"Negacionismo" de esquerda: militares e genocídio
Seguindo a tradição brasileira, vemos agora a costura de
um novo
pacto. De olho em 2022, babando para se aliar com quem até outro dia
desses era chamado de 'golpista', vários nomes e setores da esquerda
brasileira preparam terreno para o grande pacto de esquecimento do
século XXI.
Enquanto escrevo estas linhas, o Brasil já ultrapassou, em
números oficiais, mais de 300 mil mortes. Em números reais,
podemos já estar perto de 500 mil mortes. Não é
coincidência que o governo liberal-fascista de Bolsonaro tenha cortado em
90% o orçamento do IBGE, inviabilizando na prática o
próximo censo nacional. Nada melhor para esconder um genocídio do
que ocultar os dados e desmontar o principal órgão de pesquisa
demográfica do país.
A matança não terminou no Brasil e já se articula um
grande pacto pelo "esquecimento nacional". O Brasil, como diria
Carlos Nelson Coutinho, é o país por excelência das
transições pactuadas pelo alto. Ao proclamar o fim da
escravidão, a elite dirigente decretou que não existia mais um
problema racial no Brasil e que não tínhamos que remoer a
história do escravismo, mas andar para frente para materializar o
esquecimento, uma quantidade infindável de documentos referentes
à escravidão foi queimada.
O fim da ditadura do Estado Novo também expressou um grande pacto de
conciliação e esquecimento nacional. Filinto Müller e
companhia limitada nunca foram punidos pelas atrocidades cometidas contra
comunistas, anarquistas, sindicalistas e outros tantos que, por um motivo ou
outro, entraram em contradição com o varguismo.
Sobre a ditadura empresarial-militar de 1964 não preciso escrever.
É fato conhecido que a "anistia ampla, geral e irrestrita"
deixou intocados os torturadores, assassinos e criminosos da ditadura, assim
como seus patrocinadores e patrões: nenhuma entidade patronal,
burguês, monopólio de mídia, clero da alta burocracia da
Igreja Católica ou conspirador dos Estados Unidos fantasiado de
diplomata foi punido ou responsabilizado politicamente. Os militares não
só saíram da ditadura pela porta da frente, como o Estado montado
durante 1964-1985, ao menos nos seus órgãos de repressão,
vigilância e controle, foi, no essencial, mantido. No lugar da
caça aos comunistas, entrou a guerra ao crime, aos traficantes,
às drogas etc. A máquina de moer gente e a guerra ao inimigo
interno prosseguem.
Os militares não só seguiram tranquilos, dormindo o sono dos
canalhas que não terão o mesmo destino de Mussolini, como
passaram a confraternizar com amplos setores das esquerdas brasileiras.
Não faltaram "filhotes da ditadura" passeando de mãos
dadas com seus antigos inimigos os que eles não conseguiram matar
no passado, é claro. Delfim Netto, tzar econômico dos milicos,
até hoje um orgulhoso de ter sua assinatura no AI-5, passou a circular
serelepe nos espaços de esquerda como se nada tivesse acontecido. Paulo
Maluf e semelhantes, como José Sarney e Antonio Carlos Magalhães,
viraram "companheiros" e assim seguiu o grande pacto de esquecimento.
Agora, seguindo a tradição brasileira, vemos a costura de um novo
pacto. De olho em 2022, babando para se aliar com quem até outro dia
desses era chamado de "golpista", vários nomes e setores da
esquerda brasileira preparam terreno para o grande pacto de esquecimento do
século XXI. A operação é simples no seu cinismo:
transformar Bolsonaro numa entidade mítica, etérea, pairando
sobre o ar. O fascista na presidência é o único, junto com
sua família, responsável pelo genocídio em curso. Todo
processo que levou à formação do governo liberal-fascista
deve ser esquecido. Todos os atores políticos que se lambuzaram no
governo e não falo de leite condensado devem ser
acolhidos, e não pense em falar da responsabilidade da burguesia e da
Embaixada de Washington na tragédia que abate nosso país.
