A trajetória (e a tragédia) do PT

por Ricardo Antunes [*]

O PT parece completar seu ciclo e chegar à maioridade política: nascido no seio das lutas sociais, sindicais e da esquerda do final dos anos 70, o jovem partido surgia, então, sob o signo da recusa tanto do "socialismo real", quanto da social-democracia, sem migrar para o capitalismo. Sua vitalidade decorria do forte vínculo com as forças sociais do trabalho. A década de 80, que tantos consideram como a "década perdida", para o mundo do trabalho foi um período de criação e avanço. Bastaria lembrar que ali floresceram, além do PT, da CUT e do MST, uma pletora de movimentos sociais e sindicais, dos campos e das cidades, que irrompiam pela base, questionando nossa trajetória quase prussiana, autocrática, cujos estratos "de cima" expressavam um universo burguês ao mesmo tempo agressivo e medroso, elitista e insensível.

Nos anos 90, a década da desertificação neoliberal, uma tormenta se abateu sobre o nosso país. Tivemos privatização acelerada, informalidade descompensada, desindustrialização avançada e financeirização desmesurada. Tudo conforme o figurino global. Se Collor foi um bonapartista aventureiro, fonte inesgotável de irracionalidade, com FHC e sua racionalidade acentuada o país descarrilou nos trilhos do social-liberalismo, eufemismo designado aos que praticam o neoliberalismo.

O PT sofreu essa tempestade, oscilando entre a resistência ao desmonte e a assunção da moderação. Lutava contra o receituário e a pragmática neoliberais, mas aumentava sua sujeição aos calendários eleitorais, atuando cada vez mais no leito da institucionalidade. De partido contra a ordem, foi-se metamorfoseando em partida dentro da ordem. As derrotas eleitorais de 94 e 98 intensificaram seu transformismo, enquanto o país também se modificava. No apogeu da fase da financeirização do capital-dinheiro, do avanço tecno-científico, do mundo digital e quase espectral, onde tempo e espaço se convulsionam, o Brasil vivenciava uma mutação do trabalho que alterava sua polissemia, da qual a informalidade, precarização e desemprego são expressões. Ingressamos então na simbiose entre a era da informalização e a época da informatização.

Quando, finalmente, Lula venceu as eleições, o país estava de cabeça para baixo. Ao contrário da potência criadora das lutas sociais dos anos 80, o cenário era de estancamento em meio a tanta destruição. Sua eleição foi, por isso, uma vitória política tardia. Nem o PT, nem o país eram mais os mesmos. O segundo estava desertificado enquanto o primeiro havia se desvertebrado.

Por isso, a política que o governo do PT vem implementando, desde sua primeira hora, é em parte expressão de seu transformismo e sua conseqüente adequação à ordem. Mas a intensidade da subordinação ao financismo, ao ideário e à pragmática neoliberais deixaram estupefatos até seus mais ásperos críticos. Enquanto isso o tucanato e o PFL transitaram da surpresa inicial, ao constatarem que o PT no poder é o antípoda do PT na oposição, para um segundo e atual momento, de escárnio e crucificação. O episódio Waldomiro, era só o que faltava, fazendo até a lendária revista britânica The Economist lembrar que o halo do governo do PT estava empanado. ( The Economist , 21/02/04).

Encantado com o mundo palaciano, agindo como paladino do neoliberalismo, embalado pelas músicas de Zeca Pagodinho, adulado pela manipulação "dudiana", o governo do PT mantém uma política econômica que amplia o desemprego e a informalidade e estanca a produção. Sua postura em relação aos transgênicos curvou-se às transnacionais e sua ação contra a Previdência Pública foi a visceral negação de todo o seu passado, gerando catarse junto aos novos operadores dos fundos de previdência, que vislumbram a feliz confluência do mundo financeiro com o sindicalismo de negócios.

Mas num ponto o governo Lula mostrou-se mais competente que o de FHC: pela primeira vez na história recente do país, os trabalhadores privados foram jogados contra os trabalhadores públicos. Se não fosse trágico, poder-se-ia dizer que o partido que nasceu (com o perdão da palavra) na luta de classes converteu-se no partido que incentiva a luta intraclasse. Claro que, para tanto, foi necessário repetir a história anterior, dos "processos e depurações", que levou o PT dominante a expulsar a coerência para preservar a subserviência. O mais exitoso partido de esquerda das últimas décadas, que tantas esperanças provocou no Brasil e em tantas outras partes do mundo, assemelha-se hoje ao "New Labour" da velha Inglaterra.

. Francisco de Oliveira recorreu ao ornitorrinco para retratar a tragédia brasileira. Oriundo da Austrália, o monstrengo tem bico de pato, mescla de réptil com mamífero. Tão estranho e feioso é o bicho, que a pena sarcástica de Melville (vale lembrar que é de sua safra a máxima sobre o tucano: bela plumagem e carne ruim!) nos lembra que, quando um ornitorrinco empalhado apareceu pela primeira vez na Inglaterra, os estudiosos das ciências naturais nã o conseguiam acreditar que aquele animal existia na realidade, afirmando que seu bico era artificial. A comparação é quase inevitável: seria, então, o ornitorrinco o símile petista do tucano?
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[*] Professor titular de sociologia do trabalho do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. É autor de "Adeus ao Trabalho?" e "Os Sentidos do Trabalho", entre outras obras.

O original foi publicado na Folha de S. Paulo de 11/Abr/04, pg. 3.


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18/Mai/04