O viés liberal da reforma sindical

Altamiro Borges [*]   


Luta sindical - Brasil

A reforma da estrutura sindical, um dos compromissos de campanha do presidente Lula, começa a ganhar seus primeiros contornos e os sinais já são de alerta. Tudo indica que uma visão liberal de democracia vai emoldurar esta proposta, o que ocasionará uma brutal hecatombe nos 11.354 sindicatos de trabalhadores existentes no país – segundo o último Censo do IBGE. Pelo cronograma do novo governo, o projeto será debatido no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e no futuro Fórum Nacional do Trabalho e depois será encaminhado para votação no Congresso Nacional até o final deste ano.

Motivos para preocupação não faltam. Diferentemente da indigesta reforma da Previdência, que causou surpresa na sociedade pela abrupta mudança de posições do PT, no caso da estrutura sindical este partido sempre pregou alterações profundas, como o fim da unicidade, das contribuições compulsórias e do poder normativo da Justiça do Trabalho. Logo após a vitória eleitoral, João Felício, presidente da CUT, chegou a prever que a atual estrutura estaria com seus dias contados no governo Lula. "O movimento sindical tem que ser detonado, implodido. Não tem importância se num primeiro momento isto provoque uma certa anarquia, mas acho que vai ser uma anarquia positiva", afirmou num seminário de empresários da Fiesp.

A infeliz declaração gerou forte resistência entre os sindicalistas, de dentro e de fora da CUT, o que fez com que o próprio presidente assumisse a tarefa de apagar o incêndio. Ciente da decisiva contribuição de uma ampla base sindical para o seu êxito nas urnas, Lula anunciou num encontro com 650 lideranças que não imporia nenhuma medida prejudicial ao sindicalismo. "A única certeza que tenho é que vocês nunca serão pegos de surpresa", garantiu. Naquela ocasião, em novembro passado, ele formalizou a sua proposta de criação do Fórum Nacional do Trabalho, uma instância tripartite que "gastará muitas horas de debates" para encontrar os mecanismos de valorização do trabalho e de fortalecimento dos sindicatos.

 

FRENTES DE ATAQUE

Baixada a poeira, entretanto, os sinais inquietantes ressurgem oriundos de várias frentes. Um documento do Ministério do Trabalho de 16 de março, intitulado "Diagnóstico sobre a reforma sindical e trabalhista", volta a pregar "a necessidade de superar o atual modelo de organização sindical, há muitos anos criticado por sua origem autoritária e corporativista, por sua baixa representatividade e por ser pouco permeável ao controle social". Ele lista as prioridades do novo governo: "estimular a constituição de entidades sindicais livres e autônomas"; "conferir maior efetividade às leis trabalhistas"; e "estimular a autocomposição dos conflitos e sua resolução por meio de novos mecanismos de conciliação, mediação e arbitragem".

Na seqüência, em 18 de março, na primeira reunião da comissão sobre reforma trabalhista e sindical do CDES, a tendência de "implodir" a atual estrutura sindical foi confirmada. Segundo o relatório divulgado pelo Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar), dois grupos de trabalho aprovaram o modelo de autonomia sindical convencionado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) e um único grupo votou pela manutenção da unicidade. Também houve divergências na questão da sustentação financeira das entidades, com a maioria defendendo o fim das contribuições sindicais. A único consenso positivo dos participantes foi em favor do reconhecimento da personalidade jurídica das centrais sindicais.

Mas o petardo mais destrutivo contra a atual estrutura partiu mesmo de dois deputados do PT que ocupam postos-chaves na Comissão Especial de Reforma Trabalhista da Câmara Federal. A Proposta de Emenda à Constituição número 29, de autoria de Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, ex-presidente da CUT, e de Maurício Rands, advogado trabalhista de Pernambuco, tem o grande mérito de explicitar a visão liberal de sindicalismo deste segmento político hoje hegemônico nesta central sindical, neste partido e no Palácio do Planalto. Sem qualquer rodeio, a PEC defende o fim da unicidade e do conceito de categoria, a extinção gradual da contribuição sindical e a cobrança de contribuições compulsórias somente dos sindicalizados.

Na exposição de motivos, fica escancarado o modelo sindical dos sonhos desta corrente. Para os autores, o critério de representação por categorias profissionais ou econômicas seria autoritário já que inviabiliza a criação do "sindicato político, vinculado a uma ideologia". Com sua manutenção, "também não é possível a criação de um sindicato por empresa, pois a área mínima é a de um município. Tampouco é possível a criação de mais de um sindicato por categoria", criticam, sem papas na língua, os deputados. Adeptos das regras liberalizantes da Convenção 87 da OIT, eles argumentam na defesa do plurisindicalismo: "Num sistema de liberdade sindical, vários podem ser os sindicatos que representam os trabalhadores".

 

PULVERIZAÇÃO SINDICAL

Para um leitor pouco familiarizado com o tema, este discurso pode até parecer um libelo à democracia, a busca do antigo oásis da autonomia e liberdade sindicais. Mas, na verdade, ele comporta sérios riscos para a organização dos trabalhadores. Não é para menos que o mesmo discurso é feito, por razões diversas, por renomados ideólogos do capital. O sociólogo Leôncio Martins Rodrigues, um dos mentores das elites na área sindical, não se cansa de repetir que o país "deve acabar com a contribuição sindical e o monopólio de representação (unicidade). Essas duas medidas provocariam uma tempestade no movimento sindical".

