“Penso que nas próximas eleições o PT irá sentir a primeira derrota"

Entrevista de Ricardo Antunes
a Mario Hernández [*]

Também existe edição em português. Clique na capa para acesso à editora. M.H.: Estamos com Ricardo Antunes, professor de sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no Brasil. Ricardo não é apenas um professor, mas também um activo militante do PT, e um dos principais subscritores do manifesto da esquerda do PT, junto com Luciana Genro, João Fontes, Babá e outros companheiros, em Julho deste ano. A nossa intenção é fundamentalmente — aproveitando esta visita à Argentina para apresentar a segunda edição do seu livro Adeus ao trabalho? — conversar sobre a situação no Brasil e sobre o governo de Lula. Nesse sentido, queríamos começar a entrevista perguntando a tua opinião acerca do recente comentário do sociólogo André Gunder Frank que comparou Lula a Lech Walesa.

R.A.: É uma comparação que, por um lado, tem sentido e por outro, não. Como Lech Walesa, Lula é oriundo de um movimento operário espontâneo e fortemente sindical, sem a participação política partidária. Lula emergiu de um movimento de base, dos sindicatos de São Bernardo, e adquire importância política a partir da luta sindical. Mas há uma diferença que eu penso que deve ser acentuada: durante os últimos vinte ou vinte e poucos anos, Lula foi-se pouco a pouco convertendo na principal direcção política de um partido dos trabalhadores, o PT, que por sua vez, se converteu, ao longo dos últimos 10 ou 15 anos num partido social-democrata, fortemente institucionalizado e hoje se caracteriza por ser um partido do sistema. É um partido de esquerda dentro do sistema. Lech Walesa não tem esta trajectória e penso que hoje tem uma participação muito secundária. Lula não. Tem uma importância política agora, com o seu governo, e isto é o que o aproxima de Walesa, está dando claros sinais que chegou ao poder para se converter no gestor do sistema burguês, chegou ao poder para ser o administrador da crise ou, como eu disse provocatoriamente, à Folha de São Paulo, Lula actua como paladino do neoliberalismo e mostra como vai mal o seu governo quando a perspectiva é de mudanças, que se poderiam estar a realizar a favor dos interesses populares. Mas, até agora, não vi nenhuma mudança em favor do povo, nem da classe trabalhadora, nem dos desempregados. Pelo contrário, o desemprego está agora no seu décimo mês de crescimento, aumentou muito o desemprego e diminuíram muito os rendimentos do trabalho nos últimos anos no Brasil.

M.H.: Ricardo, esta análise que faz, de alguma maneira tem algumas contradições com algumas outras opiniões de importantes dirigentes como, por exemplo, João Pedro Stédile do MST, que assinalou que o governo de Lula é um governo em disputa entre três sectores, um sector neoliberal, um sector que defende pequenas reformas e um sector integrado pelos movimentos sociais, partidos políticos e as igrejas progressistas. Que apreciação faz desta opinião de João Pedro?

R.A.: Primeiro, devo dizer que sou um estreito colaborador do MST, que é o mais importante movimento social e político do Brasil e, talvez, da América Latina hoje em dia. O MST tem no Brasil 600 mil ou 700 mil pessoas que acampadas lutando pela terra, pela sua propriedade colectiva, etc. Segundo, e isto é muito importante, o meu companheiro Stédile fala em nome de um movimento, não fala em seu próprio nome, porque sempre que Stédile fala, fá- lo em nome de um movimento que tem mais de um milhão de pessoas; quando falo eu, faço-o apenas em meu próprio nome. Que se passa então que é importante compreender? O MST, nos últimos 8 ou 10 anos, pelo menos, vem mostrando à sua base militante que era importante a eleição de Lula, que seria uma oportunidade real de mudar o país. Por uma série de motivos que podemos abordar nesta entrevista, Lula, que ganhou em 2002, é representante de um partido desvertebrado, um partido que se desfibrou, que se desvertebrou, ao longo dos anos 90, pelo menos. Mas quando se tratou da eleição de Lula, ou era Lula com reais possibilidades de ganhar ou o esquema de Fernando Enrique Cardoso; não havia outra alternativa, a candidatura do PSTU que foi uma candidatura positiva e corajosa, do meu amigo e companheiro José Maria Almeida, era para marcar posição, tanto que obteve menos de 1 %, era uma candidatura para fazer a denúncia do ALCA, a necessidade de uma crítica de esquerda. Neste sentido foi uma candidatura positiva, mas sem nenhuma pretensão eleitoral, obteve 0,6 ou 0,7 pontos, ou algo assim.