A blindagem dos atores políticos responsáveis pelo
genocídio guarda um lugar especial para o Partido Fardado: os militares,
com mais de 7 mil cargos no governo, formando o governo mais militarizado da
história brasileira, devem ser poupados de toda e qualquer
responsabilidade pela matança em marcha. Como fazê-lo? É
simples, operar abertamente um discurso "negacionista". Nenhuma
prova, mas muitas convicções é a fórmula
nacional do sucesso.
Vejamos alguns exemplos. Tarso Genro, ex-prefeito, governador, ministro e
destacado quadro do PT, publicou em janeiro desse ano um
artigo no
Sul21
chamado "O culpado da mortandade não é o Exército.
É Bolsonaro e seus políticos liberais e fascistas". A
lógica de argumento de Genro é curiosa. Deixando de lado as
reflexões sobre cultura nacional, Trump, história dos EUA e
afins, ele começa a debater a questão militar dizendo "penso
que os militares do país na sua ampla maioria não
querem que o país seja no futuro o que é o Rio de
Janeiro hoje. Este é o meu ponto de partida". Tarso se refere aos
grupos milicianos do Rio de Janeiro. Que os militares, ciosos da hierarquia,
não queiram uma estrutura miliciana nas Forças Armadas é
um truísmo. Agora, que eles tenham alguma oposição ao
projeto político expresso no Rio de Janeiro, lógica
implícita no raciocínio de Tarso, não é
demonstrado. Tarso apenas "pensa".
Em seguida, comenta do golpe de 2016. Afirma que "pode ter tido a simpatia
de uma parte das forças militares do país", mas
"não foi promovido por nenhuma delas". Qual é o
argumento para sustentar essa afirmação? Não temos. O
argumento é uma projeção tático-estratégica
que substitui a análise "mas não é correto colocar
todas as instituições no mesmo saco". Note o elemento
retórico: o debate não é equalizar o papel de todas as
instituições no impedimento, mas debater o papel dos militares.
Seguimos.
Para Tarso Genro, responsabilizar em alguma medida os militares pelo
genocídio em curso seria igual a obscurecer o conjunto de forças
e atores políticos que deu vida ao bolsonarismo e não responder a
essa pergunta central: "conseguiu sobreviver como governante de uma
nação, sem qualquer respeito à moralidade republicana e se
fez o projeto das suas classes dominantes, emprestando a sua face ao corpo
político neoliberal do país?". Tarso não se pergunta
se a presença de mais de 7 mil militares no Governo, contando até
pouco tempo com um general da ativa no ministério da Saúde
(General Pazuello), tem relação com essa sobrevivência.
Tarso também não pergunta se cumpriram algum papel, na
relação Governo-Congresso-STF, as ameaças abertas de
militares, como as do General Heleno e do ex-ministro da Defesa Fernando
Azevedo e Silva (que alguns querem esquecer, mas que sobrevoou com
helicóptero da FAB a praça dos três poderes durante atos da
extrema-direita pedindo fechamento do Congresso e STF). O fato do novo ministro
da Defesa, General Braga Netto, ter sido ministro da Casa Civil
portanto, articulador político do governo também
não faz Genro questionar a relação dos militares com a
"sobrevivência" de Bolsonaro (Braga Netto que, no Governo
Temer, foi interventor no Rio de Janeiro durante o assassinato de Marielle
Franco e Anderson Gomes).
O ex-governador chega ao ponto de dizer que "com isso quero dizer que
é errado, do ponto de vista político, e injusto, do ponto de
vista histórico, identificar o Exército Brasileiro com a chacina
sanitária". Quais os argumentos para afirmar isso? Não
há argumentos, mas considerações
tático-estratégicas para o futuro. Não se trata de
analisar as coisas como elas são, mas falar o que supostamente é
necessário para ações futuras. O argumento todo de Tarso
é esse:
"É errado, porque ajuda a extrema direita militar a se reorganizar
na ativa e é errado porque Bolsonaro não representa nem de longe
a moralidade média das FFAA nem sua vocação
política que é positivista conservadora, mas não fascista
; e é errado, porque reduz a responsabilidade objetiva e subjetiva
dos militares da reserva, dos políticos do entorno de Bolsonaro, das
religiões do dinheiro que lhe dão sustentação e do
consórcio midiático-empresarial que o elegeu presidente e ainda
lhe mantém no poder."
