Tomara que tudo dê certo
Creio que ninguém está habilitado a fazer previsões sobre
como será o Brasil na nova fase que se inicia. As incógnitas
são grandes demais. Precisaremos de tempo para poder começar a
decifrar aquilo que denominei, em artigo recente, o enigma Lula.
Não pode haver dúvida, no entanto, de que temos o dever de ajudar
o novo governo a dar certo. Lula é o primeiro filho do povo pobre a
ascender à Presidência. É verdade que conseguiu este
notável êxito equilibrando-se na corda bamba, prometendo omelete
para todos sem quebrar ovo nenhum. Mas nunca rompeu com a base social ligada
à sua história de vida e sua trajetória política.
Suas primeiras declarações, enfatizando o problema da fome
face mais dramática da nossa questão social , renovam
esperanças.
Um eventual fracasso do novo governo será um fracasso de todos
nós, um fracasso do Brasil. Menos do que analistas neutros, precisamos,
mais do que nunca, ser militantes claramente posicionados ao lado da
esperança que nosso povo manifestou. Nenhum negativismo gratuito deve
prosperar: o futuro está em aberto para ser construído. Tampouco
deve prosperar a bajulação: os desafios são enormes, seja
pela complexidade, seja pelo ineditismo da situação criada.
Passada a ressaca das comemorações, faço aos dirigentes do
PT um apelo para que não cometam um erro fatal. Refiro-me às
notícias de que eles concordariam, ou até mesmo patrocinariam,
uma alteração constitucional que abriria caminho para uma
regulamentação parcial e casuística, ainda neste ano, do
artigo 192 da Constituição. O objetivo explícito dessa
manobra seria permitir a edição, antes da posse do novo governo,
de uma lei complementar que concederia autonomia legal ao Banco Central. A crer
no que sai na imprensa, dirigentes do peso de José Dirceu, Guido Mantega
e Antônio Palocci vêm se posicionando a favor da medida,
considerada por este último como uma sinalização
importante para o mercado [financeiro] da seriedade com que o PT pretende
conduzir a economia.
Entre todos os erros que podem vir a ser cometidos nessa fase de
transição, este é, de longe, o mais importante, por seu
alcance e por seu caráter irreversível. Precisa ser evitado, nem
que seja por simples prudência, para ampliar o debate e amadurecer melhor
a questão. Conceder autonomia legal ao Banco Central de forma
açodada, em vez de seriedade, será uma demonstração
de incompetência e fraqueza.
A linha de argumentação dos que defendem essa medida é a
seguinte: o Banco Central deve trabalhar com metas (de inflação e
de câmbio) definidas com participação do governo, mas suas
decisões operacionais devem ser preservadas de qualquer
interferência política indevida; por isso, seus dirigentes
passariam a receber um mandato de quatro anos, sancionado pelo Senado,
tornando-se independentes do próprio presidente da República. O
argumento, à primeira vista, é apenas simplório. Pois
poderia ser usado para defender autonomia legal para todos os
órgãos governamentais. Afinal, qual deles não deve ter
metas? Qual não deve ser preservado de interferências indevidas? A
educação, a saúde, a previdência, o Incra, o BNDES,
as empresas de energia e as demais em qual desses setores a politicagem
deve ser tolerada? Em nenhum, é claro. Logo, a mesma lógica
deveria conduzir à proposta de que, depois de definidas as metas
setoriais, todos os ministérios, órgãos e empresas
públicas fossem declarados entes autônomos, por força de
lei, restando ao presidente recolher-se a uma casa de praia, para não
mais interferir na racionalidade (supostamente) técnica que a partir de
então presidiria as decisões dos gestores...
Isso não é sério. Por trás do caráter
aparentemente simplório da proposta, nela só há esperteza.
É o Banco Central quem estabelece as regras de operação do
sistema financeiro, gerencia as dívidas interna e externa, cuida das
reservas internacionais, fixa a taxa de juros, conduz a política de
câmbio, acompanha a remessa de recursos para o exterior e emite (ou deixa
de emitir) dinheiro, entre outras atribuições. Tudo isso define
quais serão as taxas de crescimento esperado da economia, o nível
do emprego, o montante dos gastos públicos e o volume de crédito
disponível para o setor produtivo real. Ou seja, o Banco Central conduz
o núcleo duro da política econômica. Talvez por
isso, todos os presidentes brasileiros, incluindo Fernando Henrique,
recusaram-se a aceitar esse tipo de autonomia que agora se pretende
estabelecer.
O PT tem todas as condições legais, políticas e
morais para não ceder. Um Congresso em fim de mandato não
pode alterar, a toque de caixa, a Constituição do país. E
não custa lembrar que foi a bancada federal do PT quem tentou
regulamentar o artigo 192, apresentando na época adequada um bom projeto
de lei que, entre outras coisas, pretendia submeter as decisões do Banco
Central (considerado independente demais!) a uma avaliação
periódica por parte de instâncias representativas da sociedade.