Muito bem. O MST preparou a sua base para apoiar Lula, em minha opinião não foi errado, também eu votei nele, não havia outra alternativa, o voto nulo teria sido uma coisa completamente fora de lugar. Não havia e não há hoje no Brasil uma esquerda social e política com força eleitoral alternativa. Há uma força social e política como o MST que não tem correlação directa com a luta político-eleitoral. Como resultado, o MST tem que preparar as suas bases, e nas bases do MST há muitos homens e mulheres que nunca tiveram vida política, que foram ao MST pela barbárie, pelas penúrias, pela precarização e o processo de consciencialização destas bases muito populares é longo.

Se o MST falou durante anos pedindo às suas bases que votassem em Lula e, dois ou três meses depois lhe dizem que Lula não dá mais, os tempos de um movimento social e político, com mais de um milhão de pessoas é um tempo diferente, portanto, o que fazem hoje Stédile e o MST, não é uma confrontação directa com Lula no plano verbal, mão estão ocupando todas as terras onde haja espaço no Brasil. A ocupação das bases cria uma situação de facto e dizem a Lula: temos que negociar. E eu creio que o MST está a fazer o que é correcto, porque o tempo do MST é diferente dos nossos tempos. Para mim, é claro que o governo de Lula abandonou já os seus compromissos essenciais com o povo, incluso na questão agrária. A política económica é a do FMI, a autonomia do Banco Central também é coisa do FMI, a trágica política de desmantelamento da previdência pública é do FMI, a reforma tributária também, a única coisa que Lula diz que vai fazer é a reforma agrária, claro que há um debate dentro do governo, será uma "reforma agrária" como quer o FMI, os latifundiários e as grandes empresas capitalistas, ou será uma reforma agrária minimamente comprometida com os interesses populares? O MST propôs Plínio de Arruda Sampaio como responsável do projecto da reforma agrária de Lula, um intelectual de esquerda muito comprometido com as lutas populares. Ele foi aceito e o MST agora aguarda a concepção do projecto de reforma agrária e o que o governo Lula irá fazer.

É por esta razão que o MST vê o governo de Lula como um governo em disputa. Eu digo que se estivesse na direcção do MST também estaria dizendo estas mesmas coisas, mas como intelectual crítico que sou, colaborador e profundo admirador do MST, mas com autonomia e para ajudar no debate, não posso deixar de lhes dizer que o governo de Lula vai muito mal, inclusive na gestão agrária. O MST pediu o assentamento este ano de 120.000 propriedades, o governo de Lula começou por falar de 60.000, agora fala de 7.000, mas estamos no fim de Outubro e não se realizou nenhum assentamento. E mais, aumentaram as mortes dos militantes do MST no campo, pior ainda, há presos políticos do MST, a justiça iniciou uma campanha de criminalização e o governo de Lula não faz nada para impedir esta política. Para concluir esta questão, que é complexa, creio que pouco a pouco, vai tornar-se claro para o MST que as probabilidades de uma reforma agrária profunda são pequenas. E mais, o MST é o maior movimento social e político do Brasil que contra o ALCA. Se Lula continuar com a sua política para o ALCA, dizendo não sei, vamos conversar, vamos discutir um ALCA bom, este vai ser o limite para o MST. Porque o MST perdeu a batalha dos transgénicos, o MST era profundamente crítico dos transgénicos e há duas semanas, Lula liberalizou os transgénicos. Outra tragédia. Agora resta para o MST a política agrária, a política do ALCA, a política económica e eu penso que em alguns meses mais o MST vai começar uma análise também crítica, mas o fundamental, é que o MST faz a crítica fundamental que consiste em ocupar terras, estradas, armazéns, tudo o que se pode ocupar, para mostrar que os desapossados do campo e da cidade não suportam mais viver sem terras, sem trabalho, sem salário nem alimentos.

