Brasil e América Latina novo momento político
por José Reinaldo Carvalho
[*]
A América Latina está atravessando um período de
importantes mudanças políticas. O fato de maior destaque foi a
eleição com uma votação consagradora (53
milhões de sufrágios no segundo turno, correspondendo a quase 60%
dos votantes) de Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos
Trabalhadores (PT), à frente de uma ampla coalizão eleitoral que
tinha em seu núcleo central o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e
contava também com a participação de
agremiações do centro, como o Partido Liberal (PL), que indicou
o vice-presidente, o senador José Alencar, um empresário
nacionalista do setor têxtil.
Lula conquistou a
presidência da República no maior país do subcontinente,
com uma extensão de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e
uma população já superior a 170 milhões de
habitantes, defendendo um programa de mudanças políticas,
econômicas e sociais, entre elas a democratização ampla e
profunda do estado, a implantação de um novo modelo de
desenvolvimento, com inclusão social, distribuição de
renda e soberania nacional, a realização de uma reforma
agrária e o início de uma caminhada para fazer o país
avançar no rumo do progresso social. A vitória de Lula despertou
enormes expectativas no povo brasileiro, um forte sentimento de
esperança que, como ele próprio disse no discurso da
vitória perante a multidão que se comprimia na Avenida Paulista,
venceu o medo.
Significado e causas da vitória de Lula
O triunfo eleitoral das forças progressistas e da esquerda brasileiras
interrompe um ciclo histórico de domínio de forças
oligárquicas, conservadoras, antidemocráticas e subordinadas aos
centros de poder internacional que se sucederam nas posições de
mando do estado nacional desde a proclamação da República,
há 113 anos, período que foi marcado também por golpes
militares e ditaduras, algumas de caráter fascista, como a que perdurou
por 21 anos em fase recente (1964-1985). Pela primeira vez na história
do Brasil, ascende ao vértice do poder nacional uma força
política de cariz democrático e progressista, com a
particularidade, também inédita, de que o novo presidente possui
uma trajetória de vida com sentido épico. Originário das
camadas mais empobrecidas do Brasil profundo, emigrou ainda em tenra idade para
uma São Paulo que já se transformava em principal centro
industrial do país em meados do século passado, passou parte de
sua infância como vendedor de rua, cursou apenas a escola
primária, tornou-se torneiro-mecânico, foi operário numa
filial de grande multinacional do setor automobilístico, onde se tornou
sindicalista. Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São
Bernardo (cidade do pólo industrial de São Paulo), liderou as
mais importantes greves operárias em finais dos anos 70, em pleno regime
militar. Fez aí seu batismo de fogo na luta social, para em seguida
ingressar nas lides da política fundando o Partido dos Trabalhadores.
Lula venceu as
eleições presidenciais depois de malograr em três
tentativas anteriores: 1989, 1994, 1998. Importa compreender porque venceu
agora. Politólogos de curta visão, mas com opinião
influente nos grandes meios de comunicação, atribuem a
vitória de Lula a fatores meramente conjunturais e a uma bem feita
peça de "marketing eleitoral, numa
superestimação da publicidade sobre a política. Não
há negar que Lula superou também esse obstáculo,
encontrando a justa medida e a justa forma de realizar a campanha quebrando ou
neutralizando os inomináveis preconceitos de uma classe média
cosmopolita e boçal, que freqüenta Miami duas vezes por ano, mas
nunca viu de perto a periferia dos grandes centros urbanos do próprio
país, onde se concentram imensos contingentes de miseráveis.
Não se pode tampouco eludir os limites da situação. Lula
vence as eleições num quadro de correlação de
forças desfavorável, numa sociedade essencialmente conservadora,
debaixo de uma pressão neoliberal e de uma forte chantagem dos donos do
capital financeiro, credores da dívida brasileira e detentores dos
capitais que financiam as contas externas do país, o que o obrigou a
fazer algumas cedências programáticas, mormente no que se refere
à aceitação de aspectos da política
macroeconômica imposta no último acordo com o FMI. Nesse
cenário, o PT completou sua conversão socialdemocrática,
tornando-se palatável e até merecendo elogios das classes
dominantes locais e de forças liberais e conservadoras da América
e da Europa. Mas nada disso, isoladamente, explicaria a derrota de uma
força política solidamente instalada no poder, como era o grupo
comandado pelo ex-presidente Cardoso.