Destaco duas coisas. Genro pega o lugar batido do caráter positivista
das Forças Armadas brasileiras, dado real, e disso nega automaticamente,
sem argumentar, qualquer processo de fascistização em curso. Em
segundo lugar, novamente, diz que olhar para o Partido Fardado seria igual a
desresponsabilizar os monopólios de mídia, o fundamentalismo
religioso etc. Mas onde está a demonstração disso?
Também não temos.
Por fim, Tarso conclui seu artigo com esse argumento. Peço uma leitura
atenta:
"É errado, finalmente, porque é impossível construir
República e Democracia no Brasil, sem que a maioria das Forças
Armadas seja conquistada para um projeto de nação, cuja soberania
estará depositada em grande parte nas mãos destas
instituições, por dentro do Estado Democrático de Direito,
tenha ele características de um Estado Social, seja ele um Estado de
Direito meramente liberal-democrático. Estas considerações
estão em polo totalmente oposto aos 'puxões de orelhas', que
alguns militares da ativa e da reserva querem dar em jornalistas que denunciam
os seus desmandos e a total falta de integridade deste governo, atacando
diretamente a liberdade de crítica e de opinião."
O "x" da questão é revelado. Tarso considera que o
único meio de "construir" a "República e
Democracia" (não estão construídas? Foram
destruídas quando? Os mais de 7 mil militares no governo têm
responsabilidade nessa destruição?) é conquistar a
"maioria das Forças Armadas". Esse imperativo tático e
estratégico impele a negar a realidade e retirar deles qualquer
responsabilidade. A compreensão do hoje é subordinada a um futuro
possível.
O ex-governador da Bahia e senador Jacques Wagner, em
artigo recente na revista Carta Capital
, apresenta uma leitura parecida com seu colega de partido. No artigo de
Wagner, intitulado "A orientação maior dos militares, creio
eu, segue os princípios constitucionais", ele diz "a recente
demissão do ministro da Defesa, seguida de inédita troca dos
comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, por
não compactuarem com a sanha golpista do Planalto, diz muita coisa.
Reforça o caráter de Estado que caracteriza essa
instituição".
Existe uma argumentação para mostrar que a troca de comandantes
das Forças Armadas foi apenas ou principalmente por não
compactuarem com a "sanha golpista" do presidente? Não.
Wagner, seguindo um padrão de amplos setores das esquerdas, apenas
repete a narrativa divulgada pelos monopólios de mídia. No dia da
"maior crise militar da história", fontes anônimas,
segundo os monopólios de mídia, sopraram nos seus ouvidos que os
militares são democratas, legalistas, constitucionalistas, moderados e
que Bolsonaro é a única besta-fera do governo.
O ex-governador ainda tranquiliza os que estão apreensivos e garante que
prevalece a orientação constitucional entre os militares:
"é natural que o clima permanente de instabilidade do atual governo
provoque muitas dúvidas sobre o engajamento dos militares. Por isso,
tenho repetido, e os episódios recentes fortalecem, minha crença
de que a orientação maior é com os princípios
constitucionais". O também ex-governador, ministro e
presidenciável pelo PDT, Ciro Gomes, seguiu a mesma linha do petista na
leitura da demissão de Azevedo e Silva.
A
fala de Ciro
cobre os militares de elogios e chama sua participação
recorde na história no governo de "equívoco"
(equívoco por que? O que levou ao erro?),
"E para o povo brasileiro: nós devemos receber essa mensagem com
prudência e, acima de tudo, com muito respeito. É um primeiro
grande sinal de que as Forças Armadas estão se desencantando com
as loucuras que Bolsonaro tem praticado no Brasil. Também é sinal
que eles querem retornar o melhor respeito que sempre deveriam ter merecido se
não fora a aventura, o equívoco, de terem hoje quase 4 mil
militares da ativa dentro do governo."
Com um tom muito mais comedido e ponderado, Guilherme Boulos, no seu programa
no YouTube (Café com Boulos), lançou um vídeo chamado
"Vai ter golpe?"
, em que analisa os intentos golpistas de Bolsonaro. Segundo Boulos, os
militares, como Edson Pujol, deixaram Bolsonaro irritado com a defesa da
Constituição, não pegando carona em intentos golpistas.
