No centenário de Sérgio Buarque de Holanda
"Raízes do Brasil"
e a necessidade da revolução
Vivemos entre dois mundos: "um definitivamente morto e outro que luta por
vir à luz do dia". Esta frase define o espírito e a
ambição de um dos mais influentes ensaios surgidos na
década de 1930:
Raízes do Brasil
, publicado em 1936. Define também o pensamento de seu autor,
Sérgio Buarque de Holanda, cujo centenário comemora-se no dia 11
de julho de 2002. A chave desse pensamento é o reconhecimento da
necessidade de se completar a ruptura com o passado colonial, como expressou no
capítulo final deste livro que é sua obra mais conhecida e de
maior influência.
A marca de Sérgio Buarque vai desde essa interpretação
radicalmente democrática com que compreendeu as
transformações em curso no Brasil das décadas de 1920 e
1930, até sua influência inovadora como historiador
responsável pela formação de grande parte das
gerações seguintes dos historiadores brasileiros.
Não há espaço, aqui, para a avaliação em
profundidade de sua contribuição, positiva e
contraditória, para o estudo da formação social
brasileira, da renovação metodológica e do uso de novos
documentos e instrumentos historiográficos que emerge de sua obra. Basta
assinalar, contudo, o paralelismo de sua contribuição à da
Escola dos Anales francesa, influente e muito valorizada. Aliás,
Sérgio Buarque foi colega e contemporâneo de Fernand Braudel na
USP, que lá escreveu sua principal obra, certamente beneficiando-se dos
comentários e da influência do professor que, muitos anos depois,
definia-se modestamente como sendo apenas o "pai do Chico Buarque".
Recusando tanto o fascismo (e sua versão tupiniquim, o integralismo),
quanto o comunismo, Sérgio Buarque deu alento a uma visão
democrático-burguesa da história, onde o diagnóstico do
"caráter nacional" é complementado pela defesa da
necessidade de ruptura com a herança do escravismo e do colonialismo.
Raízes do Brasil
é um exemplo da aplicação dos tipos ideais weberianos,
como a contraposição entre trabalho e aventura, o racional e o
cordial, o pessoal e o impessoal, etc. Essa influência de Max Weber
é visível na identificação desses traços
como parte da herança ibérica, traduzida numa alegada
incapacidade de organização social e na inclinação
à anarquia e à desordem, e é talvez a principal
limitação de sua análise, que busca
explicações
culturais
, e não nas relações
concretas
entre os homens, para os fenômenos histórico-sociais.
Sérgio Buarque também foi pioneiro no uso do conceito weberiano
de patrimonialismo para descrever as relações politicamente
promíscuas entre o Estado, os governos e as classes dominantes. É
também do sociólogo alemão a idéia, que ilumina sua
obra, de que o capitalismo não é um modo de
produção específico, com leis e formas de
organização próprias da produção e
distribuição, mas um sistema movido pela busca do lucro
monetário.
Há um certo paralelo entre esse pensamento e as teses de
Casa Grande & Senzala,
de Gilberto Freyre, com quem compartilha a visão psicológica e
culturalista da história. Essa semelhança está presente na
indicação de uma pretensamente pequena distância entre os
dominadores "e a massa trabalhadora constituída de homens de
cor", que teriam resultado nas relações entre dominados e
dominadores marcadas pela situação de dependente, protegido
"e até mesmo de solidário e afim".
Compartilham também a descrição positiva do colonizador
português, que seria mais capaz de adaptação aos costumes
dos povos colonizados do que os demais colonizadores europeus. Como o
sociólogo pernambucano, Sérgio Buarque também pensou que
há, no brasileiro, uma ênfase no afetivo e no irracional, e
"uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras,
racionalizadoras". Daí sua tese, inspirada em Ribeiro Couto, de que
"a contribuição brasileira para a civilização
será de cordialidade -- daremos ao mundo o
homem cordial
" -- tese que é talvez a mais difundida e menos compreendida de seu
ensaio.
Se concordam na avaliação do caráter nacional, uma
temática própria dos anos 30, a medida da distância entre
Sérgio Buarque e Gilberto Freyre é dada pela prudência que
afasta o primeiro da apologia das oligarquias agrárias.
