O III Fórum Social Mundial na visão do MST
Entrevista de João Pedro Stédile
1. O III Fórum Social Mundial (23-27/Jan/2003) servirá de
instrumento para levar a experiência do Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra (MST) a outros movimentos similares
pelo mundo? É a globalização da luta pela terra?
Stédile:
O FSM é um espaço de debate, de intercâmbio, de
oportunidade para trocar idéias e sonhos. É um Porto cada vez
mais alegre e internacional, em que ancoramos durante uma semana, pessoas do
mundo inteiro.
Em relação aos movimentos camponeses, nós temos uma
articulação internacional que é a Via Campesina, e
também sempre aproveitamos o FSM, para nos reunir, trocar idéias.
Primeiro, entre nós dos movimentos camponeses e depois também com
outros movimentos sociais, nas assembléias mundiais que temos realizado.
Mas também com outros setores sociais. De certa forma, você tem
razão, estamos produzindo uma globalização da luta pela
terra. Porque nos últimos vinte anos, o capital financeiro internacional
e suas multinacionais estão tomando conta da agricultura, das
agroindústrias, do comercio agrícola, em todo mundo.
Então o capital globalizou as formas de exploração, e
trouxe como contradição, que os movimentos camponeses, antes
muito corporativos, localizados, agora também se internacionalizam, se
conhecem, se globalizam. Agora, na Via Campesina descobrimos que os principais
exploradores dos agricultores do Brasil são os mesmos que estão
na Índia, nas Filipinas, na África do Sul, no México, na
Europa, ou seja, a Monsanto, a Nestlé, etc.
2. Quais são, e de que forma se dão, as relações do
MST com outros movimentos de luta pela terra? E a experiência com a causa
palestina, quando em 2002 um integrante do MST foi fotografado ao lado de
Arafat com a bandeira do MST, trouxe algum resultado positivo?
Stédile:
Desde o surgimento do MST sempre tivemos uma visão
latino-americanista, sempre nos encontramos com outros movimentos camponeses.
Tanto porque estávamos mais perto, quanto porque os Movimentos
camponeses do México, América Central, América Andina,
tinham uma experiência histórica maior do que a nossa. Desse
processo, construímos uma articulação latino-americana,
que troca experiências, intercâmbio, e nos reunimos em congressos e
conferencias. Depois, a partir de 1995 construímos a Via Campesina, que
é internacional e reúne hoje mais de 90
organizações de todo mundo, de todos os continentes.
Em relação à Palestina, nossa identidade é de
solidariedade com a luta do povo palestino, assim como de qualquer povo do
mundo que lute por seus direitos. Precisamente quando o Mário Lill,
esteve em Ramalh, estava participando de uma comitiva da Via Campesina
internacional. O episódio teve repercussão internacional, porque
estando a delegação em Ramalh coincidiu com o ataque ao Quartel
de Arafat, que estava cercado. O resultado daquele episodio é que a
solidariedade internacional impediu que o Exército de Israel
bombardeasse o quartel e até matasse o Presidente Arafat.
Mas esse episódio não é isolado. Participamos de muitas
outras atividades de solidariedade. mesmo com o povo de Israel. Temos
intercâmbio com os Kibutzs, conhecemos, aprendemos com seus erros e
acertos. Eu mesmo estive numa missão, em 1999 de visita a um cientista
israelense, Modechai Vanunu, que está preso há mais de 15 anos,
porque denunciou que Israel pode produzir a bomba atômica. Fomos
visitá-lo numa delegação de entidades ganhadoras do
Prêmio Nobel alternativo. Infelizmente não repercutiu no ocidente,
ele ainda continua preso.
Também, gostaria de aproveitar o tema, para denunciar. O governo de
Israel do senhor Sharon proibiu de sair do país, um convidado especial
do FSM, para vir a Porto Alegre. Trata-se do monsenhor Atalla Hanna, bispo da
igreja ortodoxa de Belém, com mais de 70 anos. As autoridades
seqüestraram seu passaporte, pois ele é cidadão de Israel, e
não poderá estar conosco em Porto Alegre.
3. De que forma o MST e a Via Campesina podem contribuir para derrubar as
barreiras comerciais aos produtos agrícolas brasileiros na Europa e nos
EUA?