A vitória de Lula
correspondeu ao fracasso da política neoliberal posta em prática
pelos dois sucessivos governos de Fernando Henrique Cardoso, que levou o
país à bancarrota financeira, à extrema vulnerabilidade
externa, a uma impagável dívida (interna e externa), à
desvalorização da moeda nacional em face das moedas fortes,
à estagnação econômica, a um desemprego e a uma
precarização do trabalho nunca antes vistos, à queda da
renda do trabalho, a uma economia de penúria, agravando todos os
problemas sociais históricos e estruturais do país. O Brasil, sob
a orientação econômica-financeira do Fundo Monetário
Internacional transformou-se numa usina de superávites primários
para financiar uma dívida pública que ultrapassa a marca de 60%
do PIB. E num torniquete de restrição monetária,
através do mecanismo de estabelecimento de elevadas taxas de juros. A
lógica que preside tal orientação é a
contenção do crescimento e a geração de excedentes
exportáveis a fim de pagar religiosamente o serviço da
dívida externa. O país se exauriu com a vigência prolongada
de tal política. O indicador do esgotamento desse modelo, além
dos fenômenos econômico-financeiros mencionados, é a crise
social refletida na existência de mais de 50 milhões de
brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza e na eclosão de uma
assustadora violência urbana cerca de 30 mil mortos anualmente em
ações violentas de variados tipos. Objetivamente, o Brasil chegou
ao final de um ciclo. O neoliberalismo levou o povo e a nação a
uma situação limite, cuja continuidade acarretaria ingentes
sofrimentos, comprometeria irremediavelmente o futuro do país e poderia
levar a sociedade a um inaudito estágio de degradação.
Através de diferentes meios e modos, foi isso o que o povo percebeu e
foi nesse sentido que se pronunciou ao dar a Lula vitória tão
consagradora, nele identificando o intérprete das suas
inquietações e anseios.
A vitória de Lula
é resultado também de uma acumulação de
forças que se vem processando na sociedade brasileira desde o
período das lutas contra o regime militar (pacíficas e violentas,
legais e clandestinas, eleitorais e armadas), passando pela campanha por
eleições diretas (1984), pela Assembléia Constituinte
(1986-1988) e incontáveis lutas políticas e sociais, entre elas
as campanhas presidenciais já mencionadas.
O triunfo eleitoral das
forças progressistas brasileiras é ainda fruto do amadurecimento
político da esquerda, que encontrou os caminhos para escapar ao
isolamento, descobriu que a frente ampla, a unidade de forças,
constituía o instrumento fundamental da vitória. Nesse
particular, foi de extraordinária importância a
contribuição do Partido Comunista do Brasil, que com sua
experiência e densidade política e ideológica protagonizou
a formulação do novo pensamento político que orientou a
campanha. A eleição de Lula, com base em uma frente ampla, foi a
forma concreta de enfrentamento da atual correlação de
forças no mundo e no Brasil, fortemente marcada pela ofensiva
conservadora e direitista contra as forças transformadoras e
revolucionárias. Pelo menos no caso brasileiro, ficou provado que para
enfrentar uma situação com essas características, é
necessário criar coalizões amplas e levantar bandeiras amplas,
capazes de aglutinar amplas massas em torno de objetivos concretos claros e
precisos. No Brasil, em decorrência da sua formação
econômica, social e política, emergiram três
questões-chave entrelaçadas: a
questão nacional
, porque o Brasil é extremamente dependente, a
questão democrática
, porque, embora sob regime constitucional formal, a democracia brasileira
é restritiva, e a
questão social
, porque o capitalismo no Brasil é socialmente iníquo e gerador
de insuportáveis desigualdades regionais e sociais.
