José Reinaldo Carvalho
[*]
A grande Revolução Socialista ocorrida na Rússia
há oito décadas e meia é ainda hoje fonte de
inspiração para as gerações atuais de
revolucionários
Transcorreu em 7 de novembro o 85º aniversário da
Revolução de Outubro. A efeméride parece um oxímoro
um evento ocorrido em outubro comemorado em novembro. O paradoxo,
porém, é apenas aparente, dado que na época a
Rússia não usava o calendário gregoriano adotado no mundo
ocidental.
Para os formadores de opinião dominantes, o problema reside
na própria essência do fato em tela. Comemorar a
Revolução de Outubro seria, para tal ponto de vista, o mesmo que
celebrar acontecimento antediluviano, de época já prescrita e
proscrita pela historiografia oficial, não só a da direita, mas
também a de certa esquerda. Comemorar Outubro, mais de uma década
depois do final do ciclo aberto por aquela Revolução, quando
fracassou o modelo a partir daí implantado e seus valores foram
submetidos à demolidora crítica dos proclamadores do fim da
história, parece uma deriva saudosista e dogmática dos que
anacronicamente resistem a sair de cena e permanecem protestando do lado de
fora do palácio.
Nada há de paradoxal ou a-histórico, porém, em abrir
espaço na atribulada agenda dos nossos dias para celebrar aquele que
ainda hoje é o maior acontecimento da História da humanidade.
Celebramos Outubro porque temos memória
Os que defendemos um mundo de liberdade, paz, justiça e igualdade
social, valores realizáveis apenas numa sociedade liberta da
opressão e da exploração capitalistas e da
dominação imperialista; os que aprendemos desde as priscas
eras do movimento estudantil ou dos embates de classe em Osasco, Contagem, ABC
paulista e selvas do Araguaia , que a história das lutas sociais
desde 1848 é perpassada por um fio vermelho de coerência; e
encontramos nos escritos de Marx, Engels, Lênin e outros expoentes do
pensamento revolucionário a fonte embora não a
única , de nosso saber sobre a sociedade e a história,
formamos com legítimo orgulho, desde 1922 e com maior razão,
desde 1962, quando rompemos com o oportunismo kruschevista, um partido com
memória. Por isso temos sobejas razões para celebrar os 85 anos
do grande Outubro.
O começo dos anos 90 do século passado trouxe para
nós, os comunistas deste Partido com memória, momentos amargos,
porque testemunhamos, não através dos livros, mas na qualidade de
contemporâneos do fenômeno, a derrocada do socialismo como sistema
mundial. E sofremos ainda hoje os seus efeitos.
Quantos de nós, deste Partido que tem memória, nos
perguntamos se loucos ou idiotas éramos os que defendêramos, com
tanto ardor, paixão e até com desavisado dogmatismo, a
experiência, o modelo, o regime inaugurado naquele glorioso Outubro de
1917. Fizemos nossa catarse autocrítica no Congresso de 1992, no
plúmbeo e chuvoso fevereiro do planalto central. Em conclusão,
não éramos stalinistas. E nem anti-stalinistas, forma de que se
revestiu certo anticomunismo desde meados dos anos 50 e percorreu os 60, os 70,
os 80, os 90... Mas tivemos o discernimento de compreender que os detritos do
muro de Berlim caíam também sobre nossas cabeças, o que
nos impôs reinterpretações sobre a experiência de
construção do socialismo e inevitáveis
adaptações à nova realidade.
Nessa mesma época, tornavam-se nítidas duas outras
posturas em formações da esquerda brasileira. O antigo PCB,
seguindo a trilha de outras experiências no Velho Continente, proclamava
seu corte final com o passado iniciado em 1917 e 1922. Aboliu símbolos e
mudou de nome, atropelando um setor do partido que ainda hoje reivindica a
legenda e se atém a posições comunistas. Outra, originada
de agrupamentos diversos do trotsquismo, do catolicismo e do sindicalismo
espontaneísta, descobria no PT uma expressão da nova
esquerda socialista, sem vinculação com o
marxismo-leninismo nem com o socialismo real. Era o sopro de
criação de uma força política social-democrata, com
suas peculiaridades e que anos depois se tornaria num dos mais importantes
fenômenos políticos de massas do nosso país e da
América Latina, agora com posições de comando no governo.