Stédile:
O MST e a Via Campesina estão discutindo há muito tempo, como as
empresas multinacionais manipulam alguns governos, manipulam a OMC e
impõem suas condições, para obter mais vantagens e mais
lucro. Nós defendemos a idéia de que o comércio
internacional dos produtos agrícolas e alimentos não podem se
reger pela regras da OMC. O comércio internacional deve estar
subordinado a soberania alimentar. Ou seja, todo país tem o direito e o
dever de produzir os alimentos necessários para seu povo. E apenas
vender o excedente, e comprar o essencialmente necessário que não
consegue produzir.
Somos contra a padronização alimentícia, que é um
perigo e um crime contra a diversidade cultural de nossa
civilização, que as multinacionais querem impor. Hoje, o trigo,
soja, milho, e arroz, representam mais de 85% dos grãos consumidos no
planeta. Isso gera uma dependência muito grande da
população. As políticas de subsídios e de
protecionismo práticadas nos Estados Unidos e Europa, não
beneficiam seus pequenos agricultores, beneficiam apenas as grandes
multinacionais, que aí obtém vantagens comparativas para competir
justamente contra os países do Terceiro Mundo, e vendendo de forma
subsidiada nos deixam dependentes.
Nós discutimos sempre as muitas formas de se mobilizar e lutar contra
essa política agrícola internacional. E estamos planejando
grandes mobilizações em todo mundo, para o próximo
mês de setembro, durante a reunião da OMC em Cancun,
México. A OMC não tem direito nem legitimidade, não
pertence ao sistema da ONU, e não pode ter a pretensão de criar
regras para a humanidade.
O mundo está precisando de reorganizar todo seu sistema de organismos
internacionais. Começando pela ONU, que só obedece às
ordens dos Estados Unidos e não consegue fazer que Israel, cumpra suas
deliberações internacionais, só valem quando é
contra países pobres. Os Estados Unidos são os primeiros a
desrespeitar regras internacionais, veja o acordo de Kyoto. Veja o que fizeram
com o nosso embaixador Bustani, quando esse tomou uma atitude independente.
4. A atuação do movimento social deve ser modificada com a
chegada ao poder de um grupo que simpatiza com suas idéias? É
intenção do MST manter a trégua ao governo Lula, ou esta
postura pode representar um atraso às conquistas do movimento? As
ocupações vão continuar ocorrendo?
Stédile:
Os movimentos sociais de todo mundo e aqui no Brasil, devem manter total
autonomia dos governos, do estado, dos partidos e das igrejas. É
daí que vem sua legitimidade e sua força para organizar o povo de
forma independente. Toda vez que um movimento social ficou dependente de
partido, estado ou governo, acabou. Pode até continuar no papel, no
timbre, mas acaba sua força. O que mudou aqui no Brasil com a
eleição e a vitória do Lula é a
correlação de forças, não a forma dos movimentos
sociais atuarem. Com a vitória eleitoral de Lula, o povo disse
claramente que quer mudanças. E deu essa força ao Lula.
Então, agora, no caso da reforma agrária, evidentemente que o
latifúndio perdeu força, e que o governo Lula vai nos ajudar a
combater o latifúndio. Da mesma forma, em relação
às formas de luta. Os movimentos sociais têm autonomia para
decidir suas formas de luta. E as formas de luta não são
resultantes da vontade de dirigentes ou de acordos. Elas são
expressão apenas do nível de contradição social que
se cria na sociedade, por suas desigualdades e injustiças. Pode escrever
em maiúscula,
enquanto no Brasil houver latifúndios de um lado, e sem-terras de outro,
sempre haverá ocupações de terra
. Assim como, enquanto houver especulação imobiliária na
cidade e muita gente sem casa, haverá ocupações de
terrenos urbanos.
5. É cada vez maior a pressão para que países pobres
adotem alimentos transgênicos como alternativa para combater a fome. Na
opinião do MST, a resistência a estes alimentos será
viável em um futuro próximo?
Stédile:
O problema da fome do mundo não é falta de alimentos,
não é falta de produção de alimentos. É
falta de distribuição da comida. Sobra comida na maior parte dos
países. O que falta é o povo ter dinheiro, renda para poder
comprar.
Agora, as pressões que existem para adotar sementes transgênicas
provem das multinacionais, não mais de dez, que querem controlar as
sementes em todo mundo. E como elas controlam a tecnologia dos
transgênicos, na biotecnologia, então querem impor.
O MST e a Via Campesina continuam defendendo com todas as forças, e
aumenta cada vez mais o apoio da sociedade em todo mundo, a luta contra os alimentos
transgênicos. Assim, como fica cada vez mais claro, que as sementes
transgênicas não são mais produtivas, não são
mais rentáveis, e continuam produzindo estrago no meio ambiente. Todos
os dias saem noticias nos jornais sobre essa manipulação.
