Penso que nas próximas eleições o PT irá
sentir a primeira derrota"
Entrevista de Ricardo Antunes
a Mario Hernández
[*]
M.H.: Estamos com Ricardo Antunes, professor de sociologia da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), no Brasil. Ricardo não é apenas
um professor, mas também um activo militante do PT, e um dos principais
subscritores do manifesto da esquerda do PT, junto com Luciana Genro,
João Fontes, Babá e outros companheiros, em Julho deste ano. A
nossa intenção é fundamentalmente aproveitando esta
visita à Argentina para apresentar a segunda edição do seu
livro
Adeus ao trabalho?
conversar sobre a situação no Brasil e sobre o governo de
Lula. Nesse sentido, queríamos começar a entrevista perguntando
a tua opinião acerca do recente comentário do sociólogo
André Gunder Frank que comparou Lula a Lech Walesa.
R.A.: É uma comparação que, por um lado, tem sentido e por
outro, não. Como Lech Walesa, Lula é oriundo de um movimento
operário espontâneo e fortemente sindical, sem a
participação política partidária. Lula emergiu de
um movimento de base, dos sindicatos de São Bernardo, e adquire
importância política a partir da luta sindical. Mas há uma
diferença que eu penso que deve ser acentuada: durante os
últimos vinte ou vinte e poucos anos, Lula foi-se pouco a pouco
convertendo na principal direcção política de um partido
dos trabalhadores, o PT, que por sua vez, se converteu, ao longo dos
últimos 10 ou 15 anos num partido social-democrata, fortemente
institucionalizado e hoje se caracteriza por ser um partido do sistema.
É um partido de esquerda dentro do sistema. Lech Walesa não tem
esta trajectória e penso que hoje tem uma participação
muito secundária. Lula não. Tem uma importância
política agora, com o seu governo, e isto é o que o aproxima de
Walesa, está dando claros sinais que chegou ao poder para se converter
no gestor do sistema burguês, chegou ao poder para ser o administrador da
crise ou, como eu disse provocatoriamente, à Folha de São Paulo,
Lula actua como paladino do neoliberalismo e mostra como vai mal o seu governo
quando a perspectiva é de mudanças, que se poderiam estar a
realizar a favor dos interesses populares. Mas, até agora, não
vi nenhuma mudança em favor do povo, nem da classe trabalhadora, nem dos
desempregados. Pelo contrário, o desemprego está agora no seu
décimo mês de crescimento, aumentou muito o desemprego e
diminuíram muito os rendimentos do trabalho nos últimos anos no
Brasil.
M.H.: Ricardo, esta análise que faz, de alguma maneira tem algumas
contradições com algumas outras opiniões de importantes
dirigentes como, por exemplo, João Pedro Stédile do MST, que
assinalou que o governo de Lula é um governo em disputa entre três
sectores, um sector neoliberal, um sector que defende pequenas reformas e um
sector integrado pelos movimentos sociais, partidos políticos e as
igrejas progressistas. Que apreciação faz desta opinião
de João Pedro?
R.A.: Primeiro, devo dizer que sou um estreito colaborador do MST, que é
o mais importante movimento social e político do Brasil e, talvez, da
América Latina hoje em dia. O MST tem no Brasil 600 mil ou 700 mil
pessoas que acampadas lutando pela terra, pela sua propriedade colectiva, etc.
Segundo, e isto é muito importante, o meu companheiro Stédile
fala em nome de um movimento, não fala em seu próprio nome,
porque sempre que Stédile fala, fá- lo em nome de um movimento
que tem mais de um milhão de pessoas; quando falo eu, faço-o
apenas em meu próprio nome. Que se passa então que é
importante compreender? O MST, nos últimos 8 ou 10 anos, pelo menos,
vem mostrando à sua base militante que era importante a
eleição de Lula, que seria uma oportunidade real de mudar o
país. Por uma série de motivos que podemos abordar nesta
entrevista, Lula, que ganhou em 2002, é representante de um partido
desvertebrado, um partido que se desfibrou, que se desvertebrou, ao longo dos
anos 90, pelo menos. Mas quando se tratou da eleição de Lula, ou
era Lula com reais possibilidades de ganhar ou o esquema de Fernando Enrique
Cardoso; não havia outra alternativa, a candidatura do PSTU que foi uma
candidatura positiva e corajosa, do meu amigo e companheiro José Maria
Almeida, era para marcar posição, tanto que obteve menos de 1 %,
era uma candidatura para fazer a denúncia do ALCA, a necessidade de uma
crítica de esquerda. Neste sentido foi uma candidatura positiva, mas
sem nenhuma pretensão eleitoral, obteve 0,6 ou 0,7 pontos, ou algo assim.