Exatamente o oposto do que se defende agora. O projeto está parado na
Câmara há onze anos, barrado pela maioria conservadora. Por que
aceitar que se faça em pouco mais de um mês, em sentido oposto
à posição histórica do PT, uma
regulamentação que os conservadores vêm se recusando a
fazer há catorze anos, desde a promulgação da
Constituição de 1988?
O que está em jogo não é pouco. Em primeiro lugar, como
disse acima, está a capacidade controlar a operação do
sistema financeiro. Bancos são empresas especiais, que por
definição não podem honrar seus compromissos em nenhum
momento específico. Pois, em uma ponta, recebem depósitos que, em
tese, seus clientes podem sacar a qualquer momento; na outra ponta, usam esses
depósitos para conceder créditos, que só podem ser
cobrados depois de cumpridos os prazos contratuais. Assim, os bancos
estão sempre em desequilíbrio. Interessa à sociedade que
eles corram esse risco, pois as operações de crédito
são essenciais ao desenvolvimento econômico. Por outro lado,
também interessa à sociedade que eles sejam empreendimentos
seguros, pois uma crise bancária sempre é muito grave. Para
compensar o risco inerente à sua atividade e garantir solidez ao
sistema, os bancos ao contrário das empresas comuns podem
recorrer a um emprestador de última instância, que lhes dá
cobertura. É o Banco Central, a quem, como vimos, a sociedade concede a
especialíssima prerrogativa de emitir dinheiro.
Ora, se o Banco Central (um órgão público) tem a
obrigação de garantir a solvência do sistema
bancário privado, usando para isso a faculdade de emitir a moeda
nacional, é claro que ele precisa deter poderosos mecanismos de controle
de todo o sistema. Por isso, os bancos estão sujeitos a regras muito
mais estritas que aquelas vigentes para os demais setores da economia. No
Brasil e em outros países, os bancos centrais dispõem de
instrumentos bastante fortes de regulação do sistema financeiro,
que aqui vêm sendo subutilizados por falta de vontade política.
É por isso, por exemplo, que os bancos especulam abertamente contra a
moeda nacional, com toda impunidade, e ganham bilhões. Aceitar a
autonomia legal do Banco Central, nas condições atuais, é
radicalizar essa situação. É legalizar a
criação, para os bancos, de uma espécie de
território liberado, que o governo brasileiro desistiu de
submeter às suas próprias decisões. Em
situação de crise situação mais do que
provável , o presidente da República estará
legalmente privado de poderes para intervir, alterando a política
monetária e cambial, se assim achar necessário.
Sem o controle do Banco Central também não se consegue mudar o
modelo econômico. E, como sempre disse o PT, é exatamente isso que
precisa ser feito, sem demora. Pois o modelo atual já faliu. Por
indução externa, mas com forte apoio interno das nossas elites,
realizou-se na economia brasileira uma abertura irresponsável, pois
ao contrário, por exemplo, das economias asiáticas
não contávamos com grandes empresas nacionais (capazes de
conduzir uma inserção ativa no sistema internacional) nem
tínhamos condições, nesse novo contexto, de gerar
superávits na conta-corrente do balanço de pagamentos. Ficamos
expostos a crises recorrentes, neutralizadas no curto prazo pela
atração de vultosos recursos externos, em um contexto de liquidez
internacional abundante. A manutenção de elevadas taxas de juros,
a venda do patrimônio público e a indução à
desnacionalização do sistema produtivo e dos recursos naturais do
país foram os principais expedientes usados. Esse modelo de
gestão se esgotou, por motivos internos e externos, e o Brasil submergiu
em uma crise cambial que já se instalou. Ela ainda não nos
desarticulou completamente por causa dos sucessivos aportes de recursos do FMI.
Esses aportes vêm acompanhados de exigências que fragilizam ainda
mais a nossa economia e preparam novas rodadas de concessões, num
processo semelhante ao que levou a Argentina ao colapso.
A decisão fundamental do governo Lula, na área econômica,
será entre prosseguir nesse caminho ou ter coragem para mudar. Nos dois
casos, há dificuldades à vista. Lula não deve hesitar em
dizer isso ao povo. Mas deve deixar claro uma diferença fundamental: os
sacrifícios exigidos pelo caminho atual são inúteis, pois
neste caso a crise reaparecerá logo mais adiante, agravada; a
alternativa progressista, ao contrário, contém em si as
condições para superar dinamicamente suas dificuldades iniciais.
A luta pelo controle do Banco Central é a mais importante arena atual
desse debate. Infelizmente, porém, não é a única.
Associado à defesa dessa medida estapafúrdia, e de forma coerente
com ela, porta-vozes do PT vêm se propondo a manter e até
aumentar o chamado superávit primário. Isso é
tecnicamente
indefensável. Superávit primário é um conceito
espúrio, desprovido de consistência. É uma
construção ideológica do Consenso de Washington.