A propósito, estamos trazendo para depor no FSM um agricultor canadense,
o senhor Percy Shemeister, que tem uma luta histórica contra a
Monsanto, que usa no Canadá métodos dos mais perversos
possíveis para impedir que os agricultores tenham suas próprias
sementes. O que está em jogo, na luta contra os transgênicos,
é o controle ou não das multinacionais sobre os alimentos e a
agricultura. Está em jogo, a sobrevivência dos pequenos
agricultores e camponeses; está em jogo a soberania alimentar dos povos.
E nós lutaremos até o fim e temos certeza de nossa
vitória.
A Humanidade se desenvolveu até os dias atuais, porque a
produção de sementes era democratizada, qualquer camponês
poderia produzir sua semente. Agora, as multinacionais querem o
monopólio. Não permitiremos. Por isso também,
lançaremos no FSM dia 24, a tarde, no estádio do Gigantinho, uma
campanha internacional, chamada
AS SEMENTES SÃO PATRIMÔNIO DA
HUMANIDADE.
E essa campanha será levada em todo mundo, para que os
agricultores produzam suas próprias sementes. Depois faremos uma
atividade no assentamento de Charqueadas para lançar a campanha para
nossa base, brasileira, com a presença de diversas personalidades como
Noam Chomski, Peter Rosset, Pat Money, Silvia Ribeiro, Jean Zigler.
6. A ação do MST sempre foi bastante forte e ao mesmo tempo
polêmica no Rio Grande do Sul (RS). Depois das denúncias da
utilização de uma cartilha com instruções aos
integrantes para a mudança do governo, que ações o
movimento planeja para 2003 para o Estado e para resgatar a simpatia da
sociedade gaúcha?
Stédile:
O polêmico na nossa sociedade é como explicar que em pleno
terceiro milênio ainda tenhamos a propriedade da terra concentrada em
tão poucas mãos? Polêmico é, porque um banco
precisa ter terra? Porque a VASP (companhia de aviação) precisa
ter fazendas? Porque um burguês qualquer da cidade precisa ter fazendas?
Isso é polemico. E os pobres do campo têm o direito de denunciar.
O MST do RS não é polêmico, ele é lutador! O que
diferencia dos outros estados, é que aqui no RS, temos o
monopólio dos meios de comunicação mais concentrado, aonde
uma empresa como a RBS, manipula, mente freqüentemente, e se transformou
num partido da burguesia. extrapolou completamente suas funções.
Durante quatro anos fez uma campanha clara, explícita, mordaz contra o
governo popular e contra o MST e todos movimentos sociais. Espero que um dia a
sociedade gaúcha se dê conta dos males que esse tipo de
comportamento faz para a democracia e a justiça social.
A sociedade brasileira e gaúcha tem muita simpatia pelo MST e pela
reforma agrária, se não fosse isso, já teríamos
acabado. A RBS fez uma campanha hedionda contra nossa escola de
Veranópolis, mas a sociedade de Veranópolis, que nos conhece, nos
defendeu. As pessoas sensatas, e mesmo as autoridades do novo governo
gaúcho sabem, de que enquanto houver tamanhas contradições
entre o latifúndio improdutivo e milhares de famílias sem terra,
sempre haverá conflitos sociais.
7. É o terceiro ano em que você participa do Fórum Social
Mundial. Qual é a sua avaliação sobre a
contribuição do evento às causas sociais?
Stédile:
Como disse no início, o FSM é um porto. Não é uma
articulação, não é sua função
organizar, tirar documentos ou linhas políticas. Mas ele tem sido um
espaço importante para debater idéias. E isso tem sido
fundamental nessa conjuntura internacional e nacional, de hegemonia do
neoliberalismo e da ampliação do monopólio das
comunicações. Graças ao FSM, os tema sociais, as causas do
povo voltaram a ter espaço, e foi possível dizer que não
é verdade que o neoliberalismo é o fim da história. O FSM
rompeu com a hegemonia do pensamento único que existia nos
meios de comunicação, nas universidades, nos meios
políticos. Então, a maior contribuição do FSM, foi
estimular o debate. E espero que com o novo governo Lula, se abra um
período de debate em toda sociedade brasileira. Todos sabemos as
limitações para realizar as mudanças que o novo governo
enfrentará. Mas a saída é o debate, é formar
grandes correntes de opinião pública, é a
organização das pessoas, é a participação
popular. É a mobilização da sociedade.
[*]
Do Portal Terra. Entrevista realizada em 15/Jan/03.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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