M.H.: Por outro lado, lançou-se uma importante campanha, o plano Fome Zero, que, pelo que percebi, é conduzida por Frei Betto, que salientou tratar-se, não de um programa no assistencialista, mas sim de um programa de inclusão social, que reduziu a mortalidade infantil, que melhorou a qualidade de vida, que os empresários participam porque estão motivados e, como conclusão, Frei Betto assinala que Lula formou um governo muito amplo, com o melhor da sociedade brasileira. Que reflexão te merecem estas opiniões?

R.A.: Bem, tenho de fazer-te um esclarecimento. Frei Betto é também um intelectual de esquerda, de origem católica muito respeitável, esteve nos últimos 30 ou 40 anos ligado às lutas populares no Brasil.

Frei Betto, na minha opinião, é o melhor que tem o governo de Lula, que é muito negativo; Frei Betto é a ponta melhor, porque o governo de Lula é concessão atrás de concessão. Há pouco tempo, morreu o presidente do PTB, do velho peleguismo corrupto, do pior de Getúlio Vargas, e Lula foi a esse enterro e teve que escolher o horário da visita para não se encontrar com Collor de Melo. Penso que isto simboliza que aqueles e aquelas que 10 anos atrás apoiaram Collor, hoje apoiam Lula. Então naturalmente o governo de Lula não é o melhor, há aí figuras muito negativas, como o ministro da Agricultura, que é o defensor do pior agro-business, é um defensor da multinacional Monsanto; o presidente do Banco Central é do Banco de Boston, é um polícia do capital financeiro. Bastaria citar estes dois. Também lá está Palocci, o ministro das Finanças, que é a direita, da direita, da direita, do que um dia se chamou esquerda. Então, a situação do governo do PT é muito negativa. O programa Fome Zero é propaganda. Claro que há uma situação no Brasil de fome brutal; entre 30 a 40 milhões de pessoas têm fome, não comem um mínimo por dia; assim, posso concordar que é necessária uma campanha de emergência contra a fome.

Qualquer governo de esquerda que ganha uma eleição e vê que 40 milhões de pessoas não comem, tem que tomar uma decisão de emergência, mas o programa Fome Zero não faz as mudanças estruturais, seria preciso fazer a reforma agrária, uma política de aumento salarial, porque o salário mínimo no Brasil é hoje de 80 dólares e uns 40% a 50% da população recebe menos disso; essa soma por mês não é nada, não chega nem para pagar uma casa numa favela, que custa mais caro que isto. Como resultado, o programa Fome Zero é uma espécie de distribuicionismo reformista, com muita propaganda e não significa nenhuma reforma estrutural. O único que funciona hoje bem são os homens do marketing, é Duda Mendonça, "um grande homem" que ainda há alguns anos fazia o marketing político de Maluf que é de extrema direita, proto-fascista. Depois migrou para o lado de Lula, é um homem de marketing muito competente, vende Coca-Cola, McDonald's, vende tudo o que é para vender, faz muita propaganda do governo de Lula, e é inclusive responsável da propaganda do programa Fome Zero, que até ao momento se pode dizer que é um completo fracasso, não faz nenhum sentido de reforma estrutural. Eu tenho um respeito verdadeiro por Frei Betto, porque sofreu a repressão durante a ditadura, porque quando o MST é agredido, defende-o, porque quando as lutas operárias são acossadas, ele que tem muito acesso à imprensa, defende-os, tem a coragem de defender Cuba e nesse sentido merece todo o meu respeito. Mas não estou a falar da política de Frei Betto, mas sim do programa Fome Zero do governo de Lula e a minha análise é profundamente crítica.

M.H.: Pretende-se implementar no Brasil a reforma da segurança social, que na Argentina se mostrou um fracasso absoluto. Houve um ataque muito duro aos trabalhadores do sector público da parte do governo de Lula. Qual é a tua opinião a respeito desta reforma da previdência?

