Entrevista de João Pedro Stédile,
líder do MST brasileiro

por Sérgio Lírio [*]

Passar de um para outro só é difícil quando não há vontade política. 1. Os jornais noticiam que o MST ficou insatisfeito com o PT por causa da falta de prazo para os assentamentos do sem-terra que estão nas estradas. Em que prazo os senhores esperam o assentamento das 85 mil famílias — ou 100 mil — acampadas nas estradas? Vocês aceitariam uma prorrogação do prazo? Pretendem controlar as invasões no início do governo Lula? Vocês terão mais, digamos, paciência com Lula que tiveram com outros governantes?

Stédile:  "A imprensa brasileira é de uma mediocridade e de falta de ética a toda prova.   Inventam factóides, produzem manchetes bombásticas que não têm nada a ver com os factos ou a própria matéria.  Desde que o Presidente Lula foi eleito, nós temos mantido canais de comunicação com as equipes do governo.   Conversamos.  E apresentamos muitas sugestões, do que é necessário fazer a curto prazo para  remediar os graves problemas sociais que existem no campo, como herança de dez anos de neoliberalismo, que somente aumentou a miséria, a fome e o desespero.

Há acordo entre nós de que a prioridade seja o combate à fome, o assentamento das famílias acampadas e a recuperação da situação dos assentamentos, que estão abandonados".


2. Vocês fizeram ou farão indicações para o ministério da reforma agraria? O que vcs esperam do ministro indicado para o cargo? Quais as mudanças mais urgentes na forma de trabalho do ministério e do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária)?

Stédile: "Nossa política é pública e clara.  É da natureza dos movimentos sociais manter autonomia em relação ao Estado e a qualquer governo.  Nos orgulhamos de termos feito campanha para o Lula, desde 1989.  Nos consideramos também vitoriosos.  Mas os métodos de trabalhar são diferentes.  Nós não indicamos nenhuma pessoa para nenhum cargo.  Isso é assunto do governo.  Ele disputa eleição para isso.

Nosso movimento continuará com sua função histórica,  conscientizar e organizar os pobres do campo, para que lutem por seus direitos.  E defendemos a tese de que o latifúndio, ou seja a grande propriedade improdutiva é a principal causa no meio rural da fome e da pobreza e da desigualdade social.  Por isso nossa prioridade, nossa luta principal, será derrotar, combater o latifúndio.  A novidade agora, é de que teremos um governo comprometido com as mudanças sociais e com o combate ao latifúndio também.    Antes o governo neoliberal defendia o latifúndio e por isso lutávamos contra ele também".


3. O movimento sempre teve as invasões como uma forma de pressão, até por falta de outros canais de comunicação com o governo federal. Como se dará as conversas e as negociações com o futuro governo? O senhor acha que um assento no anunciado Conselho de Desenvolvimento Económico e Social seria eficiente? O senhor acha que as negociações irão prosperar mesmo se Lula não conseguir cumprir imediatamente as promessas de campanha?

Stédile:   "Os movimentos sociais têm e devem ter sempre autonomia em relação às formas de luta que vão desenvolver para pressionar o governo.  É da natureza da democracia o direito dos grupos e classes sociais pressionarem.   Na história da humanidade não houve nenhuma conquista social sem luta social.   As ocupações são diferentes de Invasões...   Invasão é o que é feito pelos fazendeiros, grileiros que invadem terra pública, praticando esbulho possessório para acumular em proveito próprio.  Ocupação é realizada por movimento social, é um acto de massas, de pressão social sobre o latifúndio, para que o governo aplique a lei e desaproprie aquele latifúndio.   Enquanto houver latifúndios, grandes propriedades improdutivas de um lado e milhares de sem terra de outro, haverão ocupações de terra !!.  Isso é parte da realidade social brasileira, injusta, e não de estratégias ou da vontade de dirigentes.

Nós achamos que uma das poucas áreas que o novo governo vai poder avançar será no campo social.  No meio rural, poderá avançar na solução da fome, e das medidas de emergência para os acampamentos.  

Problemas o governo terá com o grande capital transnacional, com o FMI, com o governo Bush, com a ALCA".


4. Aliás, o que o senhor acha da proposta de pacto social? O senhor acredita que Lula conseguirá reunir os principais actores sociais em torno de um projecto comum, de interesse nacional, ou há probabilidades de a ideia fracassar mais uma vez, como em outros governos?

Stédile:  "No Brasil a expressão pacto social está desgastada.   Somente funciona na Europa em sociedades desenvolvidas, aonde o pacto social foi utilizado como uma forma de viabilizar uma proposta social-democrata.   Aqui acho exagero chamar de pacto social a reuniões de conselhos sociais, que são necessárias, mas que não resolvem os problemas.

