre o faturamento e o lucro
líquido às assumidamente mercantis, caso ofereçam em
bolsas (mesmo parciais) 8,5% do que faturam com mensalidades. Se Lacerda,
Médici e Fernando Henrique Cardoso (FH-1) foram verdadeiras mães
para o ensino privado, FH-2 foi uma avó.
De 2004 a 2015, o Estado injetou no ensino superior privado mais de R$ 80 mil
milhões uns 10% via renúncia fiscal do ProUni e 90%, por
meio do
Fies
. O Brasil passou de 3,9 milhões de matrículas
universitárias (2003) a 8 milhões (2015); a
participação das instituições públicas caiu
de 29 para 25%, o inverso da Argentina, onde tinham 77% em 2014.
10
O ProUni e o Fies levaram a coisas como "a compra da Somos
Educação (editoras Ática, Scipione, Atual, Bemvirá
e Saraiva, PH, Anglo, Maxi, Colégio Motivo, Plurall, Sigma,
Ético, Geo, Red Ballon, SER, Chave do Saber, Alfacon, Integrado) pela
Kroton
(Anhanguera, Unime, Unopar, Uniderp, Unic, Pitágoras, LFG e
Fama). O maior grupo de ensino superior do Brasil (Kroton) acaba de comprar o
maior de educação básica. O grupo resultante também
tem negócios em editoras e cursinhos para concursos. O valor da
operação foi de R$ 4,6 mil milhões. Os maiores acionistas
da Kroton são os fundos
BlackRock
[3]
, JP Morgan Asset Management, Capital
World, Invesco e Coronation" escreveu Gustavo Gindre. Em 2017, a
Kroton tentara comprar a Estácio de Sá, numa das oito
operações que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(Cade) vetou entre 4,5 mil analisadas desde 2011. Interlocutores privilegiados
da socialdemocracia alemã que tantos revolucionários matou (Rosa
Luxemburgo, por exemplo) em 1918-19 e 1974-77, Tarso e FH-2 promoveram a
demonstração empírica da tese do melhor economista que ela
teve: Rudolf Hilferding, que, antes de renegar o marxismo, concluiu que a
dependência do crédito leva à fusão entre o capital
bancário e o industrial (ou, no caso, de serviços) sob controle
dos operadores financeiros e à monopolização total de cada
ramo de atividade.
Com um crescimento de 22.130% no lucro da Kroton de 2010 a 2015, dois de seus
sócios, Walfrido Mares Guia e Antonio Carbonari Netto foram os maior
doadores do caixa 1 das campanhas, respectivamente, de FH-2 à prefeitura
de São Paulo, em 2016, e de Maria do Rosário casada com um
capanga que Tarso levou ao MEC e serviria também a FH-2, Eliezer Pacheco
à Câmara federal, em 2010 (em 2014, o doador foi a
própria Kroton). Já a Universidade Luterana do Brasil (Ulbra)
contratou o chefe de gabinete de Tarso e adjunto de FH-2 na secretaria
executiva do MEC, Jairo Jorge, assim que ele deixou o cargo, pagando-lhe, em
valores de hoje, R$ 20 mil mensais e R$ 800 mil por "consultoria",
como revelou Naira Hofmeister no
Extra Classe
de 12/2009.
Aos estudantes, o Fies proporciona um diploma e uma dívida ou
só a dívida, caso não concluam o curso.
11
Na cidadela do capitalismo (os EUA), é considerado um problema grave que
os jovens se formem devendo dezenas ou centenas de milhares de dólares e
precisem aceitar empregos que, de outro modo, recusariam. Aqui, farsantes como
FH-2 dizem que isso é uma conquista.
Quem faz isso possível? Uma direita tão ou mais canalha, para
quem o mal que o PT fez foi dar vida mansa às vítimas desse
arranjo e que defende agora, pela boca de Geraldo Alckmin e Gustavo Franco, a
cobrança de mensalidades no ensino público; e uma
"esquerda" incapaz de exigir uma reforma que a Argentina fez entre
100 e 65 anos atrás.
