por Jones Manuel
entrevistado por Nuno Ramos de Almeida
Fez 150 anos que a Comuna de Paris foi derrotada depois da Semana Sangrenta.
Há alguma razão comum que justifique esta derrota e todos os
outros insucessos nas revoluções feitas pelos explorados?
A Comuna Paris surge numa situação muito adversa, num contexto da
guerra Franco-Prussiana em que o governo da França assumiu uma postura
de traição nacional, entregou o país à
Prússia e os operários de Paris resolveram tomar o poder. Marx
tinha alertado, antes da Comuna, que seria um suicídio os
operários tentarem tomar o poder. Quando eles o fizeram, Marx analisou
objectivamente as razões que levaram à sua derrota. A esquerda
ocidental tem um fetiche pela derrota e pelo martírio. Ela adora quem
perdeu.
Talvez porque nunca ganharam.
A ideologia dominante permite que a gente tenha referências, mas desde
que elas sejam referências de martírio e não de
exercício de poder. Para sectores da burguesia e dos intelectuais
democráticos, uma figura como Che Guevara é muito mais saborosa
que uma figura como Fidel Castro. Che Guevara morre enquanto exemplo de
martírio e Fidel Castro permanece enquanto líder e estadista do
processo revolucionário. Há gente que gosta muito de
assassinados, como Che Guevara, Rosa Luxemburgo e Gramsci, esvaziando-os da
perspectiva comunista e apagando o que defendiam. Paralelamente, dirigentes
revolucionários como Fidel Castro, Ho Chi Minh, Mao Ze Dong e Kim
Il-Sung são quase sempre odiados, ostracizados e chamados de ditadores
que trairam a revolução em algum lugar da história.
"Não se deve perder as oportunidades de golpear o inimigo de classe
o mais profundamente possível, para melhorar as nossas
condições no enfrentamento".
Mas voltando à Comuna, acho muito importante vermos o que são os
ensinamentos da derrota. Marx e Engels apontam duas coisas: primeiro, os
communards
não tomaram o Banco da França, elemento fundamental que os
colocaria numa situação de maior poder para pressionar e negociar
com a burguesia francesa; segundo, usaram muito pouco a capacidade de
repressão e de eliminação do inimigo de classe. Isso
está muito bem documentado num texto de Engels sobre a autoridade. O
ensinamento importante que a Comuna deixa é que a burguesia não
tem ética, não tem pudor, e trata a luta de classes como uma
guerra de classes, o que significa que elimina fisicamente o inimigo. Na
esquerda, a gente pensa muito pouco em termos estratégicos e
subordinamos a estratégia à ética. Não se deve
perder as oportunidades de golpear o inimigo de classe o mais profundamente
possível, para melhorar as nossas condições no
enfrentamento. Caso contrário, vamos estar a chorar derrotas e a
orgulhar-nos da pureza. Lembro quando aconteceu o golpe de Estado na
Bolívia, em 2019, o filósofo Slavoj Zizek lançou um texto
em que se dizia orgulhoso pelo governo boliviano não ter sido um governo
autoritário, e que mesmo quando veio o golpe de Estado não
reprimiu os golpistas. Esse tipo de pensamento é tudo menos marxista.
Não pode haver a acusação inversa? No sentido de que a
necessidade de defender a revolução exige muitas vezes uma
permanente militarização dos regimes socialistas e a necessidade
de usar meios policiais, deixando a certa altura de existir o socialismo, dado
que se esvazia a participação popular e dos trabalhadores?
Para mim, o maior problema das experiências socialistas no século
XX foi não conseguir uma dialéctica que permitisse a defesa
interna do processo revolucionário contra a pressão imperialista
e, ao mesmo tempo, conseguir ampliar e fortalecer a democracia socialista. A
União Soviética é um belo exemplo de que a defesa dos
ataques do imperialismo acabou por conduzir à legitimação
de um processo progressivo de esvaziamento da democracia socialista. Levando ao
enfraquecimento da base de consenso do projecto socialista ao ponto de ser
destruído. Já no caso de Cuba, vai-se conseguindo defender do
imperialismo, ao mesmo tempo que conserva uma vitalidade e um nível de
democracia socialista muito interessante. Isto é um problema real,
considerando que os EUA têm mais de 800 bases espalhadas pelo mundo, o
maior orçamento militar, o maior aparelho de espionagem, sabotagem e
guerra suja do mundo, que é a CIA. Isso sem contar que estamos na era
das redes sociais que permite um nível de vigilância e controlo
nunca antes possível.
A defesa da revolução pode acabar por criar processos de
burocratização, mas isso não nos deve levar a subestimar a
necessidade das revoluções se defenderem. A visão de
Lénine da necessidade do povo em armas continua actual. É
importante socializar ao máximo a defesa. Mas a questão é
que, na era dos mísseis intercontinentais, o povo em armas não
garante a defesa de qualquer país. Sem estrutura militar não
é possível manter o segredo militar. A necessidade de defesa em
relação à maior potência imperialista do mundo
impõe restrições ao processo de
democratização socialista. Enquanto não se fizer uma
revolução no centro do império é um problema que
vamos ter de enfrentar.