Muito bem. O MST preparou a sua base para apoiar Lula, em minha opinião
não foi errado, também eu votei nele, não havia outra
alternativa, o voto nulo teria sido uma coisa completamente fora de lugar.
Não havia e não há hoje no Brasil uma esquerda social e
política com força eleitoral alternativa. Há uma
força social e política como o MST que não tem
correlação directa com a luta político-eleitoral. Como
resultado, o MST tem que preparar as suas bases, e nas bases do MST há
muitos homens e mulheres que nunca tiveram vida política, que foram ao
MST pela barbárie, pelas penúrias, pela
precarização e o processo de consciencialização
destas bases muito populares é longo.
Se o MST falou durante anos pedindo às suas bases que votassem em Lula
e, dois ou três meses depois lhe dizem que Lula não dá
mais, os tempos de um movimento social e político, com mais de um
milhão de pessoas é um tempo diferente, portanto, o que fazem
hoje Stédile e o MST, não é uma confrontação
directa com Lula no plano verbal, mão estão ocupando todas as
terras onde haja espaço no Brasil. A ocupação das bases
cria uma situação de facto e dizem a Lula: temos que negociar. E
eu creio que o MST está a fazer o que é correcto, porque o tempo
do MST é diferente dos nossos tempos. Para mim, é claro que o
governo de Lula abandonou já os seus compromissos essenciais com o povo,
incluso na questão agrária. A política económica
é a do FMI, a autonomia do Banco Central também é coisa do
FMI, a trágica política de desmantelamento da previdência
pública é do FMI, a reforma tributária também, a
única coisa que Lula diz que vai fazer é a reforma
agrária, claro que há um debate dentro do governo, será
uma "reforma agrária" como quer o FMI, os
latifundiários e as grandes empresas capitalistas, ou será uma
reforma agrária minimamente comprometida com os interesses populares? O
MST propôs Plínio de Arruda Sampaio como responsável do
projecto da reforma agrária de Lula, um intelectual de esquerda muito
comprometido com as lutas populares. Ele foi aceito e o MST agora aguarda a
concepção do projecto de reforma agrária e o que o governo
Lula irá fazer.
É por esta razão que o MST vê o governo de Lula como um
governo em disputa. Eu digo que se estivesse na direcção do MST
também estaria dizendo estas mesmas coisas, mas como intelectual
crítico que sou, colaborador e profundo admirador do MST, mas com
autonomia e para ajudar no debate, não posso deixar de lhes dizer que o
governo de Lula vai muito mal, inclusive na gestão agrária. O
MST pediu o assentamento este ano de 120.000 propriedades, o governo de Lula
começou por falar de 60.000, agora fala de 7.000, mas estamos no fim de
Outubro e não se realizou nenhum assentamento. E mais, aumentaram as
mortes dos militantes do MST no campo, pior ainda, há presos
políticos do MST, a justiça iniciou uma campanha de
criminalização e o governo de Lula não faz nada para
impedir esta política. Para concluir esta questão, que é
complexa, creio que pouco a pouco, vai tornar-se claro para o MST que as
probabilidades de uma reforma agrária profunda são pequenas. E
mais, o MST é o maior movimento social e político do Brasil que
contra o ALCA. Se Lula continuar com a sua política para o ALCA,
dizendo não sei, vamos conversar, vamos discutir um ALCA bom, este vai
ser o limite para o MST. Porque o MST perdeu a batalha dos
transgénicos, o MST era profundamente crítico dos
transgénicos e há duas semanas, Lula liberalizou os
transgénicos. Outra tragédia. Agora resta para o MST a
política agrária, a política do ALCA, a política
económica e eu penso que em alguns meses mais o MST vai começar
uma análise também crítica, mas o fundamental, é
que o MST faz a crítica fundamental que consiste em ocupar terras,
estradas, armazéns, tudo o que se pode ocupar, para mostrar que os
desapossados do campo e da cidade não suportam mais viver sem terras,
sem trabalho, sem salário nem alimentos.
