Novas indagações

por Duarte Pereira [*]

Pode-se afirmar que o presidente do Banco Central ocupa, hoje, o terceiro cargo da administração federal em ordem de importância, logo após o presidente da República e o ministro da Fazenda. Por isso, o depoimento do engenheiro Henrique Meirelles, indicado pelo presidente eleito Lula para assumir esse cargo decisivo, foi aguardado com interesse. Quem ouviu a arrastada sabatina na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, e mantém convicções democráticas, defende a soberania brasileira e continua comprometido com o projeto socialista, ficou aturdido.

O ex-executivo do Bank of Boston não poderia ser mais claro. Elogiou o governo do presidente Fernando Henrique, ressalvando apenas a sobrevalorização cambial até janeiro de 1999. Declarou sem evasivas que seguirá as diretrizes que o atual presidente do Banco Central, Armínio Fraga, imprimiu à instituição nos últimos anos, em particular o sistema de metas inflacionárias. Para desfazer qualquer dúvida, afirmou repetidamente que a incumbência básica do Banco Central é controlar a inflação, devendo para isso manter a taxa de juros tão alta quanto for necessário. Alegou também que o Banco Central pouco pode influenciar a taxa de câmbio, já que ela deve ser determinada pelo mercado. E, mesmo reconhecendo que a política fiscal não faz parte das atribuições do Banco Central, adiantou a opinião de que o superávit primário de 3,75% deve ser aumentado para desacelerar a expansão do endividamento público, garantir o pagamento de juros e amortizações da dívida pública e recuperar a credibilidade do governo brasileiro junto a seus credores. Essa medida, somada ao aumento da eficiência econômica (seja lá o que isso signifique para ele), é que viabilizaria, posteriormente, a redução dos juros e a ativação do crescimento da economia. E só então os gastos sociais poderiam ser ampliados de forma sustentada. Esse roteiro enganador é um velho conhecido dos trabalhadores!

O ex-executivo do Bank of Boston informou também que o presidente eleito Lula e seu futuro ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, se comprometeram a enviar um projeto de lei ao Congresso Nacional instituindo a independência do Banco Central e definindo mandatos fixos para seus diretores. Esclareceu ainda que, ao convidá-lo para o cargo, ambos reafirmaram o compromisso de respeitar os contratos. E, defendendo sem hesitações a “ortodoxia” econômica, atribuiu a permanência dos juros altos, não ao aumento recente da fragilidade externa da economia brasileira, mas a medidas “heterodoxas” adotadas no passado.

Questionado por senadores do PDT, do PSB e até por um senador do PSDB, defendido timidamente por senadores do PT, e apoiado com firmeza por senadores do PFL, do PSDB e do PPS, o ex-executivo do Bank of Boston insistiu o tempo todo na independência do Banco Central e na defesa de uma orientação econômica conservadora. Parecia estar sendo escolhido, não para ajudar o novo governo a promover mudanças, mas para exercer, como representante do grande capital financeiro, um papel de vigilância e tutela desse governo, a fim de que não se afaste do compromisso assumido de preservar o tripé básico da política econômica do governo Fernando Henrique em seu segundo mandato: a flutuação da taxa cambial determinada pelo mercado, o sistema de metas de inflação garantidas por juros altos e o arrocho fiscal para assegurar superávits primários elevados.

Ouvindo o depoimento do ex-executivo do Bank of Boston, indicado para a estratégica presidência do Banco Central, tornou-se impossível, portanto, silenciar novas e aflitivas indagações. Onde foram parar as mudanças prometidas pelo presidente eleito Lula? É possível mudar sem mudar? Condicionado pelo famoso tripé do governo Fernando Henrique e pelas decisões independentes e restritivas do Banco Central, que margem de mudança terá o novo governo? A mudança da economia pode consistir apenas em promover um novo esforço exportador, semelhante aos que patrocinava o antigo ministro Delfim Netto nos governos militares? A obtenção de saldos comerciais elevados é suficiente para acelerar o crescimento da economia, fortalecer a soberania nacional, redistribuir a renda concentrada e gerar os 10 milhões de empregos, prometidos durante a campanha e dos quais não se fala mais? Com altas taxas de desemprego e subemprego, com salários desvalorizados pelo repique da inflação e com novos cortes nos gastos públicos, é possível cumprir a promessa de “fome zero”?

Mais ainda: é possível aprofundar a democracia e o controle operário-popular sobre as instituições públicas, formalizando a independência do Banco Central e garantindo a seus diretores mandatos fixos e irrevogáveis, a não ser em circunstâncias excepcionais? De que adianta eleger presidente, senadores e deputados federais se deles é retirado o controle real de uma instituição decisiva para a administração econômica do país, como o Banco Central, a pretexto de que suas decisões são “técnicas” e ”neutras”?

O futuro ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, já havia garantido várias vezes que o superávit primário das contas públicas será tão alto quanto for necessário para frear o crescimento da dívida pública. O futuro presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, agora garante também que o juro será tão alto quanto for necessário para manter a inflação baixa. Escutando essas promessas, o mercado financeiro pode ter ficado tranqüilo. Afinal, os lucros de suas aplicações aparentemente estarão garantidos. Já os trabalhadores e os empresários verdadeiramente nacionalistas devem ter ficado perplexos e apreensivos.

Solidariedade e respeito à senadora Heloísa Helena, do PT, e ao senador Jefferson Peres, do PDT, que não perderam a coerência nem a coragem!

São Paulo, 18/dez/2002.


[*] Jornalista brasileiro.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info
20/Dez/02