R.A.: Penso que este foi um aspecto da gestão crucial; depois dela pode ter-se uma ideia clara do sentido do governo de Lula. Antes dela podíamos ter dúvidas, para mim foi o ponto culminante. Escrevi no diário do MST um artigo que se chama "A contra-reforma da imprevidência", ou seja, a contra-reforma da não previdência. Digo nesse artigo que, tal como Fernando Henrique deixou cair a máscara quando reprimiu a greve dos trabalhadores do petróleo em 1995, tal como Margaret Thatcher mostrou o seu verdadeiro rosto na greve dos mineiros em 1983, que durou um ano, o governo de Lula desmascarou-se com a forma nefasta como tratou a previdência pública. Vou apenas resumir, porque senão falaríamos mais de uma hora: primeiro, a reforma da previdência é uma imposição assinada por Fernando Henrique Cardoso com o FMI. Segundo, o PT sempre esteve contra a reforma de FHC. Em 1999 Lula disse que esta era uma medida ilegal, impossível de ser levada adiante e agora praticou ele a ilegalidade. Isso passou por uma confluência de muitos elementos: é evidente a exigência do FMI e o governo de Lula cometeu um erro muito grave.

Nos primeiros meses, em vez de utilizar a sua força político-eleitoral de 53 milhões de votos para dizer isso não, tentou ganhar a confiança do FMI e do sistema financeiro internacional, quis mostrar-se como sendo um governo moderado e de confiança e passou a tratar a coisa pública, a previdência pública, a saúde pública, a educação pública, os serviços públicos, como se os assalariados ou os funcionários públicos fossem os responsáveis da tragédia do país. Iniciou uma política de fragmentação dentro da classe trabalhadora, lançando os trabalhadores assalariados do sector privado contra os do público. Nem Collor, nem FHC, conseguiram isto.

Lula passou a dizer que os funcionários públicos eram os responsáveis pela crise do país. Não era o sistema financeiro, não era o Fundo Monetário Internacional, não era a burguesia, não eram as multinacionais, não eram os latifundiários, não eram os burgueses nacionais, eram os funcionários públicos. Depois disto fez uma coisa muito nefasta. Ao privatizar os fundos de pensões, ou ao permitir que os fundos públicos de pensões ingressassem no mercado financeiro, imaginou desenvolver o capitalismo brasileiro aliando o capital financeiro ao sindicalismo, porque na ideia dos líderes do governo, muitos sindicatos fortes criaram fundos de pensões que serão administrados de acordo com a lógica financeira, pelos mesmos sindicatos. É o que designo como a fusão do sindicalismo com os negócios financeiros. Isto está a dar origem a uma casta sindicalista financeira da pior espécie.

O que é mais grave é que há 10 anos atrás estava ligada às bases ou era o que chamávamos no Brasil o Novo Sindicalismo. A reforma da previdência é privatizadora, é financista, é fiscalista, não resolve a questão da previdência, não diz uma única palavra, só há um artigo que diz que futuras leis vão cuidar de 40 milhões de homens e mulheres que estão no mercado de trabalho informal. O governo diz que se trata de uma reforma pública e universal, mas na realidade é uma farsa imposta pelo FMI que o governo de Lula comprou porque os recursos, dizem alguns economistas, serão mais volumosos que os que aportaram as privatizações durante o governo de FHC, ou seja, é uma mina de ouro. E esta mina de ouro vai parar às mãos dos privados e dos sindicalistas que controlam os fundos de pensões dos grandes sindicatos. Isto tem outra consequência nefasta. Os grandes sindicatos não vão lutar mais por salários, vão passar a lutar por administrar bem o sistema financeiro, vão procurar a forma de investir bem no sistema financeiro. Não vão continuar a combater o sistema financeiro, vão passar a fazer parte dele. Em dezembro de 2002, não imaginávamos que a primeira medida de Lula seria a intensificação daquilo que o mesmo Lula e o PT tinham impedido FHC de fazer, e para mim este foi o ponto, objectivamente falando, crucial, que tornou claro de que lado estava Lula. A partir desse momento, o governo de Lula já não está em disputa, mas foi conquistado pelos sectores do sistema. Por isso é que iniciamos uma campanha, agora sim, claramente de crítica, mas temos que compreender uma coisa, 53 milhões de pessoas votaram em Lula, este voto e o voto militante do PT, na minha análise, estará dando ao governo de Lula mais ou menos um ano de prazo, para depois começar a mudar de lado.