Para Boulos, "aparentemente", os militares não vão
embarcar por agora nas ações de fechamento de regime desejadas
pelo fascista na presidência. Como eu disse, mesmo com um tom mais
ponderado e cuidadoso, Boulos segue a tendência de Ciro Gomes e Jacques
Wagner de ver na demissão de Azevedo e Silva uma resistência ou
negação ao golpismo de Bolsonaro em prol da legalidade.
Por fim, Aldo Rebelo, ex-deputado, ministro e por décadas um dos
principais quadros do PCdoB e hoje no Solidariedade, deu uma entrevista para o
canal no YouTube da revista
Carta Capital.
O título do vídeo é ilustrativo:
"Exército resiste ao 'regime' Bolsonaro. Por que?."
Na entrevista, Aldo cobre os militares de elogios: democráticos,
legalistas, profissionais, dedicados e afins. O nível de elogios
é tão grande que, em vários momentos, Aldo mobiliza a
imagem do militar na selvagem amazônica, "cuidando dos
índios", atendendo ribeirinhos, ganhando um salário
baixíssimo.
O quadro de exemplos está completo. A partir disso, podemos fazer dois
apontamentos fundamentais. Pedro Marin, editor da
Revista Opera
e um dos autores do livro
Carta no Coturno,
vem chamando atenção para o novo protagonismo político
dos militares e ações que precedem a ascensão de Bolsonaro
à presidência. A tese que Pedro Marin sustenta, e que concordamos
e seguimos, é que os militares se utilizaram de Bolsonaro no seu projeto
de poder, e o líder neofascista fez o mesmo, numa comunhão de
interesses. Mas, o Partido Fardado é cuidadoso com sua autonomia
política e com o andamento do projeto próprio.
Quando Bolsonaro diz que pode usar o "seu exército" e
vamos supor que a narrativa dos monopólios de mídia esteja
correta, e a crise militar tenha ocorrido devido a uma tentativa de decretar
estado de sítio ou até mesmo um fechamento total do regime
, por qual motivo os militares diriam amém para o presidente? Uma
resposta positiva iria ferir a autonomia política do projeto
próprio dos militares, colocando-os na prática e publicamente
como "o Exército de Bolsonaro" e em uma posição
complicada: o meio fechamento de regime, com as reações, tende a
caminhar para um fechamento progressivo maior mas hoje essa
remodelação do sistema político não encontra apoio
na burguesia e na Embaixada de Washington ou para um recuo e a volta da
"normalidade".
No segundo caso, um ato com tendência a desmoralizar politicamente o
Partido Fardado; no primeiro, uma aventura sem sólido apoio na classe
dominante e no cenário internacional, comprometendo as
opções de jogo político do Partido Fardado. Aliado a isso,
se é verdade o discurso dos monopólios de mídia de que
Bolsonaro queria operar um golpe de estado ou um semi fechamento de regime, a
permanência dos milhares de militares no governo poderia ser observada
como cumplicidade e ausência de antagonismo irreconciliável com um
projeto golpista, mas é mostrada como compromisso democrático,
legalista, constitucional. Então o mesmo militar que no jogo do dia a
dia ameaçava o Congresso e o STF, torna-se um democrata ao cobrir com um
manto de discurso legalista o ato político de preservar sua autonomia.
É como se dois filhos roubassem dinheiro da carteira do pai, sempre em
pequenas quantidades para ele não perceber e o roubo ser permanente. Um
belo dia, um dos irmãos decide roubar o cofre do pai e o outro
irmão recusa participar da empreitada, dada a situação
atual de roubos pequenos, mas constantes, ser confortável. Com essa
recusa, só o irmão mais ambicioso é apresentado como
ladrão, enquanto o segundo é visto como o baluarte da honestidade.
Cabe também dizer como a quartelização da política
termo emprestado de Pedro Marin foi naturalizada, e a massiva
participação dos militares no governo é tratada como erro,
engano, equívoco e nunca como projeto. Não é preciso ser
um grande especialista em questões militares para saber que os
militares, da ativa ou reserva, mantêm unidade de ação e
comando a partir da farda, que sua participação no governo
não é o mesmo que a participação de civis. Por que
tantos militares entraram e por que, mesmo com a tragédia da pandemia,
permanecem? É incrível como essas perguntas não são
feitas.
