Entrevista de João Pedro Stédile,
líder do MST brasileiro
1. Os jornais noticiam que o
MST
ficou insatisfeito com o
PT
por causa da falta de prazo para os assentamentos do
sem-terra que estão nas estradas. Em que prazo os senhores esperam o
assentamento das 85 mil famílias ou 100 mil acampadas nas
estradas? Vocês aceitariam uma prorrogação do prazo?
Pretendem controlar as invasões no início do governo Lula?
Vocês terão mais, digamos, paciência com Lula que tiveram
com outros governantes?
Stédile: "A imprensa brasileira é de uma mediocridade
e de falta de ética a toda prova. Inventam factóides,
produzem manchetes bombásticas que não têm nada a ver com
os factos ou a própria matéria. Desde que o Presidente Lula
foi eleito, nós temos mantido canais de comunicação com as
equipes do governo. Conversamos. E apresentamos muitas
sugestões, do que é necessário fazer a curto prazo
para remediar os graves problemas sociais que existem no campo, como
herança de dez anos de neoliberalismo, que somente aumentou a
miséria, a fome e o desespero.
Há acordo entre nós de que a prioridade seja o combate à
fome, o assentamento das famílias acampadas e a
recuperação da situação dos assentamentos, que
estão abandonados".
2. Vocês fizeram ou farão indicações para o
ministério da reforma agraria? O que vcs esperam do ministro indicado
para o cargo? Quais as mudanças mais urgentes na forma de trabalho do
ministério e do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária)?
Stédile: "Nossa política é
pública e clara. É da natureza dos movimentos sociais
manter autonomia em relação ao Estado e a qualquer governo.
Nos orgulhamos de termos feito campanha para o Lula, desde 1989. Nos
consideramos também vitoriosos. Mas os métodos de trabalhar
são diferentes. Nós não indicamos nenhuma pessoa
para nenhum cargo. Isso é assunto do governo. Ele disputa
eleição para isso.
Nosso movimento continuará com sua função
histórica, conscientizar e organizar os pobres do campo, para que
lutem por seus direitos. E defendemos a tese de que o latifúndio,
ou seja a grande propriedade improdutiva é a principal causa no meio
rural da fome e da pobreza e da desigualdade social. Por isso nossa
prioridade, nossa luta principal, será derrotar, combater o
latifúndio. A novidade agora, é de que teremos um
governo comprometido com as mudanças sociais e com o combate ao
latifúndio também. Antes o governo neoliberal
defendia o latifúndio e por isso lutávamos contra ele
também".
3. O movimento sempre teve as invasões como uma forma de pressão,
até por falta de outros canais de comunicação com o
governo federal. Como se dará as conversas e as
negociações com o futuro governo? O senhor acha que um assento no
anunciado Conselho de Desenvolvimento Económico e Social seria
eficiente? O senhor acha que as negociações irão prosperar
mesmo se Lula não conseguir cumprir imediatamente as promessas de
campanha?
Stédile: "Os movimentos sociais têm e devem ter
sempre autonomia em relação às formas de luta que
vão desenvolver para pressionar o governo. É da natureza da
democracia o direito dos grupos e classes sociais pressionarem. Na
história da humanidade não houve nenhuma conquista social sem
luta social. As ocupações são diferentes de
Invasões... Invasão é o que é
feito pelos fazendeiros, grileiros que invadem terra pública, praticando
esbulho possessório para acumular em proveito próprio.
Ocupação é realizada por movimento social, é um
acto de massas, de pressão social sobre o latifúndio, para que o
governo aplique a lei e desaproprie aquele latifúndio.
Enquanto houver latifúndios, grandes propriedades improdutivas de um
lado e milhares de sem terra de outro, haverão ocupações
de terra !!. Isso é parte da realidade social brasileira, injusta,
e não de estratégias ou da vontade de dirigentes.
Nós achamos que uma das poucas áreas que o novo governo vai poder
avançar será no campo social. No meio rural, poderá
avançar na solução da fome, e das medidas de
emergência para os acampamentos.
Problemas o governo terá com o grande capital transnacional, com o FMI,
com o governo Bush, com a ALCA".
4. Aliás, o que o senhor acha da proposta de pacto social? O senhor
acredita que Lula conseguirá reunir os principais actores sociais em
torno de um projecto comum, de interesse nacional, ou há probabilidades
de a ideia fracassar mais uma vez, como em outros governos?
Stédile: "No Brasil a expressão pacto social
está desgastada. Somente funciona na Europa em sociedades
desenvolvidas, aonde o pacto social foi utilizado como uma forma de viabilizar
uma proposta social-democrata. Aqui acho exagero chamar de pacto
social a reuniões de conselhos sociais, que são
necessárias, mas que não resolvem os problemas.