O governo FHC bem que tentou por várias vezes atingir este intento. A sua última cartada, a PEC-623, só não vingou devido à contraposição unitária do sindicalismo. Na época, até a assessoria técnica da bancada do PT ficou assustada. "Essa PEC retira do texto da Constituição qualquer limite à pluralidade. Com a sua adoção se teria, num primeiro momento, a criação de mais sindicatos, para depois haver uma previsível quebradeira de grande parte dos sindicatos", advertiu em fins do ano passado. Seria o caso dos deputados Vicentinho e Rands, ambos na primeira legislatura, consultarem novamente aquela perspicaz assessoria.

Na prática, a PEC-29, que encontra boa acolhida no CDES e no próprio Ministério do Trabalho, caminha exatamente no rumo da "quebradeira de grande parte dos sindicatos" brasileiros. Caso não haja reação no CDES, no Fórum Nacional do Trabalho, no parlamento e no conjunto do sindicalismo, realmente causará uma radical mudança na estrutura sindical... para pior! O remédio para combater as distorções e vícios existentes no sindicalismo acabará tendo o efeito contrário, de veneno. Isto explica os "efusivos" elogios que a proposta dos parlamentares petistas recebeu de influentes líderes empresariais e da mídia burguesa.

Uma análise mais detida da PEC, feita por partes, ilumina este aparente contra-senso. No caso do fim da unicidade, que extinguiria a atual norma constitucional que fixa a base mínima de um município para a criação de sindicato, ela resultaria na total fragmentação da organização dos trabalhadores. Como ainda vivemos numa sociedade capitalista, marcada pelo conflito de classes, não seriam apenas os trabalhadores que teriam direito de organizar novas entidades. Os empresários também se aproveitariam desta brecha legal para montar milhares de sindicatos frágeis e domesticados, estimulando a divisão dos explorados.

No Japão, onde a Convenção 87 da OIT vigora desde os anos 50, o patronato organizou várias entidades por empresas, os chamados "sindicatos-casa". Atualmente existem mais de 78 mil "organismos sindicais" neste pequeno país; na maioria das grandes corporações, há pelo menos dois disputando o espaço... para a alegria do capital! Além de permitir este tipo de pulverização, a PEC prevê ainda criação de entidades por orientação política e ideológica. Desta forma, seria transplantada para o Brasil a trágica experiência dos sindicatos partidarizados da Europa – exatamente quando estes países lutam pela reunificação sindical. Além disso, as várias seitas religiosas também teriam liberdade para montar suas entidades confessionais.

 

TERRA ARRASADA

Já no que se refere à eliminação do conceito de categoria econômica e profissional, seus efeitos nefastos são ainda mais arrasadores. A princípio, esta medida permitiria a criação de várias entidades numa mesma empresa, agrupando os distintos ofícios. Mas, o que é pior, ela geraria violenta distinção entre os próprios trabalhadores. Por essa proposta, os sindicatos passariam a representar apenas os associados e não mais as categorias. Com isso, os acordos ou dissídios coletivos firmados não beneficiariam o conjunto da base. Como adverte Antônio Augusto de Queiroz, diretor técnico do Diap, isto "significará o fim da convenção coletiva, pois basta que a empresa não esteja filiada ao sindicato patronal para que os seus empregados, mesmo que estejam filiados ao sindicato dos trabalhadores, não sejam beneficiados por suas cláusulas".

Por último, no tocante ao sistema de custeio do sindicalismo, os riscos também são enormes. O problema não se encontra na extinção gradual da contribuição sindical, o antigo imposto sindical. Segundo estudos, este item hoje já não pesa tanto nas finanças da maioria dos sindicatos. Devido suas evidentes distorções, há muito tempo os setores progressistas da sociedade defendem a sua extinção gradual. O grave na PEC é que, ao eliminar o conceito de categoria, conseqüentemente ela fixa a contribuição apenas do associado. Esta medida reduzirá drasticamente as receitas dos sindicatos, agravando ainda mais a crise financeira já vivida pelo sindicalismo – decorrente, principalmente, da explosão do desemprego e do arrocho salarial.

Como se observa, a PEC dos deputados Vicentinho e Rands, que goza das simpatias do ministro Jacques Wagner e na CDES, terá efeitos devastadores sobre o sindicalismo. Apesar das chamadas boas intenções, que lotam o inferno, esta proposta de "autonomia e liberdade" pode fragilizar ainda mais o já combalido sindicalismo brasileiro. A sua inconseqüência é tamanha que ela nem sequer prevê regras de transição que protejam as entidades existentes e os direitos de seus associados e representados. Neste caso, vale listar algumas das instigantes perguntas feitas pelo advogado Edésio Passos, ex-deputado federal do PT:

"Caso seja aprovada a emenda constitucional, as entidades que têm registro no Ministério do Trabalho deixam de ser representativas da categoria profissional ou econômica, sendo apenas representantes dos seus filiados, não prevalecendo as disposições de seus estatutos? Continuarão essas entidades tendo direito ao recebimento da contribuição sindical compulsória nos quatro anos seguintes a promulgação da emenda? As normas existentes em acordos e convenções coletivas de trabalho que consagram direitos e benefícios às categorias profissionais continuarão prevalecendo?".

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* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor, com Marcio Pochmann, do livro "Era FHC: A regressão do trabalho" (Editora Anita Garibaldi).

O original deste artigo encontra-se em
http://www.vermelho.org.br/


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

Mai/03