Gilberto Freyre valorizou a colonização portuguesa e sua
influência; atualizou a legitimação do domínio da
oligarquia enraizada no passado colonial e acentuou a continuidade, e
não a ruptura, condenando a luta de classes como estranha ao
caráter brasileiro.
A posição de Sérgio Buarque é radicalmente oposta.
Para ele, a modernização social e política do Brasil exige
o rompimento com o passado colonial; o desenvolvimento nacional exige o
aprofundamento da revolução brasileira, vista como um processo
ainda incompleto.
Este não é um ponto de vista pessimista, como querem alguns. No
último capítulo de
Raízes do Brasil
, ele atribui à revolução tarefas que o marxismo descreve
como democrático-burguesas, encarando-a como um movimento lento mas
inexorável, o "elo secreto" entre a Abolição e a
República, a única revolução que,
"rigorosamente, temos experimentado em toda a nossa vida nacional",
promovendo a superação do agrarismo pelas cidades, que se tornam
"o centro de gravidade do novo sistema".
As teses de Gilberto Freyre corresponderam melhor à aliança que
emergiu da revolução de 1930. Por isso tornaram-se
hegemônicas. Elas serviram como uma luva à
legitimação do pacto entre a burguesia industrial e a oligarquia
mercantil-latifundiária. A hegemonia burguesa, no Brasil, fez-se pela
resolução, pelo alto, das tarefas próprias da
revolução democrático-burguesa, e o conluio entre os
segmentos da grande burguesia brasileira, o imperialismo e seus representantes,
e os grandes proprietários de terra, foi desfavorável à
democracia.
Sérgio Buarque sempre foi um democrata radical, e não pode ser
arrolado na estirpe de conservadores como Gilberto Freyre. Amigos na
década de 1920, afastaram-se devido à evolução
antagônica de suas posições políticas. Sérgio
Buarque disse certa vez ao historiador norte-americano Richard Graham, que
Raízes do Brasil
foi uma espécie de resposta a
Casa Grande & Senzala
: seguindo o caminho propossto por Capistrano de Abreu na passagem do
século XIX para o século XX, Sérgio Buarque procurou falar
do povo, dos mamelucos, e não da oligarquia. "E, em vez de olhar
para o Atlântico, olhou para o interior", diz Richard Graham.
Mais do que historiográfica, a divergência entre eles era
política, e refletiu-se na obra que escreveram. Gilberto Freyre foi
constituinte, em 1946, pela UDN, um partido conservador. Nas décadas
seguintes, naufragou como cientista social, tornando-se cada vez mais um
trivial propagandista de ditaduras como a de Antonio Salazar, em Portugal, e da
ditadura militar brasileira, ligando-se inclusive à Arena, o partido dos
generais. Morreu apoiando aquele regime discricionário.
Sérgio Buarque, que se definia como socialista, esteve em
posição oposta. Figurou entre os fundadores da Esquerda
Democrática em 1945 e, depois, do Partido Socialista Brasileiro. A
radicalização de sua oposição democrática
levou-o à militância contra a ditadura militar de 1964; em 1968,
ele pediu aposentadoria como professor da USP em protesto contra a
cassação de vários colegas pelo Ato Institucional nº
5. Nos anos 70, foi vice-presidente do oposicionista Centro Brasil
Democrático e, em 1980, quase octagenário, foi um dos fundadores
do Partido dos Trabalhadores.
Baseada na exigência da ruptura do pacto elitista que mantém vivas
as forças do passado, a "explicação" do Brasil
que emerge de sua obra não serviu à aliança dominante que,
formada em 1930, manteve-se durante a ditadura militar de 1964 e foi atualizada
sob Fernando Henrique Cardoso. Mas é justamente a exigência dessa
ruptura que faz a genialidade e a atualidade de sua obra, que aponta para o
futuro, e não para o passado.
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José Carlos Ruy
é jornalista, diretor do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo,
membro da comissão editorial da revista
Princípios
e membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil
Este artigo encontra-se em
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