M.H.: Por outro lado, lançou-se uma importante campanha, o plano Fome
Zero, que, pelo que percebi, é conduzida por Frei Betto, que salientou
tratar-se, não de um programa no assistencialista, mas sim de um
programa de inclusão social, que reduziu a mortalidade infantil, que
melhorou a qualidade de vida, que os empresários participam porque
estão motivados e, como conclusão, Frei Betto assinala que Lula
formou um governo muito amplo, com o melhor da sociedade brasileira. Que
reflexão te merecem estas opiniões?
R.A.: Bem, tenho de fazer-te um esclarecimento. Frei Betto é
também um intelectual de esquerda, de origem católica muito
respeitável, esteve nos últimos 30 ou 40 anos ligado às
lutas populares no Brasil.
Frei Betto, na minha opinião, é o melhor que tem o governo de
Lula, que é muito negativo; Frei Betto é a ponta melhor, porque o
governo de Lula é concessão atrás de concessão.
Há pouco tempo, morreu o presidente do PTB, do velho peleguismo
corrupto, do pior de Getúlio Vargas, e Lula foi a esse enterro e teve
que escolher o horário da visita para não se encontrar com Collor
de Melo. Penso que isto simboliza que aqueles e aquelas que 10 anos
atrás apoiaram Collor, hoje apoiam Lula. Então naturalmente o
governo de Lula não é o melhor, há aí figuras muito
negativas, como o ministro da Agricultura, que é o defensor do pior
agro-business, é um defensor da multinacional Monsanto; o presidente do
Banco Central é do Banco de Boston, é um polícia do
capital financeiro. Bastaria citar estes dois. Também lá
está Palocci, o ministro das Finanças, que é a direita, da
direita, da direita, do que um dia se chamou esquerda. Então, a
situação do governo do PT é muito negativa. O programa
Fome Zero é propaganda. Claro que há uma situação
no Brasil de fome brutal; entre 30 a 40 milhões de pessoas têm
fome, não comem um mínimo por dia; assim, posso concordar que
é necessária uma campanha de emergência contra a fome.
Qualquer governo de esquerda que ganha uma eleição e vê que
40 milhões de pessoas não comem, tem que tomar uma decisão
de emergência, mas o programa Fome Zero não faz as mudanças
estruturais, seria preciso fazer a reforma agrária, uma política
de aumento salarial, porque o salário mínimo no Brasil é
hoje de 80 dólares e uns 40% a 50% da população recebe
menos disso; essa soma por mês não é nada, não chega
nem para pagar uma casa numa favela, que custa mais caro que isto. Como
resultado, o programa Fome Zero é uma espécie de
distribuicionismo reformista, com muita propaganda e não significa
nenhuma reforma estrutural. O único que funciona hoje bem são os
homens do marketing, é Duda Mendonça, "um grande homem"
que ainda há alguns anos fazia o marketing político de Maluf que
é de extrema direita, proto-fascista. Depois migrou para o lado de
Lula, é um homem de marketing muito competente, vende Coca-Cola,
McDonald's, vende tudo o que é para vender, faz muita propaganda do
governo de Lula, e é inclusive responsável da propaganda do
programa Fome Zero, que até ao momento se pode dizer que é um
completo fracasso, não faz nenhum sentido de reforma estrutural. Eu
tenho um respeito verdadeiro por Frei Betto, porque sofreu a repressão
durante a ditadura, porque quando o MST é agredido, defende-o, porque
quando as lutas operárias são acossadas, ele que tem muito acesso
à imprensa, defende-os, tem a coragem de defender Cuba e nesse sentido
merece todo o meu respeito. Mas não estou a falar da política de
Frei Betto, mas sim do programa Fome Zero do governo de Lula e a minha
análise é profundamente crítica.
M.H.: Pretende-se implementar no Brasil a reforma da segurança social,
que na Argentina se mostrou um fracasso absoluto. Houve um ataque muito duro
aos trabalhadores do sector público da parte do governo de Lula. Qual
é a tua opinião a respeito desta reforma da previdência?
R.A.: Penso que este foi um aspecto da gestão crucial; depois dela pode
ter-se uma ideia clara do sentido do governo de Lula. Antes dela
podíamos ter dúvidas, para mim foi o ponto culminante. Escrevi
no diário do MST um artigo que se chama "A contra-reforma da
imprevidência", ou seja, a contra-reforma da não
previdência. Digo nesse artigo que, tal como Fernando Henrique deixou
cair a máscara quando reprimiu a greve dos trabalhadores do
petróleo em 1995, tal como Margaret Thatcher mostrou o seu verdadeiro
rosto na greve dos mineiros em 1983, que durou um ano, o governo de Lula
desmascarou-se com a forma nefasta como tratou a previdência
pública. Vou apenas resumir, porque senão falaríamos mais
de uma hora: primeiro, a reforma da previdência é uma
imposição assinada por Fernando Henrique Cardoso com o FMI.