Para concluir esse texto, terei que recorrer a uma longa citação.
Pedro Marin, em artigo de 26 de fevereiro de 2021, chamado
"A 'descoberta' do Partido Fardado e as perguntas que não querem calar"
, apresenta as perguntas fundamentais, mas evitadas por aqueles que querem
negar a centralidade dos coturnos e fuzis na política brasileira. Evitar
fazer as perguntas corretas, ocultando a existência do Partido Fardado,
pode ser o primeiro grande sinal do próximo pacto de esquecimento
nacional. Pessoalmente, não acho que Guilherme Boulos participaria desse
pacto e tenho dúvidas quanto a Ciro Gomes, mas desde já afirmo
que todo discurso dos militares como democratas, constitucionalistas ou sem
responsabilidade central no genocídio que vivemos contribui para a
próxima "anistia ampla, geral e irrestrita".
Seguem as perguntas formuladas por Pedro Marin:
Primeiro. Em agosto de 2019 o ministro Dias Toffoli, então presidente do
STF, declarou em entrevista à
Veja
que, durante uma "crise institucional" ocorrida em abril daquele
ano, "um dos generais próximos do presidente" consultou um
ministro do Supremo Tribunal, "para saber se estaria correta a sua
interpretação da Constituição segundo a qual o
Exército, em caso de necessidade, poderia lançar mão das
tropas para garantir 'a lei e a ordem'". Isto é, consultou um
ministro do STF sobre a constitucionalidade de um golpe. Não cala a
pergunta: quem foi o "general próximo do presidente", e com
qual ministro ele falou? O senhor Toffoli certamente pode responder.
Segundo. Há algumas semanas, dias antes das eleições para
a presidência da Câmara e Senado, um assessor do
vice-presidente-general, Hamilton Mourão, teria trocado mensagens com
deputados no sentido de articular uma possível sucessão de
Mourão à presidência. O assessor declarou que fora
hackeado; a vice-presidência declarou que o vazamento era
inverídico e, ao fim, o vice-presidente-general disse que o assessor
agira sem seu consentimento, demitindo-o. Afinal, o assessor foi hackeado? Se
sim, por quem? O vazamento era falso? O assessor do vice-presidente de fato
agiu por suas costas? De certo o assessor Ricardo Roesch pode nos esclarecer.
Terceiro. Em 30 de abril, o decreto que instituiu a Operação
Verde Brasil na Amazônia se extinguirá. Os militares
deixarão a região, restringindo sua presença a 11
municípios. A pergunta: o que os militares fizeram na Amazônia
nestes últimos anos, a tão elevados custos? Se houve aumento nos
índices criminais na região, nas queimadas, nas invasões,
na mineração ilegal, eles não devem ser responsabilizados?
Não são os generais dentre eles, Mourão, presidente
do Conselho da Amazônia tão responsáveis quanto o
inepto ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, contra o qual todas as bocas
falaram em meio ao silêncio sobre os fardados?
Quarto. Os militares continuamente apontam possíveis cenários
caóticos no horizonte. Como os militares se comportariam em um
cenário de ampla revolta popular? O que fariam se algo similar a junho
de 2013 ocorresse hoje? Se tivéssemos manifestações
massivas, como no Chile, ou se grupos civis efetuassem bloqueios e atos de rua
pedindo a cabeça de algum governador, como ocorreu na Bolívia com
o presidente Evo Morales?
Quinto. O filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, certa feita, disse que para
fechar o STF bastavam "um cabo e um soldado". O atual
vice-presidente-general, Hamilton Mourão, falou no passado, respondendo
a uma pergunta sobre um golpe, em "aproximações
sucessivas" caso o "problema político" não fosse
resolvido. Em entrevista à DW, perguntado sobre
declarações protogolpistas de Bolsonaro, disse que não se
trata de "conversa perigosa"; "é perigoso quando
você tem poder de fazer o que quer, mas ninguém tem poder de fazer
o que quer aqui no Brasil." Pergunta: os militares, que fundaram a
República às espadadas, participaram do Golpe de Três de
Novembro, fizeram a Revolução de 30 e participaram do governo
Getúlio, fizeram o Estado Novo para depois golpear o presidente, e por
fim estabeleceram a larga noite, em um abril de 1964, não podem fazer o
que quiserem? Se sim, o que querem?