A necessária autocrítica dos comunistas e o corte com o
dogmatismo vieram a par com duas atitudes metodológicas decisivas para a
manutenção da bandeira do socialismo revolucionário e
científico erguida em nosso país, malgrado as vicissitudes da
época. Descobrimos que não há modelo único de
socialismo, que a fixação de um modelo a ser seguido ou mesmo sua
imposição pela força, não só é uma
atitude anticientífica, como uma perversão, responsável
por grandes tragédias. A exportação forçada do
modelo soviético para países do Leste europeu criou regimes
grotescos e monstrengos caricaturados de partidos comunistas. A outra postura
metodológica resultou da descoberta de que na revolução
social, mormente em países como o nosso, de capitalismo dependente, e em
épocas como a atual, em que a globalização capitalista se
desenvolve em meio a uma ofensiva geopolítica tendente a liquidar as
soberanias dos países, o fator nacional é decisivo, a tal ponto
que a condição
sine qua non
para vingar um projeto socialista liderado pelo partido comunista e seus
aliados, é a elaboração de uma estratégia e uma
tática que tenham na emancipação nacional o seu aspecto
primordial.
Destarte, ao comemorar o aniversário da Revolução
Russa, não nos move o dogmatismo nem o filo-sovietismo. Aliás,
muitas vezes, na trajetória de 80 anos de movimento comunista no Brasil,
tanto um quanto outro, ligados a um estilo de trabalho subserviente, serviram
de refúgio para justificar táticas e estratégias
políticas não revolucionárias.
Celebramos Outubro porque temos princípios
Não é ocioso repetir. A Revolução de Outubro
não foi ainda superada na história da humanidade como
acontecimento político. Outubro de 1917 assinalou o advento de uma nova
época. Foi a primeira tentativa vitoriosa de banir da sociedade toda a
opressão e exploração. Apoiada na aliança entre os
operários e os camponeses russos, a revolução dirigida
pelos bolcheviques, transcorrida no calor de uma crise mundial que resultou na
eclosão da I Guerra Mundial, tinha profundo caráter
internacionalista. Libertando a classe operária russa, tinha
também um sentido emancipador de toda a humanidade, pois fizera seu o
lema marxista Proletários de todos os países, uni-vos!
Celebramos a Revolução de 1917 porque temos
princípios. A revolução, que revelou ao mundo o
gênio político de Lênin, comprovou o caráter
científico do marxismo-leninismo e a aplicabilidade histórica de
seus conceitos fundamentais. Nesse sentido, foi uma revolução
fundadora dos princípios que deram origem aos partidos comunistas nos
anos 20 e 30 do século passado, inclusive o Partido Comunista do Brasil.
A Revolução Russa foi para a ciência da história
moderna o que foram na Antiguidade as Musas de Heródoto. Comprovou que a
luta de classes é o motor dos acontecimentos, que toda luta de classes
é política, o que se traduz na luta pelo poder político,
em revolução política e que do exercício
revolucionário do poder político depende a evolução
ulterior da sociedade. O proletariado russo derrubou um dos bastiões da
reação mundial, implantou sua ditadura revolucionária de
classe e deu início à construção da nova sociedade.
Outubro de 1917 deixou como legado a noção até hoje
irrefutável de que somente com transformações
revolucionárias que sacudam a sociedade desde as suas raízes,
é possível abrir caminho ao desenvolvimento e à
justiça social. A Revolução de outubro de 1917,
aliás, ocorreu no calor da luta teórica e política de
Lênin contra os oportunistas da II Internacional, que apregoavam o
caminho reformista, quando a história, em trabalho de parto, amadurecia
soluções revolucionárias para dar à luz o novo.
Outubro de 1917 foi o laboratório que deu aos
revolucionários daquela geração os elementos para a
elaboração de conceitos fundamentais e universais, ainda hoje
válidos e vigentes, sobre o estado, o partido, a estratégia e a
tática.
Grandezas e misérias, esplendores e sombras
Muito já se discutiu e muito se discutirá sobre o
significado da Revolução de Outubro e do socialismo
soviético que com suas grandezas e misérias, esplendores e
sombras, marcou o século 20. Não sabemos se o movimento comunista
será capaz de fazer uma avaliação precisa e compreensiva
de uma experiência em torno da qual se dividiu no passado em campos
antagônicos. Tal avaliação é tarefa
necessária, porque das lições do passado poderemos retirar
importantes indicações para o futuro.
