Lula ano I
1- Com que critérios se deve julgar o governo Lula no seu primeiro ano?
Duas questões de colocam inicialmente: com que critério
comparativo se deve julgar o governo do PT? E como julgar o primeiro ano de um
governo com esse caráter?
2- Os governos com que seria possível comparar o governo do PT se deram
em
outro período histórico: seja os governos da Frente Popular
na Espanha, na França, no Chile ou nas teses de Dimitrov no VII
Congresso da Internacional Comunista, nos anos 30 -, ou o da Unidade Popular no
Chile, nos anos 70. No caso dos primeiros, depois de a Internacional Comunista
constatar principalmente a partir das vitórias de Hitler na
Alemanha e de Mussolini na Itália a virada negativa da
relação de forças no plano internacional, propunha-se uma
frente ampla, de caráter defensivo, com todas as forças anti-
fascistas democráticas na luta de resistência, que
se materializou nos três governos mencionados de Frente Popular. Os
partidos comunistas renunciavam à sua pretensão de ser
hegemônicos nas alianças, com o objetivo de deter a ofensiva de
extrema direita, no que foi caracterizado como uma
contrarrevolução de massas. Vivia-se um período de
defensiva talvez comparável com o atual -, mas com
adversários muito distintos o fascismo em todas suas variantes -,
que exigiam formas distintas de luta.
O governo de Salvador Allende, fundado na aliança entre os partidos
socialista e comunista, pretendia, ao contrário, a
transformação do capitalismo chileno no socialismo.
O governo de Lula surge num marco geral bastante diferente, já
não no cenário internacional da bipolaridade entre blocos
capitalista e socialista, mas naquele marcado pela hegemonia norte-americana do
ponto de vista político e do neoliberalismo, como ideologia e
política econômica predominante. No lugar dos objetivos
anticapitalistas e antimperialistas, coloca-se o objetivo da luta contra o
neoliberalismo.
É neste marco que se insere o governo do PT, no desafio de sair do
modelo neoliberal, que devastou o Brasil junto com a quase totalidade do
continente latino-americano. Nesse sentido, se trata de um governo com novas
características, que tem que ser julgado nessa ótica: em que
medida logra sair do modelo neoliberal?
3- Nessa ótica o primeiro ano do governo Lula tem que ser julgado
negativamente. A política econômica herdada do governo anterior
foi mantida e aprofundada, com a intensificação do ajuste fiscal,
que congelou recursos em função da obtenção de
superávits fiscais superiores aos solicitados pelo FMI, com o objetivo
anunciado de diminuir a fragilidade externa da economia. No entanto, as taxas
de juros mantidas elevadas aumentaram o endividamento, levaram o governo a
renovar os acordos com o FMI e assim elevaram a fragilidade da economia.
4- O preço pago por essa orientação foi que o objetivo
central do governo Lula a prioridade do social não foi
obtida. Ao contrário, enquanto os índices financeiros em geral
melhoraram, todos os índices sociais pioraram. Pode-se sintetizar essa
trajetória, dizendo que literalmente o governo assumiu a
administração da crise herdada, sem avançar para sua
superação positiva mas, ao contrário, dando seguimento
às orientações do governo anterior, cuja política
seguiu fielmente as diretrizes do FMI.
5- Assim, no seu primeiro ano o governo Lula se revelou fortemente conservador:
conservador na política econômica, conservador nas duas reformas
a previdenciária e a tributária -, nos moldes recomendados
pelo Banco Mundial na sua segunda geração de reformas e
conservador nos discursos de Lula desmobilizadores, críticos dos
movimentos sociais, sem menção do capital financeiro e do
neoliberalismo.
6- Como foi possível que o PT, partido nascido do sindicalismo de base,
dos
movimentos sociais, da luta contra o neoliberalismo, possa assumir esse papel?
As explicações sobre o caráter de
perversão que o poder operaria sobre todos que chegam até ele
são uma explicação totalmente insuficiente, até
porque essas viradas, em partidos de bases populares, não se dão
da noite para o dia, mas são o resultado de um processo muitas
vezes longo no tempo de transformações sociais,
políticas e ideológicas. Foi certamente o caso do PT e de Lula.
