Brasil:
Entrevista do ministro da Reforma Agraria

por André Campos e Rudolfo Lago [*]

Miguel Rossetto O ministro Miguel Rossetto nasceu na cidade de São Leopoldo, a 30 km da capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. É bisneto de dois imigrantes italianos que receberam do Império, em 1820, duas glebas mínimas de terra. Uma de 27,5 hectares e outra de 25 hectares. Foi a partir dessas terras que a família de Rossetto estruturou-se no Brasil, a ponto de fazer com que ele, que já foi vice-governador do Rio Grande do Sul, seja hoje ministro da Reforma Agrária. É com base, portanto, na sua própria história de vida que Rossetto tem a convicção de que a reforma agrária é possível e precisa ser estimulada. ''Venho de uma experiência secular de reforma agrária'', orgulha-se ele.

Crítico mordaz do modelo de reforma agrária do governo Fernando Henrique Cardoso, o ministro está debruçado sobre um novo plano para o setor a ser lançado no dia do agricultor — 25 de julho. Para ele, a Era FHC foi marcada por ''assentamentos em áreas absolutamente empobrecidas'' sem as mínimas condições de infraestrutura.

Socialista convicto, militante da mesma corrente petista que a senadora Heloísa Helena (de Alagoas) — a Democracia Socialista —, Rossetto considera que o PT vive um momento de mudança e isso traz ''angústia e frustração''. Nessa entrevista ao Correio, Rossetto defende a entrega de cargos em seu ministério a membros de organizações como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra. ''São quadros historicamente comprometidos com a reforma agrária''.

CORREIO BRAZILIENSE — O que vai mudar com o novo Plano Nacional de Reforma Agrária?
MIGUEL ROSSETTO — Nossa idéia é que esse novo plano seja precedido de uma profunda discussão e possa entrar no PPA (Plano Plurianual, que prevê as ações de governo para os próximos quatro anos) depois do debate. Estamos usando como referência para o lançamento o dia do agricultor, 25 de julho. Uma marca importante que nós estamos orientando é que o conceito de reforma agrária deva estar diretamente vinculado à idéia de produção. Isso significa uma estratégia de implantação da reforma agrária no sentido, por exemplo, da escolha das terras. Não é razoável que o critério seja a busca de terras mais baratas, como vinha sendo feito. Isso criou assentamento em áreas absolutamente empobrecidas, incapazes de produzir, degradadas ambientalmente, distantes do mercado, fragmentadas entre si. Sem energia elétrica, estrada, escola, saúde, assistência técnica e comercialização. Não é assim que se resolve o problema.

CORREIO — Segundo levantamento da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) existem hoje 400 mil camponeses vivendo debaixo de barracos de lona e à beira de estradas vicinais à espera de assentamentos. No total, são 871 acampamentos e 96 mil famílias. O governo pensa em parar com os assentamentos?
ROSSETTO — Nós temos o compromisso de continuar o programa de assentamento de famílias, mas já dentro de uma estratégia nova de aquisição de terras, vinculada a um conceito produtivo. Tão importante quanto assentar famílias que estão precisando de terras para trabalhar é a qualificação dos assentamentos.

CORREIO — O senhor pertence à Democracia Socialista, a mesma corrente no PT da senadora alagoana Heloísa Helena, uma das maiores críticas do governo dentro do partido. A senadora é justa nas críticas que tem feito? Ou, ao contrário, o PT tem sido justo com a senadora quando ameaça puní-la?
ROSSETTO — A relação entre o governo e as diversas tendências do partido será o grande desafio do PT. Todas as correntes têm grandes responsabilidades. E não podem se omitir. É necessário e bem vindo um amplo processo de diálogo externo e debate interno. Mas é preciso também que os eventuais atritos sejam vistos com naturalidade por todos os envolvidos nesse debate. Toda mudança gera angústia e frustração. Angústia de quem acha que nós estamos indo rápido demais e frustração de quem acha que nós estamos indo muito devagar.

CORREIO — Estamos indo rápido demais ou muito devagar?
ROSSETTO — Esse país tem urgências distintas, realidades distintas. Há o industrial que quer ver o país crescer e quer positivamente colaborar para isso. Há o funcionário público que quer uma justa melhoria salarial. O trabalhador que está há cinco anos no acampamento esperando terra para trabalhar. Tudo é igualmente urgente e tudo é igualmente legítimo. O desafio é preservar o sentido de unidade entre todos os setores que querem mudança no país.

CORREIO — Hoje o movimento mais presente na Esplanada dos Ministérios parece ser o da tesoura da Fazenda. O senhor não teme que a austeridade da equipe econômica o impeça de avançar como gostaria em relação à reforma agrária?
ROSSETTO — Nós não podemos acreditar que tudo isso possa dar certo com uma renda estática, com o país não crescendo, sem uma renda circulando. O nosso desafio, dentro do governo, é trabalhar para que o país volte a crescer, tenha ampliação de renda e riqueza e esses setores que ficaram para trás compartilhem isso. Ninguém trabalha com um cenário de quatro anos com taxa de crescimento baixíssima e juros altos. Isso tem de passageiro.

CORREIO — Mas, por enquanto, o dinheiro é pouco...
ROSSETTO — Eu acredito que se possa fazer muito mais com menos. Existem vários instrumentos de aquisição de terra para reforma agrária. Eu tenho a compra via TDAs (Título da Dívida Agrária), que está lá no meu orçamento. Mas eu tenho outros instrumentos que me permitem aumentar o meu estoque de terra sem gastar dinheiro. Por exemplo: terras públicas. Eu orientei o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para ver as áreas de fronteiras. Nós temos terras públicas municipais, estaduais e da União. Eu não preciso gastar dinheiro para adquirir essas terras.

CORREIO — Os cargos no Incra estão sendo preenchidos com pessoas egressas do MST, da Central Única dos Trabalhadores e da corrente progressista da Igreja Católica. Dar lugar aos movimentos sociais no governo não pode gerar como conseqüência o acirramento dos conflitos no campo?
ROSSETTO — O MST elegeu o presidente da República. A Contag, a CUT, também. Esses movimentos uniram-se ao PT na campanha para eleger um projeto alternativo para o país. Nós temos quadros identificados com os movimentos sociais do campo? É verdade. Por quê? Porque são quadros historicamente comprometidos com a reforma agrária. Isso é ruim? Claro que não. Isso é bom. Qual é o papel institucional do Incra? Fazer a reforma agrária. Não consigo compreender a reivindicação de alguns para que o Incra seja neutro. O Incra tem um responsabilidade institucional de fazer a reforma agrária.

CORREIO — Mas é inegável que existem setores no campo que reagem violentamente à reforma agrária.
ROSSETTO — Temos que superar essa cultura do passado que trata a reforma agrária como algo diferente do que é: uma obrigação constitucional, um dever da sociedade brasileira, com regras e normas. Temos que nos livrar da agenda do passado e tirar o sentido de conflito da reforma agrária. Nós não entraremos no século XXI enquanto persistirem estruturas agrárias do século XVII no Brasil. As cidades não agüentam mais. Elas não respiram mais. O fato é que, por conta de uma ideologia que prega que ''a cidade é moderna e o futuro e o campo são o atraso'' um conjunto muito importante de políticas públicas voltadas para o campo não foram efetivadas. Nós precisamos ter uma política agrícola que dê condições não apenas ao grande empresário rural, mas também ao pequeno empresário rural. Às famílias que vivem no campo

[*] Do diário Correio Braziliense .

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

10/Mar/03