Sexto. O presidente Jair Bolsonaro agradeceu ao general Villas Bôas, um
dia depois de sua posse, dizendo que o general era o responsável por ele
conquistar o cargo e que o que conversaram "morreria com ele".
Já que o presidente fez esse irreversível pacto de morte, por que
Villas Bôas não detalha ao público ao que ele se referia?
Sétimo. Se o Brasil vivesse algo similar à invasão ao
Capitólio norte-americano pelos apoiadores de Trump, os militares
defenderiam o prédio ou o atacariam? Comprometeriam-se com a legalidade
ou com os invasores? E se vencesse em 2022 um candidato que não os
agradasse, comprometido com uma reforma para levar os coturnos de volta
à caserna, mexendo no artigo 142 da Constituição, como
reagiriam?
Oitavo. Em uma entrevista de junho de 2020, em meio a mais uma "crise
institucional", o ministro-chefe-general da Secretaria do Governo, Luiz
Eduardo Ramos, deu a seguinte declaração: "Fui instrutor da
academia por vários anos e vi várias turmas se formarem
lá, que me conhecem e eu os conheço até hoje. Esses
ex-cadetes atualmente estão comandando unidades do Exército. Ou
seja, eles têm tropas nas mãos. Para eles, é ultrajante e
ofensivo dizer que as Forças Armadas, em particular o Exército,
vão dar golpe, que as Forças Armadas vão quebrar o regime
democrático. O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora o
outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a
corda." Pergunta: esses ex-cadetes, hoje com tropas nas mãos
fato que o general aponta tão proficuamente , também
não consideram "ultrajante e ofensivo" dizer que a ditadura
militar foi
uma ditadura militar? O que é "esticar a
corda"? E, se esticar, arrebenta?
Nono. Recentemente um minotauro descerebrado com cargo parlamentar foi preso,
após proferir, de seu labirinto, alguns impropérios contra
integrantes do STF, em defesa do general Villas Bôas. O general, por sua
vez, confessou o que era óbvio que a mensagem que disparara pelo
Twitter às vésperas do julgamento sobre o habeas corpus do
ex-presidente Lula era um "alerta". Pergunta: é constitucional
que o comandante do Exército "alerte" o Supremo Tribunal?
Não cabe, no mínimo, que ele seja convocado a prestar
esclarecimentos? Se o ministro Edson Fachin considera o episódio
"intolerável e inaceitável", por que o STF o tolera e o
aceita?
Décimo. Por fim, prevendo que para tais perguntas não
haverá respostas, proponho uma à qual não se deve nunca
responder, mas à qual é necessário sempre remeter o
pensamento: se os militares se comportarem hoje como se comportaram ao longo de
toda a República, o que farão as organizações de
esquerda? O que fará o Congresso? O que fará o Supremo? Estamos
prontos para reagir, ou repetiremos o deprimente espetáculo do 1º
de abril de 1964? Acima de tudo: o que podemos fazer hoje para, adiantando-se
ao tempo, estarmos preparados para a tempestade?
15/Abril/2021
[*]
Jones Manoel é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de
carteirinha. Começou sua militância na favela onde nasceu e
cresceu, a
comunidade da Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto
com seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram os
primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma universidade
pública). Depois de dois anos com o cursinho popular, passou a militar
no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de história na UFPE.
Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a juventude do PCB). Ativo
no movimento estudantil até 2016, hoje atua no movimento sindical e na
área da educação popular. Mestre em serviço social,
atualmente é professor de história, mantém um canal no
YouTube e participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Organizou
pela Boitempo o livro
Colonialismo e luta anticolonial: desafios da revolução no século XXI
(2020), coletânea com artigos, transcrições de palestras e
entrevistas de Domenico Losurdo. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente,
às quartas.
O original encontra-se em
blogdaboitempo.com.br/2021/04/15/negacionismo-de-esquerda-militares-e-genocidio/
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
.
|