Completado um ano o povo vai dizer: "e agora, o emprego, e agora, a reforma agrária, e agora, a política salarial, e agora, a luta contra a fome", e as coisas vão complicar-se. Por fim, devo dizer, que a reforma da previdência, foi aprovada pelo governo de Lula com as alianças mais espúrias possíveis com a direita, o pior tipo de alianças. Houve um movimento muito importante que levou a Brasília, a capital federal, 60 mil trabalhadores em franca oposição ao governo de Lula. Foi a primeira manifestação de massas que o governo de Lula enfrentou. Disto se conclui que uma parte do mundo do trabalho já não tem expectativas em relação ao governo de Lula e o considera seu inimigo. Eu penso que nos próximos três anos teremos muitos combates pela frente.

M.H.: Lula e 12 dirigentes da CUT fazem parte do governo. A CUT realizou em Junho o seu 8º Congresso e celebrou também os 20 anos da sua fundação. Actualmente, agrupa seis milhões de filiados. Como se vive toda esta situação que vocês estão a desenvolver no interior da CUT?

R.A.: É uma situação de clara, profunda e, diria mesmo, irreversível divisão. A CUT é hoje dirigida por Marinho, que é do grupo muito íntimo de Lula, foi designado pelo Planalto, para substituir o antigo líder, Felicio, que também era do sector interno da Articulação, mas estava ligado aos funcionários públicos. O governo de Lula mudou, entabulando uma negociação para tirar Felicio e colocar Marinho, do ABC. Com isto a CUT aparece como um braço do governo. Pode fazer algumas críticas, mas no fundamental é um suporte do governo. E mais, os funcionários públicos já tomam a CUT dominante, a CUT-Articulação como seu inimigo. Todas as vezes que a direcção da CUT, através de Luiz Marinho, tentava falar nas greves dos funcionários públicos, não lhe era permitido. Actualmente, uns 30% da CUT são críticos, alguns completamente contrários ao governo de Lula, que são os que lideraram a greve de mais de 30 dias dos funcionários públicos. Há outros sectores que, apesar de críticos, participam no governo, têm um pé na crítica e outro no governo. Imagino que não vai ser fácil a convivência do que poderíamos chamar as duas CUTs, uma CUT pró-governamental e outra anti-governamental. Além disso, uma parte fundamental não vai aceitar a conversão da CUT numa central financeira, envolvida na gestão dos fundos de pensões. Porque não é a convivência dos diferentes, mas sim dos contrários. Parece-me muito difícil que, tal como sucede no PT, a CUT não sofra uma cisão.

M.H.: O triunfo de Lula evita de alguma maneira que no Brasil se produza uma situação como a que se viveu na Argentina em Dezembro de 2001 ou na Bolívia, com a queda de De la Rúa e Sánchez de Losada, em resultado de mobilizações populares que puseram seriamente em causa o modelo neoliberal?

R.A.: Sim e não. Sim, na medida em que uma parte do povo depositou muitas esperanças em Lula, uma parte dos 53 milhões que nele votaram ainda tem a esperança de que Lula vá proceder mudanças importantes. Neste sentido, esta esperança dificulta a intensificação das lutas sociais. Por outro lado, o governo de Lula, o partido de Lula, o PT, sempre participou das lutas sociais, especialmente nos anos 80. Na década seguinte o PT consolidou a sua viragem para se tornar um partido social-democrata. Actualmente, o desemprego aumenta, o salário é muito baixo, a reforma agrária não avança, os riscos do ALCA, isto abre uma situação em que muitos vão dizer, se Lula não vai fazer, temos que lutar. E há uma dificuldade adicional, grande. Eu explicava há alguns dias numa palestra sobre o ALCA no Paraná, em Entre Rios, com estudantes, que há um ano atrás fizemos um plebiscito de onze milhões de votos contra o ALCA, apoiado pela CUT e também pelo PT. Agora, tudo o que se faz no Brasil contra o ALCA tem a oposição ou a distância da CUT e do PT dominante. Isto dificulta as coisas porque se trata de dois instrumentos que nasceram do povo e agora se viram contra o povo. O que se passou na Argentina e na Bolívia é sinal de que a América Latina já não suporta o neoliberalismo, venha ele de Menem, de De la Rúa, venha de Fujimori, venha de Lula, venha donde vier. Tenho a certeza que estes governos que nasceram com uma expectativa popular, como Gutiérrez no Equador, que foi líder de uma rebelião popular há três anos, e agora, seis ou sete meses depois de assumir o governo, governa dentro do sistema, esses governos que foram eleitos com votos da esquerda, como Gutiérrez e Lula, na medida em que não realizem as mínimas reformas que os povos esperam, sofrerão forte oposição. O problema é que, do meu ponto de vista, isso vai demorar muito mais tempo porque há muitos que ainda têm a ilusão que se trata de governos que vão proceder a mudanças.