Segundo, o PT sempre esteve contra a reforma de FHC. Em 1999 Lula disse que
esta era uma medida ilegal, impossível de ser levada adiante e agora
praticou ele a ilegalidade. Isso passou por uma confluência de muitos
elementos: é evidente a exigência do FMI e o governo de Lula
cometeu um erro muito grave.
Nos primeiros meses, em vez de utilizar a sua força
político-eleitoral de 53 milhões de votos para dizer isso
não, tentou ganhar a confiança do FMI e do sistema financeiro
internacional, quis mostrar-se como sendo um governo moderado e de
confiança e passou a tratar a coisa pública, a previdência
pública, a saúde pública, a educação
pública, os serviços públicos, como se os assalariados ou
os funcionários públicos fossem os responsáveis da
tragédia do país. Iniciou uma política de
fragmentação dentro da classe trabalhadora, lançando os
trabalhadores assalariados do sector privado contra os do público. Nem
Collor, nem FHC, conseguiram isto.
Lula passou a dizer que os funcionários públicos eram os
responsáveis pela crise do país. Não era o sistema
financeiro, não era o Fundo Monetário Internacional, não
era a burguesia, não eram as multinacionais, não eram os
latifundiários, não eram os burgueses nacionais, eram os
funcionários públicos. Depois disto fez uma coisa muito nefasta.
Ao privatizar os fundos de pensões, ou ao permitir que os fundos
públicos de pensões ingressassem no mercado financeiro, imaginou
desenvolver o capitalismo brasileiro aliando o capital financeiro ao
sindicalismo, porque na ideia dos líderes do governo, muitos sindicatos
fortes criaram fundos de pensões que serão administrados de
acordo com a lógica financeira, pelos mesmos sindicatos. É o que
designo como a fusão do sindicalismo com os negócios financeiros.
Isto está a dar origem a uma casta sindicalista financeira da pior
espécie.
O que é mais grave é que há 10 anos atrás estava
ligada às bases ou era o que chamávamos no Brasil o Novo
Sindicalismo. A reforma da previdência é privatizadora, é
financista, é fiscalista, não resolve a questão da
previdência, não diz uma única palavra, só há
um artigo que diz que futuras leis vão cuidar de 40 milhões de
homens e mulheres que estão no mercado de trabalho informal. O governo
diz que se trata de uma reforma pública e universal, mas na realidade
é uma farsa imposta pelo FMI que o governo de Lula comprou porque os
recursos, dizem alguns economistas, serão mais volumosos que os que
aportaram as privatizações durante o governo de FHC, ou seja,
é uma mina de ouro. E esta mina de ouro vai parar às mãos
dos privados e dos sindicalistas que controlam os fundos de pensões dos
grandes sindicatos. Isto tem outra consequência nefasta. Os grandes
sindicatos não vão lutar mais por salários, vão
passar a lutar por administrar bem o sistema financeiro, vão procurar a
forma de investir bem no sistema financeiro. Não vão continuar a
combater o sistema financeiro, vão passar a fazer parte dele. Em
dezembro de 2002, não imaginávamos que a primeira medida de Lula
seria a intensificação daquilo que o mesmo Lula e o PT tinham
impedido FHC de fazer, e para mim este foi o ponto, objectivamente falando,
crucial, que tornou claro de que lado estava Lula. A partir desse momento, o
governo de Lula já não está em disputa, mas foi
conquistado pelos sectores do sistema. Por isso é que iniciamos uma
campanha, agora sim, claramente de crítica, mas temos que compreender
uma coisa, 53 milhões de pessoas votaram em Lula, este voto e o voto
militante do PT, na minha análise, estará dando ao governo de
Lula mais ou menos um ano de prazo, para depois começar a mudar de lado.
