A trajetória (e a tragédia) do PT
O PT parece completar seu ciclo e chegar à maioridade política:
nascido no seio das lutas sociais, sindicais e da esquerda do final dos anos
70, o jovem partido surgia, então, sob o signo da recusa tanto do
"socialismo real", quanto da social-democracia, sem migrar para o
capitalismo. Sua vitalidade decorria do forte vínculo com as
forças sociais do trabalho. A década de 80, que tantos consideram
como a "década perdida", para o mundo do trabalho foi um
período de criação e avanço. Bastaria lembrar que
ali floresceram, além do PT, da CUT e do MST, uma pletora de movimentos
sociais e sindicais, dos campos e das cidades, que irrompiam pela base,
questionando nossa trajetória quase prussiana, autocrática, cujos
estratos "de cima" expressavam um universo burguês ao mesmo
tempo agressivo e medroso, elitista e insensível.
Nos anos 90, a década da desertificação neoliberal, uma
tormenta se abateu sobre o nosso país. Tivemos
privatização acelerada, informalidade descompensada,
desindustrialização avançada e
financeirização desmesurada. Tudo conforme o figurino global. Se
Collor foi um bonapartista aventureiro, fonte inesgotável de
irracionalidade, com FHC e sua racionalidade acentuada o país
descarrilou nos trilhos do social-liberalismo, eufemismo designado aos que
praticam o neoliberalismo.
O PT sofreu essa tempestade, oscilando entre a resistência ao desmonte e
a assunção da moderação. Lutava contra o
receituário e a pragmática neoliberais, mas aumentava sua
sujeição aos calendários eleitorais, atuando cada vez mais
no leito da institucionalidade. De partido contra a ordem, foi-se
metamorfoseando em partida dentro da ordem. As derrotas eleitorais de 94 e 98
intensificaram seu transformismo, enquanto o país também se
modificava. No apogeu da fase da financeirização do
capital-dinheiro, do avanço tecno-científico, do mundo digital e
quase espectral, onde tempo e espaço se convulsionam, o Brasil
vivenciava uma mutação do trabalho que alterava sua polissemia,
da qual a informalidade, precarização e desemprego são
expressões. Ingressamos então na simbiose entre a era da
informalização e a época da informatização.
Quando, finalmente, Lula venceu as eleições, o país estava
de cabeça para baixo. Ao contrário da potência criadora das
lutas sociais dos anos 80, o cenário era de estancamento em meio a tanta
destruição. Sua eleição foi, por isso, uma
vitória política tardia. Nem o PT, nem o país eram mais os
mesmos. O segundo estava desertificado enquanto o primeiro havia se
desvertebrado.
Por isso, a política que o governo do PT vem implementando, desde sua
primeira hora, é em parte expressão de seu transformismo e sua
conseqüente adequação à ordem. Mas a intensidade da
subordinação ao financismo, ao ideário e à
pragmática neoliberais deixaram estupefatos até seus mais
ásperos críticos. Enquanto isso o tucanato e o PFL transitaram
da surpresa inicial, ao constatarem que o PT no poder é o
antípoda do PT na oposição, para um segundo e atual
momento, de escárnio e crucificação. O episódio
Waldomiro, era só o que faltava, fazendo até a lendária
revista britânica
The Economist
lembrar que o halo do governo do PT estava empanado. (
The Economist
, 21/02/04).
Encantado com o mundo palaciano, agindo como paladino do neoliberalismo,
embalado pelas músicas de Zeca Pagodinho, adulado pela
manipulação "dudiana", o governo do PT mantém
uma política econômica que amplia o desemprego e a informalidade e
estanca a produção. Sua postura em relação aos
transgênicos curvou-se às transnacionais e sua ação
contra a Previdência Pública foi a visceral negação
de todo o seu passado, gerando catarse junto aos novos operadores dos fundos de
previdência, que vislumbram a feliz confluência do mundo financeiro
com o sindicalismo de negócios.
Mas num ponto o governo Lula mostrou-se mais competente que o de FHC: pela
primeira vez na história recente do país, os trabalhadores
privados foram jogados contra os trabalhadores públicos. Se não
fosse trágico, poder-se-ia dizer que o partido que nasceu (com o
perdão da palavra) na luta de classes converteu-se no partido que
incentiva a luta intraclasse. Claro que, para tanto, foi necessário
repetir a história anterior, dos "processos e
depurações", que levou o PT dominante a expulsar a
coerência para preservar a subserviência. O mais exitoso partido de
esquerda das últimas décadas, que tantas esperanças
provocou no Brasil e em tantas outras partes do mundo, assemelha-se hoje ao
"New Labour" da velha Inglaterra.
Francisco de Oliveira recorreu ao ornitorrinco para retratar a tragédia
brasileira. Oriundo da Austrália, o monstrengo tem bico de pato, mescla
de réptil com mamífero. Tão estranho e feioso é o
bicho, que a pena sarcástica de Melville (vale lembrar que é de
sua safra a máxima sobre o tucano: bela plumagem e carne ruim!) nos
lembra que, quando um ornitorrinco empalhado apareceu pela primeira vez na
Inglaterra, os estudiosos das ciências naturais nã o conseguiam
acreditar que aquele animal existia na realidade, afirmando que seu bico era
artificial. A comparação é quase inevitável: seria,
então, o ornitorrinco o símile petista do tucano?
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[*]
Professor titular de sociologia do trabalho do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. É autor de "Adeus
ao Trabalho?" e "Os Sentidos do Trabalho", entre outras obras.
O original foi publicado na
Folha de S. Paulo
de 11/Abr/04, pg. 3.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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