A solução dos problemas sociais, não depende de
reuniões, depende de medidas de política económica e
social, que de facto resolvam os problemas e vão desanuviando as
contradições e as desigualdades existentes na sociedade.
Um gesto simbólico do governo, das lideranças, às
vezes tem muito mais peso, do que horas de conversas. Nunca houve
distribuição de renda em qualquer sociedade pelo facto de os
ricos terem-se sentado à mesa com os pobres e resolvido abrir mão
de seus privilégios. Para isso existe Estado e governo, que
em nome da maioria, toma medidas para corrigir as distorções que
o poder económico vai criando por seu processo natural de
acumulação. Se a solução dos problemas
dependesse da vontade das pessoas se reunirem, não precisava de Estado e
de Governo".
5. Quais os erros que o senhor espera que o PT não cometa na
área social e na económica?
Stédile: "Na área económica, espero que o novo
governo não cometa o erro estratégico de aceitar a ALCA. A
ALCA seria a perda soberania em todas as áreas e a submissão
total aos Estados Unidos. Podem aumentar as relações
comerciais com os Estados Unidos, isso é outra coisa. Mas a ALCA
como está proposta é o fim do Brasil como nação
independente. E nós lutaremos, de toda as formas possíveis,
para impedir.
Na agricultura, esperamos que o governo não caia na besteira de aceitar
as sementes transgénicas. Seria o fim da agricultura
brasileira. E inclusive do ponto de vista de mercado, perda
de mercados futuros importantes. E do ponto de vista do meio
ambiente e da saúde pública uma temeridade. É uma
falácia difundida pela Monsanto e outras multinacionais, a ideia de que
transgênico é mais produtivo e não faz mal à
saúde. Faz bem apenas para a sua taxa de lucro.
Na área social, espero que o novo governo, não caia na
ilusão de ter medo de fazer mudanças. Para fazer
mudanças sociais e beneficiar os pobres, precisa ser corajoso e
enfrentar os interesses dos que hoje têm privilégios. Se o
governo cair no erro de apenas administrar o orçamento publico,
está ferrado. Nós o elegemos para tomar medidas concretas
de mudanças".
6. Além de assentar todas as famílias nas estradas, o futuro
governo terá de salvar boa parte dos assentamentos já existentes,
que padecem de falta de estrutura e apoio? A qual desses dois temas será
preciso dar prioridade: aos assentamentos ou à
estruturação dos assentamentos? A herança financeira
deixada pelo governo FHC não dificultara o trabalho do futuro governo? O
senhor acha que será possível ter dinheiro para atender a todas
as demandas?
Stédile: " Como disse antes, talvez a parte mais
fácil e rápida do governo resolver sejam as 80 mil
famílias acampadas, e as milhares de famílias assentadas.
Pois para isso precisa poucos recursos, não depende de nenhum acordo
internacional, e não afectará interesses do capital
internacional. Temos muita terra disponível,
improdutiva. Basta vontade política. E para os assentamentos
com pouco dinheiro se resolve.
Acho que a parte difícil na agricultura será, a médio e
longo prazo, o governo conseguir impedir o avanço do neoliberalismo, que
para nós da agricultura, significa o avanço do modelo
norte-americano de agricultura. Durante os oito anos do FHC fizeram
uma política de implantação desse modelo, que só
beneficiou as multinacionais. Elas controlam hoje o comércio
agrícola, dos grãos, controlam as grandes agro-indústrias
controlam a pesquisa, as sementes, compraram os armazéns do Estado, e o
governo se retirou da agricultura.
É preciso reconstruir um novo modelo agrícola, que priorize a
produção de alimentos, a produção para mercado
interno e não para exportação. Mesmo na soja que,
é nosso principal produto agrícola de exportação,
exportamos apenas 30% do produzido. É uma besteira achar que exportar
produtos agrícolas tira o país da crise... A EMBRAER (Empresa
Brasileira de Aeronáutica) sozinha exporta um valor igual ao de toda a
soja brasileira. Nós temos que exportar produtos com valor
acrescentado, ou seja com muitos dias de trabalho incorporado.
Priorizar o apoio e a melhoria das condições de vida dos
agricultores, para que eles tenham renda e permaneçam no meio
rural. Reactivar a EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária) como grande empresa pública de pesquisa. E
produzirmos nossas próprias sementes. Estimular as pequenas e
medias agro-indústrias, de forma cooperativizada.
Esse é o nosso programa e proposta de médio e longo prazo".
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Jornalista da revista
Carta Capital
. Entrevista realizada em 23/Dez/2002
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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