Completado um ano o povo vai dizer: "e agora, o emprego, e agora, a
reforma agrária, e agora, a política salarial, e agora, a luta
contra a fome", e as coisas vão complicar-se. Por fim, devo dizer,
que a reforma da previdência, foi aprovada pelo governo de Lula com as
alianças mais espúrias possíveis com a direita, o pior
tipo de alianças. Houve um movimento muito importante que levou a
Brasília, a capital federal, 60 mil trabalhadores em franca
oposição ao governo de Lula. Foi a primeira
manifestação de massas que o governo de Lula enfrentou. Disto se
conclui que uma parte do mundo do trabalho já não tem
expectativas em relação ao governo de Lula e o considera seu
inimigo. Eu penso que nos próximos três anos teremos muitos
combates pela frente.
M.H.: Lula e 12 dirigentes da CUT fazem parte do governo. A CUT realizou em
Junho o seu 8º Congresso e celebrou também os 20 anos da sua
fundação. Actualmente, agrupa seis milhões de filiados.
Como se vive toda esta situação que vocês estão a
desenvolver no interior da CUT?
R.A.: É uma situação de clara, profunda e, diria mesmo,
irreversível divisão. A CUT é hoje dirigida por Marinho,
que é do grupo muito íntimo de Lula, foi designado pelo Planalto,
para substituir o antigo líder, Felicio, que também era do sector
interno da Articulação, mas estava ligado aos funcionários
públicos. O governo de Lula mudou, entabulando uma
negociação para tirar Felicio e colocar Marinho, do ABC. Com
isto a CUT aparece como um braço do governo. Pode fazer algumas
críticas, mas no fundamental é um suporte do governo. E mais, os
funcionários públicos já tomam a CUT dominante, a
CUT-Articulação como seu inimigo. Todas as vezes que a
direcção da CUT, através de Luiz Marinho, tentava falar
nas greves dos funcionários públicos, não lhe era
permitido. Actualmente, uns 30% da CUT são críticos, alguns
completamente contrários ao governo de Lula, que são os que
lideraram a greve de mais de 30 dias dos funcionários públicos.
Há outros sectores que, apesar de críticos, participam no
governo, têm um pé na crítica e outro no governo. Imagino
que não vai ser fácil a convivência do que
poderíamos chamar as duas CUTs, uma CUT pró-governamental e outra
anti-governamental. Além disso, uma parte fundamental não vai
aceitar a conversão da CUT numa central financeira, envolvida na
gestão dos fundos de pensões. Porque não é a
convivência dos diferentes, mas sim dos contrários. Parece-me
muito difícil que, tal como sucede no PT, a CUT não sofra uma
cisão.
M.H.: O triunfo de Lula evita de alguma maneira que no Brasil se produza uma
situação como a que se viveu na Argentina em Dezembro de 2001 ou
na Bolívia, com a queda de De la Rúa e Sánchez de Losada,
em resultado de mobilizações populares que puseram seriamente em
causa o modelo neoliberal?
R.A.: Sim e não. Sim, na medida em que uma parte do povo depositou
muitas esperanças em Lula, uma parte dos 53 milhões que nele
votaram ainda tem a esperança de que Lula vá proceder
mudanças importantes. Neste sentido, esta esperança dificulta a
intensificação das lutas sociais. Por outro lado, o governo de
Lula, o partido de Lula, o PT, sempre participou das lutas sociais,
especialmente nos anos 80. Na década seguinte o PT consolidou a sua
viragem para se tornar um partido social-democrata. Actualmente, o desemprego
aumenta, o salário é muito baixo, a reforma agrária
não avança, os riscos do ALCA, isto abre uma
situação em que muitos vão dizer, se Lula não vai
fazer, temos que lutar. E há uma dificuldade adicional, grande. Eu
explicava há alguns dias numa palestra sobre o ALCA no Paraná, em
Entre Rios, com estudantes, que há um ano atrás fizemos um
plebiscito de onze milhões de votos contra o ALCA, apoiado pela CUT e
também pelo PT. Agora, tudo o que se faz no Brasil contra o ALCA tem a
oposição ou a distância da CUT e do PT dominante. Isto
dificulta as coisas porque se trata de dois instrumentos que nasceram do povo e
agora se viram contra o povo. O que se passou na Argentina e na Bolívia
é sinal de que a América Latina já não suporta o
neoliberalismo, venha ele de Menem, de De la Rúa, venha de Fujimori,
venha de Lula, venha donde vier. Tenho a certeza que estes governos que
nasceram com uma expectativa popular, como Gutiérrez no Equador, que foi
líder de uma rebelião popular há três anos, e agora,
seis ou sete meses depois de assumir o governo, governa dentro do sistema,
esses governos que foram eleitos com votos da esquerda, como Gutiérrez e
Lula, na medida em que não realizem as mínimas reformas que os
povos esperam, sofrerão forte oposição. O problema
é que, do meu ponto de vista, isso vai demorar muito mais tempo porque
há muitos que ainda têm a ilusão que se trata de governos
que vão proceder a mudanças.