Uma tendência com sentido revolucionário na América Latina
A instalação de
um governo das forças progressistas no Brasil abre a possibilidade de
alterar a correlação de forças na região.
Aliás, a vitória eleitoral de Lula ocorreu numa
seqüência de fatos que estão abalando o continente.
Tudo indica estar em curso a
formação de uma forte tendência que marcará por
muito tempo a evolução política na região. Tal
tendência aponta para o crescimento das lutas e do clamor por
mudanças de fundo na ordem constituída. De outra maneira e
trilhando distintos caminhos, já se manifestara na Argentina, quando da
retumbante queda do governo de Fernando de la Rua. O país platino
é a manifestação mais eloqüente e aguda da
falência do modelo neoliberal. A rebelião popular que derrubou De
la Rua não se converteu em revolução pelo atraso do fator
subjetivo, de que é ilustração maior a
fragmentação da esquerda. Mas dela resultou a
criação de um novo movimento social, combativo, das ruas, que se
vai aos poucos convertendo em fator diferencial e progressivo em meio ao caos
instalado e à falência das instituições. A
politização e a construção da unidade permanecem
como os grandes desafios.
O cenário
político latino-americano foi fortemente marcado recentemente
também pela memorável campanha eleitoral de Evo Morales na
Bolívia, que canalizou os sentimentos anti-oligárquicos e
antiimperialistas de extensas camadas da população; pelos
acontecimentos na Venezuela, onde as tentativas de golpe, sabotagens e
interferência direta dos Estados Unidos não conseguem parar o
ímpeto mudancista incrementado na população pela
revolução bolivariana; pelas novas possibilidades que se abrem no
Uruguai, com o crescimento da Frente Ampla e sua consolidação
como a principal força política do país; pela retomada do
movimento popular no Peru, após a queda da ditadura de Fujimori. Na
Colômbia, a emergência de um governo de extrema-direita, que optou
pela escalada de militarização, não consegue aniquilar a
luta armada. O conflito colombiano continua a exigir o reinício do
diálogo e a busca de soluções justas e duradouras.
A tudo isso se soma o
movimento unitário que se está construindo contra a ALCA, com
base na mesma consciência nacional que repudia as
privatizações e o pagamento das dívidas às expensas
da fome dos povos. Os dois plebiscitos realizados no Brasil o do ano
2000 sobre a dívida externa e o de 2002 sobre a ALCA são
fatos paradigmáticos desse sentimento, como o são também
os encontros continentais que tiveram lugar no ano passado no Equador e em Cuba
e o XI Encontro do Fórum de São Paulo, em Antígua,
Guatemala, assim como o III Fórum Social Mundial em Porto Alegre neste
início de 2003.
Tudo isso configura uma nova tendência e um novo ambiente político
e na luta social. Mas ainda insuficiente para alterar substancialmente a
correlação de forças. É uma tendência que
precisa de tempo para se firmar e assumir um caráter antiimperialista
mais nítido, dado que, por ora, ainda é fortemente influenciada
por forças vacilantes e intermediárias. Na forma e nos caminhos
concretos, é uma tendência variegada, que se manifesta a ritmos
desiguais nos diferentes países e cuja intensidade ainda corresponde a
um quadro de forças condicionado pela derrota do socialismo como sistema
mundial e pelo exercício da hegemonia pela superpotência
norte-americana. Mas o importante a reter é que o sentido de fundo do
fenômeno é revolucionário.
Controle hegemônico e ameaças do imperialismo
Em seu conjunto, a
América Latina também vive um fim de ciclo, que coincide com a
crise do neoliberalismo e de uma ordem internacional injusta, que precisa
perecer para destravar o caminho ao progresso social. A
estagnação, a dependência e a vulnerabilidade externa
constituem a característica central da situação
econômica.