O livre ingresso (e, em sua falta, o exame de suficiência) não
são pautas maximalistas. Não garantem sequer possibilidade plena
de concluir o curso ante as barreiras que o capitalismo impõe até
em seus países centrais (a alta evasão subsiste na
França). Nem tocam no problema central da universidade brasileira, que
não é de onde seus alunos vêm, mas para onde vão, a
quem servem após formados. Muito menos na iniquidade de ser aqui o
ensino superior caminho quase único da ascensão social e esta a
única via para melhorar de vida, como se os filhos de operários e
camponeses não tivessem direito a viver melhor em sua classe de origem,
mas só saindo dela algo que deveria ser escolha guiada pela
vocação, não imperativo material ou de status.
São apenas o mínimo a esperar de um reformismo digno desse nome,
até porque a Constituição preconiza o exame de
suficiência ao assegurar o acesso ao ensino superior
(graduação e pós) "segundo a capacidade de cada
um" (art. 208, V), e não segundo o número de alunos que a
burocracia universitária estatal queira ter.
12
Nenhuma outra instituição do Estado brasileiro decide quantas
pessoas atenderá. É indefensável que a universidade se
interponha entre a demanda social por profissionais e o anseio das pessoas por
formação. Na Argentina, apenas a ditadura genocida de 1976-83 fez
isso: nem Onganía e Menem foram além de permitir os exames de
suficiência que o reformismo de Cristina Fernández de Kirchner
tornaria a abolir em 2015.
A história da restrição do acesso ao ensino superior
público brasileiro é também a da recusa da burocracia
docente a sair da guilda e viver na república. Ela se mantém
coesa pela escassez de seus membros e pelo férreo controle sobre a
seleção deles.
O que areja a universidade argentina e sustenta as conquistas da reforma de 18
é a amplitude do acesso. Ela torna necessário um número
muito maior de professores, tirando de pessoas e grupos o monopólio de
disciplinas, reduzindo seu poder sobre os estudantes e inviabilizando o grau de
tirania que professores mais antigos e titulados exercem aqui sobre colegas
mais jovens e alunos de pós-graduação nível
no qual tampouco vigora, lá, o sistema de número fechado, embora
haja seleção por suficiência.
As próprias perspectivas profissionais dos pós-graduandos
que, em geral, aspiram a um cargo docente são afetadas pela
perversa pirâmide em que se reestruturou, nos governos petistas, o ensino
superior brasileiro. Hoje, o doutorado é um requisito inelidível
para as pouquíssimas vagas docentes das universidades federais e um
obstáculo intransponível a um emprego nas particulares incubadas
pelo Fies/ProUni: só em 2011, a Kroton demitiu 1.500 doutores e mestres
para reduzir custos e aumentar o lucro de seus acionistas.
13
Só à luz da iniquidade do regime de número fechado se pode
avaliar a política de cotas e a conduta das frações
liberais e petistas do movimento negro, que defendem um sistema em que entram
alguns
negros (por certo, mais que antes) na universidade pública, e
não outro em que entrariam
todos
os negros e brancos, orientais, indígenas e mestiços
que o desejassem ou, ao menos, que atingissem a nota mínima.
O mesmo se aplica às cotas para alunos de escolas públicas e com
renda
[2]
familiar até 1,5 salário mínimo
per capita.
Elas mudaram o perfil do alunado de alguns cursos (outros já tinham
esse setor social como seu público), mas a distribuição
mais justa de vagas escassas teve por premissa a renúncia a reverter a
injustiça maior, que é a própria escassez.
NR
[1] Pilantrópica: amálgama de pilantra+filantrópica
[2] No Brasil chamam de renda a qualquer tipo de rendimento.
[3] BlackRoch: Trata-se do mesmo fundo abutre que em Portugal comprou o Novo
Banco (ex-BES) por preço negativo.
[*]
Jornalista.
O original encontra-se em
anovademocracia.com.br/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|