Celebrando a maior revolução jamais vista na
história da humanidade, sabemos tratar-se de acontecimento
irrepetível na sua forma e caminho próprio, porque é
original, única e irrepetível a circunstância. Mas
já acumulamos experiência e conhecimento para recusar
avaliações unívocas. Rejeitamos o liquidacionismo e nos
afastamos do dogmatismo. Reivindicamos o esplendor das conquistas da
Revolução Russa e mergulhamos fundo na análise de seus
desvios e perversões.
Ainda hoje nos deparamos com o niilismo contido em
afirmações como a de que a Revolução Russa e tudo o
que dela decorreu foram uma seqüência de erros colossais, uma
tentativa de desviar a história de seu caminho natural, agora retomado
depois da grande derrocada dos anos 90 o caminho que conduziria a
humanidade ao fim da História. A derrota do socialismo e seu
desaparecimento como sistema mundial, no apagar das luzes do século 20,
abriram espaço a tal leitura liquidacionista. É o mesmo
espaço em que se tentam equilibrar as forças da nova
esquerda, com suas diferentes versões de social-democracia
reciclada ou de um indefinido neocomunismo, que busca na
exumação do stalinismo e na identificação deste com
toda a experiência da luta e da construção do socialismo o
inimigo a combater.
Deparamo-nos também com a recusa a analisar a vida como ela
é, a buscar a verdade nos fatos, um apego e uma apologia acrítica
àquilo que se convencionou chamar de socialismo real,
revelador de um inconsistente dogmatismo que nos mantém cegos e
incapazes de retirar lições da História.
No conjunto contraditório de glórias e tragédias, a
Revolução de Outubro e a luta pela construção do
socialismo que se lhe seguiu têm conteúdo e forma de
acontecimentos épicos e não há propaganda negativa nem
leitura niilista, nem mesmo a renúncia capitulacionista a seu legado que
apaguem essa epopéia da memória dos povos ou esgotem sua
força inspiradora nos atuais e futuros embates revolucionários.
Essa força inspiradora provém dos seus grandiosos feitos e
de sua repercussão internacional. A Revolução Russa fez
saltar pelos ares um império reacionário, que Lênin chamava
de prisão dos povos. Sobre seus escombros, surgiu ao cabo de
uns poucos anos uma nova civilização humana, uma economia
desenvolvida, um povo culto e digno. Sob a influência soviética
cresceu o movimento operário nos países capitalistas,
desenvolveu-se a luta anticolonial nos países dependentes. A
Revolução Russa soergueu um Estado soberano e instrumentalizou um
Exército poderoso que se constituiu na força capaz de derrotar o
mais feroz inimigo da humanidade o nazi-fascismo. A
Revolução Russa e o socialismo soviético estiveram
presentes como inspiração, influência indireta e apoio
moral na grande Revolução chinesa, na Revolução
cubana, na Resistência vietnamita. Até mesmo a
adoção, pelos países capitalistas, do Estado de
bem-estar resultou, a par das lutas sindicais e políticas
nos países capitalistas, da influência da Revolução
de Outubro e do socialismo na URSS.
A compreensiva e precisa avaliação do significado da
Revolução de Outubro e da construção do socialismo
que ali se inaugurava deve fazer passar pelo crivo de uma ácida
crítica os erros, as perversões e os crimes que pontilharam o
percurso dos povos soviéticos e do Partido Comunista na luta pela
construção de uma sociedade progressista. A luta pelo socialismo,
como fenômeno histórico, é fruto também de suas
circunstâncias. Na Rússia o novo poder defrontou-se com a guerra
civil em que as classes derrocadas contaram com o apoio de 14 exércitos
estrangeiros numa ação contra-revolucionária durante
três anos. Os primeiros tempos da construção do novo regime
conheceram o comunismo de guerra e a NEP Nova Política
Econômica. Seguiram-se a coletivização do campo e a
industrialização acelerada, em meio a uma luta de classes
exacerbada e a tumultuadas lutas políticas nos órgãos de
governo e no partido dirigente. Enquanto promovia a
industrialização acelerada, o país viu-se diante da
circunstância de preparar-se para a guerra, num quadro mundial em que a
revolução, depois de um período de ascenso e de
vitórias parciais na Alemanha, Hungria e Sérvia, entrava em
refluxo.