Com variações
apenas de ritmos e formas, de acordo com situações nacionais
específicas, a América Latina viveu a última década
e meia sob o signo do Consenso de Washington e dos acordos com o
FMI, cujas receitas são o ajuste fiscal permanente, a
flexibilização das legislações laborais, a abertura
econômica e financeira indiscriminada, as privatizações
generalizadas e o pagamento estrito dos serviços da dívida
externa. Para a aplicação dessa receita, criou-se uma
institucionalidade baseada nas democracias controladas, regimes
políticos que embora formalmente democráticos, restringiram a
representação popular e usaram os parlamentos como caixas de
ressonância do poder executivo. Esse tipo de governo é a garantia
do controle político pelo imperialismo norte-americano e os organismos
financeiros internacionais depois de superada a fase dos regimes militares.
Formou-se uma espécie de condomínio de interesses entre setores
das classes dominantes locais com o capital financeiro internacional, que
passou a ditar as regras da política econômica através do
FMI, do Banco Mundial e da Organização Mundial de
Comércio. Em essência, ainda que nem sempre se manifeste assim,
é contra essa ordem, contra essa nefasta dominação
imperialista, que se desenvolve o atual movimento social e político em
terras latino-americanas.
O processo político em
curso no Brasil e no conjunto da América Latina, se desperta muitas
esperanças de transformações políticas,
econômicas e sociais, e abre a possibilidade de alteração
na correlação de forças, contém simultaneamente
muitos riscos e ameaças à democracia e à soberania dos
povos e países latino-americanos.
Os Estados Unidos nunca
deixarão de considerar a América Latina o seu pátio
traseiro e toda a sua estratégia de domínio hegemônico no
mundo parte da consideração, que no centro do império tem
o valor de uma cláusula pétrea, de que a América Latina
está definitivamente integrada à sua área de
influência. Por isso, é ilusório imaginar que o fato de
estar voltado para o Oriente Médio, a Ásia Central e o Extremo
Oriente, leve os Estados Unidos a reduzir o seu empenho para exercer controle
econômico e político sobre o subcontinente.
Onde residem as principais
ameaças?
Primeiro
, na reafirmação por parte de autoridades do imperialismo
norte-americano de que, haja o que houver em termos de evolução
política, os Estados Unidos não cederão espaço, nem
renunciarão ao seu controle sobre o subcontinente. Isto ficou patente na
conduta norte-americana durante a crise venezuelana, quando o governo de Bush
tomou partido abertamente da oposição, propondo o afastamento do
presidente Hugo Chavez e ao reagir à proposta brasileira de criar o
grupo de países amigos, primeiro combatendo-a, depois, quando a proposta
vingou, exigindo a inclusão do seu governo entre os integrantes do
grupo. A reação dos Estados Unidos à eleição
de Lula no Brasil e Gutiérrez no Equador foi ilustrativa de como a
superpotência do Norte está encarando as mudanças
políticas em curso. Ao mesmo tempo em que convidava Lula a visitar a
Casa Branca antes mesmo da posse do novo presidente brasileiro, o governo
norte-americano, através de seus porta-vozes, fazia veladas
ameaças, mostrando que não está disposto a tolerar
mudanças de rumo: Lula e Gutiérrez podem ser de esquerda,
mas enquanto forem democráticos, estiverem prontos para serem amigos de
seus vizinhos e dos EUA
podemos trabalhar com eles para contribuir com a
liberdade e a segurança do hemisfério, declarou Otto Reich,
então subsecretário de Estado norte-americano para a
América Latina.