Especialmente desde 1994, o PT passou por um processo sistemático de
transformação, com alteração de sua
composição interna, de sua relação com os
movimentos sociais, com a institucionalidade e com temas centrais para a
definição estratégica do partido. Foi o balanço
feito pela direção do partido da derrota contra FHC, que tomou o
tema do ajuste fiscal como central, contra a prioridade das políticas
sociais pregada pelo PT. A derrota foi traumática não apenas
porque Lula era amplo favorito no início da campanha e teve que amargar
uma grande virada contra ele, como ela se deu em torno de um tema subestimado
pelo partido e em relação ao qual o PT nunca conseguiu um acerto
de contas. O tema, expulso artificialmente pela porta porque
desconhecido -, retornou pela janela, até que, ainda privilegiando o
social na campanha eleitoral, o primeiro ano do governo retomou a prioridade do
ajuste fiscal como central em oposição ao social.
Mas o principal foi a reinserção do PT na institucionalidade, com
esta ganhando relevância como o cenário privilegiado de
atuação do partido, em detrimento de sua relação
com os movimentos sociais. Paralelamente Lula centrou sua atuação
no Instituto da Cidadania, distanciando-se até mesmo da vida interna do
PT. O partido, enquanto isso, alterava sua composição interna: os
dados do último Congresso Nacional do PT, realizado em dezembro de 2001
em Recife, apresentaram uma participação dos delegados em que
cerca de ¾ deles não estavam vinculados a movimentos de base, mas
estavam integrados em cargos institucionais: bancadas de parlamentares,
prefeituras, governos estaduais, estruturas partidárias, etc.. A
média de idade apresentava um significativo aumento e os setores
médios predominavam.
Os setores populares jovens pobres da periferia das grandes cidades, sem
terra, movimento negro, entre outros passaram a ter protagonismo
secundário ou mesmo irrisório na vida do partido.
7- Mas a principal transformação política e
ideológica
se deu no transcorrer da campanha presidencial de 2002. No início, a
aliança com setores do grande empresariado representado pela
escolha do vice-presidente da chapa revelava o papel protagônico
que teria o empresariado produtivo, ainda mais aquele voltado para o mercado
interno, como era o caso de José Alencar empresário
têxtil. Uma leitura mais favorável poderia inclusive supor que se
tratava de privilegiar um dos setores que mais emprega mão-de-obra e que
tem no mercado interno de massas um setor fundamental como destino de sua
produção.
Fosse assim ou não, projetava-se no programa original do Instituto da
Cidadania uma ainda que tênue oposição entre
capital produtivo incluindo o grande capital e o capital
especulativo, com um tom que recordava os programas desenvolvimentistas de
períodos anteriores.
Ao longo da campanha, conforme se deu um forte ataque especulativo, vinculado
diretamente às possibilidades de vitória de Lula, enquanto este
não conseguia superar de forma clara o patamar histórico do PT de
cerca de 30% dos votos e ficava claro que o consenso era favorável a uma
mudança, com prioridade do social, mas que não afetasse a
estabilidade monetária expressa mais claramente na candidatura de
Ciro Gomes, que chegou a liderar as pesquisas -, a candidatura de Lula se somou
a ela. Isto se deu sob duas formas: a Carta aos Brasileiros, em que se afirmava
o respeito aos compromissos assumidos pelo governo FHC, incluindo a
aceitação dos termos do novo acordo com o FMI, e a linha de
Lulinha, paz e amor, em que se tratava de aplainar as arestas da
imagem conflitiva e combativa de Lula.
Naquele momento mudou o caráter da candidatura de Lula, com uma
aliança explícita com o capital financeiro e os organismos
internacionais que zelam pelos interesses desse capital, seguindo os termos
daquela Carta, sob cuja orientação se deu o primeiro ano do
governo Lula, em que a equipe econômica ministros da fazenda, do
comércio exterior e do desenvolvimento agrária, mais presidente
do Banco Central ocupa o centro estratégico do governo,
desempenha o papel de formulador estratégico, com poder de veto sobre as
decisões fundamentais do governo.
8- Esse perfil fez com que o governo Lula prometesse retomada do
desenvolvimento e
prioridade para o social, mas visse esses dois objetivos inviabilizados pelos
critérios da equipe econômica de manter superávit
primário superior ao exigido pelo FMI e administrar de forma
conservadora e gradualista a baixa da taxa de juros a ponto que esta
diminua de 25 a 17,5% - apenas 30% - em meio a uma brutal recessão. O
governo Lula enfrenta o desafio da quadratura da roda: retomar o
desenvolvimento, redistribuir renda, criar empregos e enfrentar os graves
problemas sociais brasileiros, sem sair do modelo neoliberal. Conseguirá
triunfar onde fracassaram De la Rua, Toledo, Fox, Battle e o próprio FHC?