M.H.: Todo este panorama que nos estás a expor, em função da situação do Brasil, do governo de Lula e a situação do PT, faz de alguma maneira prever a formação de uma nova força política de esquerda. Li, por exemplo, que vocês falam da necessidade de um movimento que combine renovação com radicalidade. Gostaria que nos explicasses o que querem dizer com isto.

R.A.: Penso que isto é fundamental, eu sou um intelectual marxista, que considera o marxismo fundamental para uma análise crítica do mundo de hoje. Penso que o século XXI recupera a actualidade da questão socialista porque o socialismo foi derrotado no século XX, depois da experiência russa. No entanto, Seattle, Praga, Génova, o MST, o Zapatismo, a rebelião na Bolívia, os piqueteiros na Argentina, as greves na Europa e em muitas partes da América Latina, a própria greve geral na Colômbia e na Bolívia, onde houve movimentos indígenas que, junto com a greve geral, criaram uma situação de crise e derrubaram o governo boliviano, tudo isso mostra que o século XXI será de profundas lutas sociais no âmbito nacional e mundial. Assim como o capital se mundializou, as lutas sociais também se mundializam. Isto coloca-nos um desafio: temos que ter um marxismo contemporâneo, costumo dizer um marxismo renovado e radical, não um marxismo renovado e moderado, institucional e dentro do sistema, tão pouco um velho marxismo aparentemente radical.

Por exemplo, penso que hoje, ao falarmos de movimentos populares, não podemos defender os partidos de vanguarda, os velhos partidos marxistas leninistas como alternativa, na minha opinião, estes partidos são parte da história que acabou no século passado. Precisamos agora, por exemplo, o que no Brasil é o MST, movimentos sociais radicais, que são ao mesmo tempo movimentos sociais e movimentos políticos, esta foi a coisa mais positiva dos primeiros anos do movimento zapatista, ser ao mesmo tempo movimento social e político. Estes dois exemplos são os que chamo movimentos de uma esquerda social renovados e radicais. Que são capazes de mostrar a contemporaneidade do marxismo. Houve um diálogo muito belo de Marx com as suas duas filhas. Uma delas perguntou-lhe uma vez qual era o seu lema de vida e Marx respondeu: 'Duvidar de tudo'. O nosso marxismo tem que duvidar da nossas certezas para poder avançar e tem que ser radical. Não é possível pensar no século XXI a recuperação da Humanidade, o fim da lógica destrutiva do mundo actual, o fim deste capitalismo profundamente destrutivo e supérfluo, senão recuperando uma concepção profundamente radical contra o sistema de mercado, contra o sistema do capital, contra o seu Estado e contra a sua política. Sou a favor de um movimento renovado e radical dos marxistas e também dos não marxistas, como é o caso de Noam Chomsky, que seja profundamente crítico do sistema. Citaria dentro do marxismo gente que faz um grande esforço pela sua renovação e pela sua radicalidade. István Meszáros na Inglaterra, James Petras nos Estados Unidos, Francois Chesnais em França, nós procuramos fazer o mesmo no Brasil, Alain Bihr e muitos outros. Ou seja, marxistas e outros que não o são propriamente, para fazer uma crítica radical do sistema.

É este o nosso desafio. É evidente que se o PT se converteu num partido do sistema, num partido institucionalizado, na esquerda dentro do sistema, se é um partido social-democrata, a esquerda social brasileira, que é muito vasta, tem que procurar outras alternativas. Claro que este é um processo muito complexo e longo. Três deputados e uma senadora podem abandonar o PT. Isto vai criar uma primeira discussão. Muitos vão dizer: "se eles saem, nós também sairemos". Outros vão a dizer: nós não vamos sair agora; vamos disputar o PT, para fazer uma disputa profunda, para demonstrar que quem deveria sair é a direcção". Claro que ao longo dos meses, vão-se dar conta que o PT é uma máquina que tem uma direcção que controla e que, portanto, vão ser colocados numa situação clara: Ou se defende o governo de Lula ou se está fora do governo de Lula.