Do ponto de vista macroeconômico, é indiferente se o Estado emite
R$ 1,00 para remunerar professores ou para remunerar milionários que
vivem de rendas. Mas, pela contabilidade do FMI e do governo brasileiro, que o
PT está se propondo a perpetuar, a remuneração de
professores (ou a compra de merenda escolar, o investimento em sistemas de
água e esgoto, a construção de hidrelétricas, etc)
ameaça as metas dessa anomalia chamada superávit primário;
como tal, está enquadrada nos estreitíssimos limites da chamada
Lei de Responsabilidade Fiscal. Já a remuneração de
rentistas está liberada, pois simplesmente não entra nessa
contabilidade oportunista, inventada sob medida. Desafio qualquer economista a
me apresentar uma alegação técnica para justificar essa
diferença de tratamento.
Dependendo das circunstâncias, Estados nacionais podem optar,
legitimamente, por ter déficits, superávits ou equilíbrio
fiscal. Ter superávit primário, no entanto,
não tem sentido nenhum. Ou melhor, serve para justificar o
injustificável: em uma economia em recessão, o Estado continua
retirando grandes quantidades de recursos da sociedade para continuar emitindo
moeda financeira, ou moeda que rende juros (hoje de 21% ao ano), que só
os bancos administram e só os ricos possuem, na maior parte entesourada.
Este é o mais importante mecanismo de concentração de
renda em operação no Brasil nos últimos anos. E cria a
pior forma de déficit público, aquele que aprofunda a
recessão. Insistir nesse caminho, em um contexto de 20% de desemprego,
isso sim é uma enorme irresponsabilidade.
O novo governo precisa libertar-se dessas camisas-de-força, e não
criar novas. Em vez de se tornar autônomo, o Banco Central
precisará trabalhar de forma intimamente articulada com o Tesouro
Nacional, ambos perseguindo metas combinadas não só para a
inflação e o câmbio, mas também para o emprego e o
volume de crédito ofertado à economia real. Essa
ação articulada deve assegurar que a economia seja irrigada com
os fluxos monetários e financeiros necessários para conduzi-la,
com relativa estabilidade de preços, a uma posição cada
vez mais próxima do pleno emprego, ou seja, ao nível em que a
produção efetivamente realizada coincida com o uso do potencial
produtivo existente. Só aí deve o Estado operar em
equilíbrio fiscal.
Estamos longe disso. Há muito a fazer. Em vez de ficar no atoleiro,
gerenciando um modelo que já faliu, uma agenda progressista
verdadeiramente séria e responsável deveria articular um
conjunto de medidas que convergissem rapidamente para três grandes metas
macroeconômicas: obter equilíbrio na conta-corrente do
balanço de pagamentos (sem ilusões de que conseguiremos isso
mediante um choque de exportações), remontar um sistema interno
de financiamento do desenvolvimento (capaz de oferecer um choque de
crédito, graças a uma ação coordenada do Banco do
Brasil, da Caixa, do BNDES, do Banco do Nordeste, dos fundos de pensão e
do sistema bancário privado, devidamente enquadrado pela
ação do Banco Central) e começar desde logo a alterar
dramaticamente as condições do mercado de trabalho (pois com 20%
de desemprego aberto e 50% de informalidade nenhuma justiça social
é possível).
Em paralelo, a nova política econômica deveria preparar um novo
ciclo de desenvolvimento, orientado para a criação do mercado
interno de massas, que exigirá pelo menos quatro
precondições, de maturação mais lenta: um
significativo barateamento nos custos da alimentação (para
liberar poder de compra do povo para outros produtos), um enorme programa de
habitação popular (para estimular não só a
construção civil, mas também as variadíssimas
indústrias de equipamentos domésticos), uma
ampliação e retomada dos serviços públicos
essenciais (altamente geradores de emprego) e a generalização do
acesso a energia segura e barata. Todas essas frentes estratégicas
que no mundo inteiro formaram a base dos processos de desenvolvimento
baseados no consumo de massas apresentam baixíssimo coeficiente
de importações.
Se a operação montada para promover a autonomia legal do Banco
Central se completar, estará eliminada a possibilidade de mudar o modelo
nessa direção, ou em outra qualquer, igualmente progressista.
Neste caso, o governo Lula não se constituirá de fato. Todo o
esforço para viabilizá-lo política e eleitoralmente
culminará em uma espécie de Batalha de Itararé a
grande batalha da história do Brasil, que não chegou a ocorrer.
Esperemos que Lula não aceite ser o presidente que foi, sem ter sido.
Tomara que tudo dê certo.
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[*]
César Benjamin é autor de
A opção brasileira
(Contraponto Editora, 1998, nona edição) e integra a
coordenação nacional do Movimento Consulta Popular.
O artigo foi divulgado originalmente pela revista
Caros Amigos
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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