A solução dos problemas sociais, não depende de reuniões, depende de medidas de política económica e social, que de facto resolvam os problemas e vão desanuviando as contradições e as desigualdades existentes na sociedade.

Um gesto simbólico do governo, das lideranças,  às vezes tem muito mais peso, do que horas de conversas. Nunca houve distribuição de renda em qualquer sociedade pelo facto de os ricos terem-se sentado à mesa com os pobres e resolvido abrir mão de seus privilégios.   Para isso existe Estado e governo, que em nome da maioria, toma medidas para corrigir as distorções que o poder económico vai criando por seu processo natural de acumulação.  Se a solução dos problemas dependesse da vontade das pessoas se reunirem, não precisava de Estado e de Governo".


5. Quais os erros que o senhor espera que o PT não cometa — na área social e na económica?

Stédile:  "Na área económica, espero que o novo governo não cometa o erro estratégico de aceitar a ALCA.  A ALCA seria a perda soberania em todas as áreas e a submissão total aos Estados Unidos.   Podem aumentar as relações comerciais com os Estados Unidos, isso é outra coisa.  Mas a ALCA como está proposta é o fim do Brasil como nação independente.  E nós lutaremos, de toda as formas possíveis, para impedir.

Na agricultura, esperamos que o governo não caia na besteira de aceitar as sementes transgénicas.  Seria o fim da agricultura brasileira.  E inclusive do ponto de vista de mercado, perda de mercados futuros importantes.  E do ponto de vista do meio ambiente e da saúde pública uma temeridade.  É uma falácia difundida pela Monsanto e outras multinacionais, a ideia de que transgênico é mais produtivo e não faz mal à saúde.  Faz bem apenas para a sua taxa de lucro.

Na área social, espero que o novo governo, não caia na ilusão de ter medo de fazer mudanças.  Para fazer mudanças sociais e beneficiar os pobres, precisa ser corajoso e enfrentar os interesses dos que hoje têm privilégios.  Se o governo cair no erro de apenas administrar o orçamento publico, está ferrado.  Nós o elegemos para tomar medidas concretas de mudanças".

 
6. Além de assentar todas as famílias nas estradas, o futuro governo terá de salvar boa parte dos assentamentos já existentes, que padecem de falta de estrutura e apoio? A qual desses dois temas será preciso dar prioridade: aos assentamentos ou à estruturação dos assentamentos? A herança financeira deixada pelo governo FHC não dificultara o trabalho do futuro governo? O senhor acha que será possível ter dinheiro para atender a todas as demandas?

Stédile:   " Como disse antes, talvez a parte mais fácil e rápida do governo resolver sejam as 80 mil famílias acampadas, e as milhares de famílias assentadas.  Pois para isso precisa poucos recursos, não depende de nenhum acordo internacional, e não afectará interesses do capital internacional.   Temos muita terra disponível, improdutiva.  Basta vontade política.  E para os assentamentos com pouco dinheiro se resolve. 

Acho que a parte difícil na agricultura será, a médio e longo prazo, o governo conseguir impedir o avanço do neoliberalismo, que para nós da agricultura, significa o avanço do modelo norte-americano de agricultura.  Durante os oito anos do FHC  fizeram uma política de implantação desse modelo, que só beneficiou as multinacionais.  Elas controlam hoje o comércio agrícola, dos grãos, controlam as grandes agro-indústrias controlam a pesquisa, as sementes, compraram os armazéns do Estado, e o governo se retirou da agricultura.

É preciso reconstruir um novo modelo agrícola, que priorize a produção de alimentos, a produção para mercado interno e não para exportação. Mesmo na soja que, é nosso principal produto agrícola de exportação, exportamos apenas 30% do produzido. É uma besteira achar que exportar produtos agrícolas tira o país da crise... A EMBRAER (Empresa Brasileira de Aeronáutica) sozinha exporta um valor igual ao de toda a soja brasileira. Nós temos que exportar produtos com valor acrescentado, ou seja com muitos dias de trabalho incorporado.

Priorizar o apoio  e a melhoria das condições de vida dos agricultores, para que eles tenham renda e  permaneçam no meio rural.  Reactivar a EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) como grande empresa pública de pesquisa. E produzirmos nossas próprias sementes.  Estimular as pequenas e medias agro-indústrias, de forma cooperativizada.

Esse é o nosso programa e proposta de médio e longo prazo".

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[*] Jornalista da revista Carta Capital . Entrevista realizada em 23/Dez/2002

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

25/Dez/02