M.H.: Todo este panorama que nos estás a expor, em função
da situação do Brasil, do governo de Lula e a
situação do PT, faz de alguma maneira prever a
formação de uma nova força política de esquerda.
Li, por exemplo, que vocês falam da necessidade de um movimento que
combine renovação com radicalidade. Gostaria que nos explicasses
o que querem dizer com isto.
R.A.: Penso que isto é fundamental, eu sou um intelectual marxista, que
considera o marxismo fundamental para uma análise crítica do
mundo de hoje. Penso que o século XXI recupera a actualidade da
questão socialista porque o socialismo foi derrotado no século
XX, depois da experiência russa. No entanto, Seattle, Praga,
Génova, o MST, o Zapatismo, a rebelião na Bolívia, os
piqueteiros na Argentina, as greves na Europa e em muitas partes da
América Latina, a própria greve geral na Colômbia e na
Bolívia, onde houve movimentos indígenas que, junto com a greve
geral, criaram uma situação de crise e derrubaram o governo
boliviano, tudo isso mostra que o século XXI será de profundas
lutas sociais no âmbito nacional e mundial. Assim como o capital se
mundializou, as lutas sociais também se mundializam. Isto coloca-nos um
desafio: temos que ter um marxismo contemporâneo, costumo dizer um
marxismo renovado e radical, não um marxismo renovado e moderado,
institucional e dentro do sistema, tão pouco um velho marxismo
aparentemente radical.
Por exemplo, penso que hoje, ao falarmos de movimentos populares, não
podemos defender os partidos de vanguarda, os velhos partidos marxistas
leninistas como alternativa, na minha opinião, estes partidos são
parte da história que acabou no século passado. Precisamos
agora, por exemplo, o que no Brasil é o MST, movimentos sociais
radicais, que são ao mesmo tempo movimentos sociais e movimentos
políticos, esta foi a coisa mais positiva dos primeiros anos do
movimento zapatista, ser ao mesmo tempo movimento social e político.
Estes dois exemplos são os que chamo movimentos de uma esquerda social
renovados e radicais. Que são capazes de mostrar a contemporaneidade do
marxismo. Houve um diálogo muito belo de Marx com as suas duas filhas.
Uma delas perguntou-lhe uma vez qual era o seu lema de vida e Marx respondeu:
'Duvidar de tudo'. O nosso marxismo tem que duvidar da nossas certezas para
poder avançar e tem que ser radical. Não é
possível pensar no século XXI a recuperação da
Humanidade, o fim da lógica destrutiva do mundo actual, o fim deste
capitalismo profundamente destrutivo e supérfluo, senão
recuperando uma concepção profundamente radical contra o sistema
de mercado, contra o sistema do capital, contra o seu Estado e contra a sua
política. Sou a favor de um movimento renovado e radical dos marxistas
e também dos não marxistas, como é o caso de Noam Chomsky,
que seja profundamente crítico do sistema. Citaria dentro do marxismo
gente que faz um grande esforço pela sua renovação e pela
sua radicalidade. István Meszáros na Inglaterra, James Petras
nos Estados Unidos, Francois Chesnais em França, nós procuramos
fazer o mesmo no Brasil, Alain Bihr e muitos outros. Ou seja, marxistas e
outros que não o são propriamente, para fazer uma crítica
radical do sistema.
É este o nosso desafio. É evidente que se o PT se converteu num
partido do sistema, num partido institucionalizado, na esquerda dentro do
sistema, se é um partido social-democrata, a esquerda social brasileira,
que é muito vasta, tem que procurar outras alternativas. Claro que este
é um processo muito complexo e longo. Três deputados e uma
senadora podem abandonar o PT. Isto vai criar uma primeira discussão.
Muitos vão dizer: "se eles saem, nós também
sairemos". Outros vão a dizer: nós não vamos sair
agora; vamos disputar o PT, para fazer uma disputa profunda, para demonstrar
que quem deveria sair é a direcção". Claro que ao
longo dos meses, vão-se dar conta que o PT é uma máquina
que tem uma direcção que controla e que, portanto, vão ser
colocados numa situação clara: Ou se defende o governo de Lula
ou se está fora do governo de Lula.
