Os sem terra do Brasil
— a epopeia, a tragédia e a farsa
por Miguel Urbano Rodrigues
No tribunal do Estado do Pará, no Brasil, terminou o julgamento dos
oficiais e soldados que, numa chacina inesquecível, abateram como gado,
em Abril de 1996, 21 trabalhadores do Movimento dos Sem Terra, feriram 64 e
espancaram os demais.
Ao longo de uma audiência de 120 horas aquela Corte de Justiça foi
palco de um espectáculo com cenas que lembravam autos de Gil Vicente.
Os matadores foram todos absolvidos, com excepção de dois
oficiais que passeiam, aliás, pelas ruas, em liberdade condicional.
Há seis anos o massacre levantou uma vaga de indignação
tão alta que o Presidente Fernando Henrique Cardoso sentiu a necessidade
de condenar o crime com veemência. Recordo que na época exigiu
punição exemplar para os responsáveis, sublinhando que, se
tal ano acontecesse, o povo teria motivos para não confiar nas
instituições.
Que se passou no tribunal?
Embora a matança de Eldorado dos Carajás tenha sido uma
tragédia, o juiz, o Ministério Publico e as testemunhas de defesa
montaram na audiência uma farsa aplaudida pelos latifundiários da
região, que conceberam e organizaram a chacina e pagaram aos oficiais e
soldados da Policia Militar do Pará que a executaram.
Os trabalhadores assassinados morreram crivados de balas, algumas disparadas
à queima roupa, na nuca. Mas os réus sustentaram que tinham
atirado apenas para o ar. Perplexo juiz concluiu que não havia provas,
e mandou-os para casa.
Que diz o Presidente agora? Lava as mãos como o procônsul romano
na velha Palestina. Nem outra atitude seria de esperar de um estadista da sua
têmpera. FHC não esquece que o Brasil é uma republica
federativa, onde funciona muito bem a separação de poderes
estabelecida na Constituição. FHC pode, como cidadão,
lamentar a sentença, por insatisfatória, mas não lhe
passou sequer pela cabeça, credo, ingerir-se em áreas da
competência do Judiciário.
Entretanto, pelo mundo afora alastra o protesto contra a
absolvição dos criminosos e cresce a solidariedade aos Sem Terra
brasileiros. Eles merecem. O
MST
não é somente um dos
movimentos sociais mais importantes da América Latina. A luta de muitos
anos, travada em condições dificílimas, desenvolveu nos
seus membros uma combatividade e uma consciência social que o
transformaram numa força potencialmente revolucionária. Nas
estradas do imenso país, nos acampamentos, nos assentamentos, nas longas
marchas, enfrentando a feroz repressão de muitas policias e do
Exército os homens e as mulheres do MST acabaram descobrindo que
o sistema responsável pelo seu martírio, o sistema capitalista,
somente serve para empobrecer o povo em beneficio de uma minoria pelo que,
cedo ou tarde, terá de ser substituído por outro.
Sem abandonarem o conceito pacifista da luta, sem pegarem em armas de fogo,
sequer para se defenderem, os Sem Terra tendem, paradoxalmente, a
transformar-se pela própria lógica dos seus objectivos
humanistas, num movimento, repito, com vocação
revolucionária.
O «NOVO MUNDO RURAL»
— O MITO PERVERSO DE FHC
Nunca como hoje foi tão necessária a solidariedade com o MST. A
expansão do Movimento, a justiça da causa pela qual se bate, a
recusa da violência pelos militantes, a firmeza com que defendem os
assentamentos, as marchas fraternas através do país, a
criatividade das soluções que em acampamentos e agro-vilas
anunciam um novo tipo de sociedade contribuíram para gerar em torno dos
Sem Terra, mesmo entre as classes médias urbanas, uma aura de simpatia.
O governo sentiu o perigo e mudou de táctica. O presidente fechou as
portas ao diálogo. O objectivo é o mesmo aniquilar o MST
mas o método, agora, é outro.
O combate ao Movimento foi no fundamental transferido da área
política para a económica. Para Fernando Henrique e o seu
entourage
a Reforma Agrária não passa de uma utopia perigosa. O discurso
oficial passou a apresentá-la como inutilidade perseguida por uma
organização de fanáticos, perturbadora da ordem social.
Ao projecto do MST, é contraposto por FHC outro, inspirado no modelo
agrícola norte-americano.
O «Novo Mundo Rural», assim se chama o mostrengo ideado e enaltecido
pela propaganda do governo, seria segundo os epígonos uma sociedade
quase perfeita, de camponeses prósperos e felizes. Domesticada e
comandada, claro, pelas transnacionais que desnacionalizaram a agro-industria
e estimularam a criação de gigantescas fazendas (a maior do
país tem o tamanho da Bélgica).
Nesse «Novo Mundo Rural» escreve com ironia o prof.
Mançano Fernandes não existem conflitos, não
há ocupações de terras, não existem acampamentos
dos Sem Terra, os assentamentos são iniciados pelo governo e, em
três anos, em média, estão consolidados. Nesse processo
extraordinário os trabalhadores entram como sem terra e saem como
agricultores familiares, prontos para o mercado, prontos para se tornarem
prósperos capitalistas».