Nada garante isso, nem parece que o governo se proponha a mudar o modelo,
fazendo apenas adequações micro econômicas, no mesmo marco
da política herdada e aprofundada pela equipe econômica.
9- Que perspectivas se pode prever para o governo Lula em base a esse primeiro
ano? A perspectiva de projeção da política atual, com
leves alterações, conforme o desempenho produtivo seja menos
medíocre que aquele próximo de zero 0,4%, menos 1,5% da
expansão demográfica, portanto, negativo em renda per
cápita em mais de 1% -, daria uma configuração definitiva
ao governo Lula como administrador da hegemonia do capital financeiro e o
levaria ao fracasso, tanto como governo de esquerda, assim como continuador das
políticas esgotadas do governo FHC. O balanço
esboçado pelo governo leva a esta direção e permite um
diagnóstico definitivamente negativo do mandato do PT na
presidência das república.
O governo, esquizofrênico na sua composição, não foi
polarizado internamente pelos ministros da área social, fracos para
poder promover um debate contra uma política econômico-financeira
que inviabilizou suas pastas. Ocupados por ministros do PT vários
deles enfraquecidos por derrotas eleitorais - , em lugar de ser garantia da
luta pela sua predominância dentro do governo, foram instrumentos da
exigência de solidariedade com as orientações centrais do
governo definidas nos marcos do duro ajuste fiscal, que promete
persistir em 2004.
A alternativa de polarização nessas condições,
terminou se dando por uma via menos esperada a política externa.
A polarização entre a prioridade da Alca ou do Mercosul, frente
às pressões norte-americanas e ao vazio de liderança dos
EUA na região, com o esgotamento do modelo neoliberal e com a nova
política belicista e mais abertamente protecionista do governo Bush,
permitiram a projeção externa de uma política de soberania
no plano internacional.
O sucesso da política de reorganização e
ampliação do Mercosul, ancorada na aliança
estratégica com o governo argentino e o lançamento do Grupo dos
20, que conseguiu frear os planos norte-americanos e europeu na OMC, revela o
potencial de liderança externa do Brasil tanto na América Latina
quanto no Sul do mundo. Inicialmente a equipe econômica, diante do
endurecimento das posições dos países centrais do
capitalismo, em Cancun, teve que se somar às posições do
Itamaraty, mas logo participou ativamente na maior campanha feita até
agora na imprensa contra o governo, apoiada no governo norte-americano e nos
setores de imprensa que se identificam com as políticas de Washington,
do FMI, da OMC e do Banco Mundial, com um papel bem caracterizado na imprensa
como de quinta colunas das posições internacionais do
governo brasileiro.
A diferença entre a prioridade do Mercosul e da Alca é a que tem
atualmente o potencial mais claro de polarização política
e ideológica dentro do governo, podendo levar a definições
mais claras no transcurso do próximo ano. Considerando que o governo
Bush não fará nenhuma concessão significativa até
as eleições presidências de novembro de 2004 ao
contrário, tendendo a aumentar o protecionismo, com objetivos
eleitorais, como se evidencia nas medidas contra as exportações
chinesas para o mercado norte-americano e na aceitação por
enquanto da tese brasileira da Alca light -, o tema voltará com
força no início de 2005, quem quer que triunfe nas
eleições norte-americanas.
Até lá o Itamaraty e todos os setores interessados numa
inserção internacional soberana do Brasil, consciente que esta
é uma condição de uma política econômica
centrada no mercado interno, voltada prioritariamente para a
integração regional, terão a possibilidade de
avançar na reorganização e ampliação do
Mercosul. Chegará assim um momento da verdade decisivo para o governo
brasileiro: a manutenção da atual política econômica
significa a necessidade absoluta da Alca, nos termos que os EUA proponham,
porque o papel do comércio exterior especialmente do agrobusiness
não permite que se dispense qualquer fatia do maior mercado
consumidor do mundo, ainda mais com a perspectiva de prolongamento da
recessão interna e sem esperanças da distribuição
de renda que possibilitasse uma reanimação do consumo interno. A
prioridade do Mercosul, ao contrário, pode significar a
indução para o interior do país da política de
privilégio dos mercados internos, com distribuição de
renda, geração de empregos, prioridade das políticas
sociais. Desse dilema depende hoje a possibilidade que o segundo ano do governo
Lula não consolide seu caminho conservador e projete uma alternativa de
superação do neoliberalismo, sobrevivente e central no primeiro
ano do governo Lula.
[*]
Sociólogo.
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