Em
segundo
lugar, na estratégia dos Estados Unidos consistente em exercer tal
controle hegemônico sob a forma de integração,
através da Área de Livre Comércio das Américas
(ALCA), programada para entrar em vigor em 2005. Para além de uma
integração comercial ou da formação de um
mercado comum das Américas, uma ficção em face
das colossais disparidades entre as economias dos Estados Unidos e as dos
demais países da região, a ALCA é parte de um projeto
estratégico do imperialismo norte-americano visando a aumentar o seu
domínio na América Latina. Uma vez concretizado, o projeto da
ALCA implicará um salto de qualidade nas já tradicionais
relações de dependência econômica e política
entre a gigantesca potência do hemisfério norte e os países
centro e sul-americanos. É o mais ambicioso e abrangente plano de
americanismo e integração subordinada jamais concebido pelos
Estados Unidos na América Latina. É um projeto de
dominação neocolonialista, de avassalamento, em que os
países que nele se integrarem transformar-se-ão em
apêndices e colônias dos Estados Unidos. O andamento do processo
de implementação da ALCA está caminhando celeremente. A
aprovação pelo Congresso dos EUA da Autoridade de
Promoção Comercial, nova versão do antigo
fast track
e o início das negociações concretas, com a entrega por
cada país das ofertas de reduções tarifárias, neste
início de 2003, são passos para a viabilização da
ALCA. A integração proposta pelos Estados Unidos, que traz em seu
bojo também a exumação do Acordo Multilateral de
Investimentos AMI redundará num desastre econômico
para todos os países latino-americanos, afetará irremediavelmente
as suas soberanias. São previsíveis as suas
conseqüências nefastas: aprofundará o modelo neoliberal;
acarretará a abertura total das economias, derrubando o que resta de
salvaguardas nacionais; criará uma zona econômica privilegiada
para os grandes grupos econômicos e financeiros norte-americanos;
implicará novos sacrifícios para os trabalhadores, porquanto a
flexibilização das leis laborais e a ab-rogação de
direitos se tornarão inevitáveis; no plano político, a
vida democrática sofrerá novas mutilações, pois os
países passarão a ser regidos não mais por suas
Constituições, que em definitivo virarão letra morta, mas
por códigos de normas supranacionais. À ALCA se agregam dois
outros planos estratégicos: o Plano Puebla-Panamá, voltado para a
América Central e o Caribe e o Plano Colômbia Iniciativa
Regional Andina, de interferência política e, quiçá
militar, no conflito colombiano. Como se nota, é um cenário
deveras ameaçador.
A
terceira
ordem de riscos e ameaças que hoje pesam sobre a América
Latina e em especial sobre o Brasil é a ameaça de mais um colapso
financeiro. Desde há muitos anos, o Brasil não fecha as contas do
seu balanço de pagamentos nem financia o seu comércio exterior se
não contar com aportes maciços anuais de divisas, o que tem sido
assegurado por sucessivos acordos com o FMI. É o nó górdio
da vida econômica brasileira, é o principal obstáculo ao
desenvolvimento nacional e à construção de um modelo
alternativo, baseado na independência nacional e na justiça
social. Já antes do desfecho do processo eleitoral, e principalmente
depois da posse do novo governo, as principais pressões externas e,
diga-se, as principais cedências do governo convergem para esse ponto.
Entre o 1º e 2º turnos, o sub-secretário do Tesouro dos
Estados Unidos, Kenneth Dam, declarou: Os Estados Unidos estão
dispostos a colaborar com o governo de Lula, desde que adote políticas
sadias, baseadas no equilíbrio orçamentário (leia-se
arrocho fiscal), no controle da inflação e no respeito aos
contratos (leia-se o pagamento religioso do serviço da
dívida)
o dinheiro do FMI está lá, desde que as
políticas corretas também estejam. O governo Lula
até aqui tem sido constrangido aceder a essas pressões. A
política econômica anunciada e posta em prática na fase de
transição, comandada por um ex-trotsquista convertido ao
monetarismo no posto de ministro da Fazenda, e pelo ex-presidente do Banco de
Boston à frente do Banco Central, guarda semelhanças com a do
governo anterior. Essa política prevê uma agenda de
reformas da Previdência Social, da estrutura
tributária do país e do sistema financeiro (concessão de
autonomia ao Banco Central) de acordo com o figurino desenhado pelos organismos
financeiros internacionais .
Essa política
econômica é o paradoxo do governo de Lula, que se revela um
governo ativo, avançado e cheio de iniciativas nas áreas social e
de política externa. Pode ter efeitos paralisantes sobre o projeto
transformador, inviabilizá-lo, o que redundaria em
defraudação das expectativas e da confiança do povo
brasileiro, que continuam altas.