Isto vai abrir muitas discussões com tempos diferentes, expressando
consciências diferentes, para alguns é claro que o PT já
não lhes serve, outros retiram-se, dizendo que não têm mais
nada a fazer, alguns buscamos alternativas, que têm que ver com o que eu
dizia da CUT, do que disse no início desta entrevista sobre o MST.
É muito importante que o novo instrumento tenha pelo menos a simpatia
destes agrupamentos. Penso que nas próximas eleições o PT
vai sentir a primeira derrota. Claro que vai fazer uma campanha de marketing
norte-americanizado, mas muitos não votam mais no PT e vão
começar a ver que alternativas há. Na minha opinião,
é prematuro falar de um partido novo, mas temos que caminhar para algo
novo, pode ser um movimento social e político, pode ser um
embrião de um partido, pode até ser um partido. Mas teremos que
caminhar com muita calma, porque muitos dentro do PT hoje são muito
críticos, mas é gente que militou no PT 20 anos da sua vida,
deixando a família, os filhos e agora não querem deixar tudo o
que foi construído para que esta direcção o destrua.
Temos que respeitar todas essas mulheres e homens que deram parte dos melhores
anos da sua vida militando no PT e agora querem disputar, ainda que saibamos
quem vai ganhar. Claro, ganha a direcção, mas há que
estar atento à dimensão das discussões porque isto vai ter
uma relação directa com o que vai ser criado depois. Há
já uma parte da esquerda brasileira, o PSTU e outros grupos pequenos,
que têm os seus agrupamentos. A esquerda que sairá do PT e a que
já hoje está fora do PT será capaz de constituir um
movimento social e político, crítico, radical, de base e
anti-capitalista? Esse é o nosso desafio, este é o desafio que
tenho para expor e explicar nas minhas actividades, na minha militância e
na minha reflexão teórico-política que faço no
Brasil.
M.H.: Fizemos um largo périplo pela actual situação
política do Brasil. Queres acrescentar algo?.
R.A.: Apenas quero dizer que há um ano atrás estive em Buenos
Aires numa jornada na Universidade e quando me apresentei, os argentinos
perguntaram-me: "Como vão as coisas no Brasil?".
E eu respondi: "Já lhes vou dizer como vão as coisas no
Brasil, mas antes quero dizer que estou muito optimista com o que se passa na
Argentina". Muitos ficaram surpreendidos. Decerto que a minha
visão do PT é crítica desde a sua fundação
em 1980. Podem-se encontrar muitos arquivos de textos que escrevi, dizendo que
o PT era um partido novo, mas que não era radical. Este processo
intensificou-se nos últimos anos. Vejo como muito positiva esta
rebelião desde as bases, que ocorre na Argentina. Por exemplo, as
ocupações das fábricas. É fundamental que
operários que são despedidos iniciem um movimento pela
ocupação das fábricas; vejo com muita simpatia a
rebelião dos piqueteiros, aqueles e aquelas que como disso Marx,
não têm nada a perder.
Têm a luta como única alternativa. Vejo-os com muita simpatia,
porque são rebeliões desde a base. O nosso desafio é como
fazer para que estas lutas, estas rebeliões, como acaba de acontecer na
Bolívia, como fazer para que estas lutas profundas, de base, de
operários, indígenas, camponeses, trabalhadores, desempregados,
etc, em algum momento se convertam em transformações radicais.
Este é o nosso desafio e para isto penso que o século XXI
está apenas a começar. E vamos ter muitas experiências,
laboratórios, que nos vão auxiliar para levar por diante a luta
social do século XXI. Penso como pensava um intelectual que já
morreu, Daniel Singer, que escreveu em 1999 com o titulo de: "O
próximo milénio será nosso ou será deles".
Agora já estamos no novo milénio e o nosso desafio é lutar
para que este século e este milénio sejam nossos. Esta é
hoje a nossa função e o nosso desafio fundamental.
[*]
Coordenador da revista
La Maza
. A entrevista a Ricardo Antunes foi
realizada em 21/Out/2003 para a rádio El Reloj que se emite em FM Urbana
(88.3) aos sábados das 17h00 às 19h00, em Buenos Aires.
Tradução de Carlos Coutinho.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
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