O Período de industrialização acelerada, de fins
dos anos 20 do século passado até o começo da Segunda
Grande Guerra, foi o mais florescente do ponto de vista econômico e
social, de um impressionante, incomparável e irrepetível
desenvolvimento, em que se exigiu tudo das massas trabalhadoras e do partido,
período de mobilização total, quando se trabalhava e vivia
em permanente campanha e em ambiente de cerco. Por outro lado, talvez residam
nesse período marcado por uma acerba luta de classes, por atos de
sabotagem e ameaças de agressão, em que se exigiu também
centralização absoluta no comando da vida econômica como na
política , as causas estruturais para que o regime
soviético assumisse as características que assumiu. O
heroísmo da façanha soviética, e a urgência do
esforço de edificação somado à inexperiência,
levaram a direção comunista a atuar com a noção do
socialismo pleno e mesmo do comunismo imediato e ao apagamento de qualquer
idéia de transição longa que pudesse estar contida nas
idéias leninistas que informaram o lançamento da NEP na fase
anterior. A mentalidade de cerco e a necessidade de comando ultracentralizado
para garantir a mobilização total e permanente do povo fecharam o
regime, que não chegara a desenvolver a institucionalidade
democrática socialista a democracia de massas, popular, dos
sovietes, essência da proclamada ditadura do proletariado, segundo a
formulação clássica de Marx, posteriormente desenvolvida
por Lênin, o que acabou por alienar as massas populares, o único
sujeito criador e transformador da História. Não se equacionou
satisfatoriamente a antinomia desenvolvimento extensivo
versus
desenvolvimento intensivo, com repercussões negativas na produtividade
e no atendimento de demandas básicas das massas populares quanto a bens
e serviços.
Cada período da construção do socialismo teve sua
importância e história próprias. Foram circunstâncias
que para o bem e o mal fizeram as grandezas e misérias do esforço
criador da nova sociedade.
Uma nova luta para um novo tempo
A derrota do socialismo, para a qual concorreram também fatores
externos ligados à pressão e ao cerco dos países
imperialistas, criou uma situação inteiramente nova no mundo.
Como já assinalamos, no terreno das idéias deu azo à
negação dos valores fundados pela Revolução de
Outubro. No terreno político ensejou o surgimento de uma
correlação de forças extremamente desfavorável aos
que lutam por uma sociedade liberta da exploração capitalista.
Hoje é corrente a visão de que o socialismo foi definitivamente
derrotado e saiu da cena histórica como realidade e perspectiva.
Não comungamos essa visão. O socialismo continua sendo
uma necessidade objetiva da evolução da civilização
humana. E, nessa ótica, o socialismo e a sociedade sem classes
são o ideal supremo a justificar a existência e a atividade do
Partido Comunista. Ao reafirmarmos os princípios e os ideais de Outubro
de 1917, simultaneamente nos aferramos à realidade da época e
à do país em que atuamos. Hoje parece claro que está
sepultada a idéia do comunismo súbito. O exame atento
da História indica que a construção do socialismo e o
alcance de uma sociedade tão avançada quanto o comunismo
sociedade sem classes, reino da abundância, liberdade triunfante sobre a
necessidade é tarefa para muitas gerações que
atravessará diferentes épocas históricas.
A saída para os graves impasses por que passa a humanidade, a
superação da crise de civilização que atravessamos,
o impedimento da barbárie, exigirão das forças
progressistas e revolucionárias a capacidade de elaborar novas
estratégias para enfrentar os novos desafios próprios da
época contemporânea. A correlação de forças
extremamente desfavorável, decorrente do desaparecimento do socialismo
como sistema mundial implica adaptar o pensamento das forças
revolucionárias a uma luta de novo tipo por um socialismo renovado.
Trata-se, pois, de construir novos padrões e empreender novos passos de
um novo processo de acumulação revolucionária, inclusive
no que diz respeito à afirmação, revigoramento e
consolidação do Partido Comunista. Comemorar Outubro de 1917
é compreender que nesse mister estarão presentes os valores e
ideais daquela grandiosa Revolução.
______
[*]
Jornalista, membro do Conselho Editorial da revista
Princípios,
vice-presidente e secretário de Relações Internacionais
do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info