[1]
Atrás da máscara oculta-se o jogo real de um projecto desumano:
«no novo mundo rural adverte Mançano vale tudo para
se inventar este novo momento, desde criminalizar as ocupações a
considerar famílias não assentadas como se já estivessem
de facto na terra». O que interessa é mentir ao país,
tentar convencer o povo de que a questão agrária está a
caminho de ser resolvida. Através, obviamente, de uma fórmula
capitalista. O governo inventa os sem terra bonzinhos, uns seres robotizados
aos quais é dada terra e dinheiro, e sataniza os verdadeiros Sem Terra,
perseguindo-os como espécie maléfica em vias de
extinção.
O idílico «Novo Mundo Rural» de FHC não poderia,
é transparente, ser ensaiado sem a intervenção protectora
do braço musculado do Poder. O governo intensificou fortemente a
repressão contra o MST para abrir espaços ao seu projecto
mítico.
Desde o inicio do seu segundo mandato, FHC, na sua ofensiva permanente contra o
Movimento, travou o combate em múltiplas frentes: o governo utilizou a
comunicaçao social, o Poder Judicial, a Policia Federal, cortou recursos
e créditos, falsificou estatísticas, acumpliciou-se com
fazendeiros criminosos.
A poucos meses das eleições as açcões
intimidatórias desencadeadas pelo Executivo assumem uma amplitude e
gravidade crescentes. João Pedro Stedile, membro da
Coordenação Nacional do MST, acaba de denunciar numa entrevista
[2]
ao jornal
Correio da Cidadania
, de São Paulo, a onda de repressão que atinge os Sem Terra na
zona do Pontal do Parapanema, um dos baluartes das lutas do Movimento. O MST
é ali tratado como se fora uma quadrilha. Primeiro a Policia pedia a
prisão preventiva dos lideres de um acampamento; depois, um Procurador
da Republica ampliou o pedido, solicitando a prisão de toda a
direcção regional do MST. Um juiz local, solícito,
deferiu o pedido. Tudo em menos de 24 horas.
BASTA!
Há poucos meses, em Belo Horizonte, tive a oportunidade de conviver com
quadros do MST durante um seminário em que debati com eles
questões de política internacional. Para mim foi uma jornada
gratificante em que aprendi mais do que tentei ensinar.
É sempre difícil proceder ao ajustamento da realidade imaginada
à realidade concreta. Naquele dia impressionou-me sobretudo a
facilidade e a rapidez com que quadros do Movimento, vindos de todo o Brasil, a
maioria alguns com nível de instrução modesto, apreendiam
o significado de complexos acontecimentos mundiais. Falando eu da
«cruzada antiterrorista» de Bush, da agressão ao povo do
Afeganistão, das explosões sociais na Argentina, da unipolaridade
posterior ao fim da URSS, dos mecanismos da globalização
neoliberal, do bloqueio a Cuba, da Alca aquela gente ia directa ao cerne
dos problemas e, usando um mínimo de palavras, demonstrava,
através de perguntas e comentários, uma comovedora
compreensão da política criminosa do imperialismo, da sua
estratégia de dominação mundial e da necessidade de os
povos da América Latina se unirem no combate ao inimigo comum.
Eu ouvira falar da «mística» dos Sem Terra. E a palavra, pela
sua conotação religiosa, chocava-me.
Desde entao, noutros encontros com companheiros do MST, estive presente em
diferentes «místicas». Porque elas abrem e encerram quase
sempre iniciativas promovidas pelo Movimento. E a minha perspectiva hoje
é outra. No caso o que importa não é a palavra que
designa uma atitude, mas esta em si mesma.
Acho belíssimas as «místicas» do MST; estão
voltadas para o combate e não para o transcendente.
Nas que acompanhei em Belo Horizonte havia dança, música, canto,
teatro, mímica poesia, imaginação plástica,
enquadrando um discurso político muito simples com uma enorme carga de
combatividade.
Deixei Minas Gerais com a convicção reforçada de que a
grande saga do MST não será detida pela violência
desencadeada contra o Movimento. A vitória, sem data no
calendário, espera gente maravilhosa.
O que esses combatentes precisam desesperadamente, num momento crucial da sua
luta, é de mais solidariedade, brasileira e internacional.
A grotesca farsa da absolvição dos assassinos de Eldorado dos
Carajás abre uma oportunidade excelente para a ampliação
dessa solidariedade.
Dos progressistas da Igreja brasileira ela sobe calorosa. De uma nota sobre o
julgamento farsa emitida pelo Sector Pastoral Social da Conferencia Nacional
dos Bispos do Brasil, transcrevo, sem comentários, um parágrafo:
«Apelamos aos poderes constituídos, executivo, legislativo e
judiciário, bem como a todas as entidades e movimentos da sociedade
civil organizada, no sentido de se empenharem por um BASTA! a esta espiral de
violência cujas vítimas são quase sempre os mais pobres e
indefensos».
[3]
Faço votos para que os muitos amigos do MST no vasto mundo tornem seu
este apelo vindo da Igreja católica do Brasil.
__________________
[1] Bernardo Mançano Fernandes é professor da Universidade do
Estado de São Paulo, campus de Presidente Prudente. O trabalho
encontra-se em
http://resistir.info/brasil/conflitos_2001.html
[2] João Pedro Stedile, in «Correio da Cidadania», 8 de Junho
de 2002, e reproduzido em
http://resistir.info/brasil/perseguicao_mst.html
[3] Divulgado pela Pastoral Social da Conferencia Nacional dos Bispos do
Brasil, Brasília, 13 de junho de 2002
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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