Isto vai abrir muitas discussões com tempos diferentes, expressando consciências diferentes, para alguns é claro que o PT já não lhes serve, outros retiram-se, dizendo que não têm mais nada a fazer, alguns buscamos alternativas, que têm que ver com o que eu dizia da CUT, do que disse no início desta entrevista sobre o MST. É muito importante que o novo instrumento tenha pelo menos a simpatia destes agrupamentos. Penso que nas próximas eleições o PT vai sentir a primeira derrota. Claro que vai fazer uma campanha de marketing norte-americanizado, mas muitos não votam mais no PT e vão começar a ver que alternativas há. Na minha opinião, é prematuro falar de um partido novo, mas temos que caminhar para algo novo, pode ser um movimento social e político, pode ser um embrião de um partido, pode até ser um partido. Mas teremos que caminhar com muita calma, porque muitos dentro do PT hoje são muito críticos, mas é gente que militou no PT 20 anos da sua vida, deixando a família, os filhos e agora não querem deixar tudo o que foi construído para que esta direcção o destrua. Temos que respeitar todas essas mulheres e homens que deram parte dos melhores anos da sua vida militando no PT e agora querem disputar, ainda que saibamos quem vai ganhar. Claro, ganha a direcção, mas há que estar atento à dimensão das discussões porque isto vai ter uma relação directa com o que vai ser criado depois. Há já uma parte da esquerda brasileira, o PSTU e outros grupos pequenos, que têm os seus agrupamentos. A esquerda que sairá do PT e a que já hoje está fora do PT será capaz de constituir um movimento social e político, crítico, radical, de base e anti-capitalista? Esse é o nosso desafio, este é o desafio que tenho para expor e explicar nas minhas actividades, na minha militância e na minha reflexão teórico-política que faço no Brasil.

M.H.: Fizemos um largo périplo pela actual situação política do Brasil. Queres acrescentar algo?.

R.A.: Apenas quero dizer que há um ano atrás estive em Buenos Aires numa jornada na Universidade e quando me apresentei, os argentinos perguntaram-me: "Como vão as coisas no Brasil?".

E eu respondi: "Já lhes vou dizer como vão as coisas no Brasil, mas antes quero dizer que estou muito optimista com o que se passa na Argentina". Muitos ficaram surpreendidos. Decerto que a minha visão do PT é crítica desde a sua fundação em 1980. Podem-se encontrar muitos arquivos de textos que escrevi, dizendo que o PT era um partido novo, mas que não era radical. Este processo intensificou-se nos últimos anos. Vejo como muito positiva esta rebelião desde as bases, que ocorre na Argentina. Por exemplo, as ocupações das fábricas. É fundamental que operários que são despedidos iniciem um movimento pela ocupação das fábricas; vejo com muita simpatia a rebelião dos piqueteiros, aqueles e aquelas que como disso Marx, não têm nada a perder.

Têm a luta como única alternativa. Vejo-os com muita simpatia, porque são rebeliões desde a base. O nosso desafio é como fazer para que estas lutas, estas rebeliões, como acaba de acontecer na Bolívia, como fazer para que estas lutas profundas, de base, de operários, indígenas, camponeses, trabalhadores, desempregados, etc, em algum momento se convertam em transformações radicais. Este é o nosso desafio e para isto penso que o século XXI está apenas a começar. E vamos ter muitas experiências, laboratórios, que nos vão auxiliar para levar por diante a luta social do século XXI. Penso como pensava um intelectual que já morreu, Daniel Singer, que escreveu em 1999 com o titulo de: "O próximo milénio será nosso ou será deles". Agora já estamos no novo milénio e o nosso desafio é lutar para que este século e este milénio sejam nossos. Esta é hoje a nossa função e o nosso desafio fundamental.

[*] Coordenador da revista La Maza . A entrevista a Ricardo Antunes foi realizada em 21/Out/2003 para a rádio El Reloj que se emite em FM Urbana (88.3) aos sábados das 17h00 às 19h00, em Buenos Aires. Tradução de Carlos Coutinho.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

07/Dez/03