O enfrentamento dos impasses
econômicos para construir um novo modelo de desenvolvimento nacional e
promover a justiça social estará no centro dos embates
políticos. Em torno das opções que se fizerem
produzir-se-á uma diferenciação e decantação
de forças políticas. O governo de Lula é hegemonizado por
um partido de esquerda heterogêneo, o PT, que abriga um sem-número
de facções, desde uma maioria social democrata a grupelhos
inconseqüentes de ultra-esquerda. Conta com o apoio e a
participação, inclusive ao nível ministerial, do Partido
Comunista do Brasil, que tem existência autônoma e independente no
Brasil há mais de 8 décadas. No ministério estão
presentes também partidos de centro representativos de importantes
frações das classes dominantes. É, pois, um governo de
centro-esquerda (o que no Brasil e na América Latina não tem a
mesma conotação européia) , plural, heterogêneo, que
reúne amplas forças políticas. Tudo indica que em seu
interior haverá unidade e luta. Unidade quando convergirem os interesses
nacionais e populares comuns contemplados na plataforma eleitoral de Lula.
Luta, quando se confrontarem no dia a dia as duas linhas opostas e os dois
projetos antagônicos da sociedade brasileira no seu estágio atual
o projeto continuísta e de subordinação ao
neoliberalismo e o projeto democrático, nacional e popular consistente
em abrir um novo rumo para o país, de desenvolvimento econômico
combinado com o progresso social e o aprofundamento da democracia.
A possibilidade de uma nova correlação de forças
O Brasil se tem revelado ao longo das últimas décadas um
país cheio de potencialidades de luta transformadora. O governo de Lula,
pela sua história de vida e compromissos, e pela capacidade que tem de
unir um núcleo politicamente maduro da esquerda brasileira, do qual
fazem parte os comunistas, poderá ser uma trincheira importante dessa
luta. E dar uma contribuição decisiva para alterar a favor dos
povos a correlação de forças na região.
Essa trincheira, em tempos de globalização imperialista,
necessariamente se articula com os espaços internacionais,
principalmente o Fórum de São Paulo e o Fórum Social
Mundial. O Fórum de São Paulo é e seguirá sendo por
muito tempo, um espaço de convergência da esquerda
latino-americana e caribenha. Depois de 11 encontros, está
afiançado como um dos espaços de confluência das
forças avançadas e progressistas de maior relevo mundial.
Certamente, a convergência não implica monolitismo nem nega as
diferenciações. Também em seu interior estão
presentes a unidade e a luta, entre visões terceiristas e adaptativas e
concepções revolucionárias de maior alcance
estratégico.
O Fórum Social Mundial, depois de três encontros em Porto Alegre,
consolidou-se como um espaço e um momento de reflexão, debate e
luta contra a globalização imperialista. Tendo colocado no centro
temas políticos, como a luta pela paz, a luta contra a ALCA e o
questionamento da ordem econômica e financeira neoliberal, o Fórum
na prática se politizou, refutando objetivamente falsas prédicas
sobre a fragmentação dos movimentos sociais e seu isolamento de
uma perspectiva política. Muito ao contrário de afirmar o
movimento dos movimentos como via de superação da
crise geral da política, o Fórum Social Mundial
aproxima os movimentos sociais da política. As relações
destes com os partidos políticos passam a ser, nessa medida, uma
questão de método. Como é também uma questão
de método o equacionamento da relação entre as lutas nos
espaços nacionais e as lutas de alcance internacional. A
interação entre ambas as esferas também se impõe
na prática. Os acontecimentos em curso no Brasil e em toda a
América Latina são a melhor ilustração disso.
___________
[*]
Jornalista, vice-presidente e secretário de Relações
Internacionais do Partido Comunista do Brasil, autor de
Conflitos Internacionais num Mundo Globalizado
(Ed. Alfa Omega, São Paulo, Brasil, 2003).
Este artigo encontra-se em
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