Em Marx, a ditadura do proletariado era uma fase curta para cimentar o poder do
proletariado. Em
O Estado e a Revolução,
Lénine defende que o Estado deveria imediatamente ir desaparecendo,
que só será democrático quando puder ser dirigido pela
empregada doméstica. Como é possível num contexto em que
as revoluções são nacionais, defender o novo poder e
democratizar ao mesmo tempo?
Lénine alterou parcialmente a sua posição depois de
O Estado e a Revolução.
Muda de perspectiva com a experiência da revolução russa
e compreende, a partir de 1920, que a temporalidade da transição
socialista é muito maior do que a imaginava. Altera a sua
posição em relação ao defenecimento do Estado, para
fazer deste um aparelho alicerçado nos sovietes e que dê
efectividade às reivindicações das massas. Lénine
falava até em aprender com as melhores práticas de
administração pública dos capitalistas. Cuba, Vietname,
Laos, China e Coreia do Norte não caíram, conseguiram sobreviver,
uns com formas mais qualificadas do que outros, mas existe um histórico
de experiências socialistas que não sucumbiram ao ponto de
perderem o apoio da base da classe trabalhadora a esses regimes de
transição. A primeira coisa é fazer um balanço
sistemático, real e nosso de todas as experiências.
Coloca a Coreia do Norte e Cuba no mesmo campo? Não lhe parece que
existem aspectos da Coreia que têm muito pouco a ver com o socialismo, a
sucessão quase dinástica, o culto exacerbado da personalidade,
por exemplo?
A ideia do culto da personalidade é um termo ocidental muito ligado
à própria realidade da União Soviética que, a meu
ver, não se encaixa na explicação da Coreia. Também
não acho que haja passagem de poder de pai para filho, porque os cargos
que exerciam Kim Il-Sung, Kim Jong-il, Kim Jong-un são diferentes. Eles
são evidentemente um elemento de simbologia da revolução
nacional, mas exerceram e exercem cargos diferentes. A
representação dos
media
de que Kim Jong-un é um ditador todo-poderoso, que controla tudo,
é totalmente falsa. Existe pouca literatura e pouco estudo
sistemático sobre a Coreia [do Norte] e há uma
desconsideração sobre o estado permanente de agressão
militar em que o país vive. Recorde-se que foi um país
destruído pela guerra com os EUA, em que as forças
norte-americanas destruíram todas as cidades da Coreia do Norte e
mataram 30% da população. Os EUA mantêm, até hoje,
mais de 50 mil soldados a cercar o país. E têm armas
atómicas apontadas à Coreia [do Norte].
"Um povo que se consegue defender já é olhado de lado pela
esquerda ocidental. Para essa gente, uma criança com uma pedra contra um
tanque israelita é heróico, quando para mim é uma coisa
brutal e quase pornográfica"
Vamos lembrar que o principal palco militar dos EUA, na segunda metade do
século XX, foi a Ásia. Atacaram o Vietname, atacaram o Laos,
atacaram o Camboja, para além da Coreia [do Norte]. Usaram na guerra da
Coreia mais bombas do que todas as que foram usadas na II Guerra Mundial. E
até hoje, formalmente, a guerra da Coreia não acabou, foi apenas
assinado um armistício, que significa, do ponto de vista do direito
internacional, apenas uma pausa numa guerra.
A Coreia [do Norte] é uma experiência socialista que é
olhada de uma forma muito preconceituosa e preguiçosa pela esquerda
Ocidental, que não estuda o país e tem aquela coisa com que
começamos a conversa que é o fetiche da derrota. Veja, a Coreia
[do Norte] foi invadida para ser liquidada, conseguiram resistir, consolidar um
Estado, formar uma economia nacional. Têm um nível de
industrialização considerável, constituíram um
complexo industrial militar importante e, ao contrário do povo
palestiniano, têm a capacidade de se defender. Um povo que se consegue
defender já é olhado de lado pela esquerda ocidental. Para essa
gente, uma criança com uma pedra contra um tanque israelita é
heróico, quando para mim é uma coisa brutal e quase
pornográfica. Mas essa esquerda gosta disso e de sofrimento, mas
não gosta de países como a Coreia [do Norte] que têm
mísseis intercontinentais com armas atómicas e que podem atingir
os EUA.
Eu dou um outro exemplo, a Líbia de Muammar al-Gaddafi não era
uma experiência socialista, mas algo que surgiu no contexto das lutas
anticoloniais, que tinha uma certa política anti-imperialista e
nacionalista de apropriação dos recursos naturais do país.
Na senda de Nasser e do socialismo pan-arabista.
A Líbia tinha um programa nuclear, mas Gaddafi, tentando aproximar-se da
União Europeia, desistiu do seu programa nuclear. Quatro anos depois de
ter desistido desse programa, a NATO intervém na Líbia, derruba
Gaddafi e destrói o país. Hoje temos um local que até
tráfico de pessoas escravizadas tem. Em Tripoli, estão a
vender-se escravos como no século XVI. A Líbia foi
destruída, era dos países mais ricos de África e agora
está nesta situação. Tenho várias
divergências com o modelo socialista coreano, está bem longe
daquilo que quero para o socialismo, mas eu apoio qualquer experiência
socialista. O que aconteceu na Líbia, e quem acompanha o sofrimento do
povo palestiniano, sabe, como dizia o velho Luckács, que "o pior
socialismo é melhor que o melhor capitalismo". E o melhor
capitalismo na periferia do sistema não existe. Basta ver a
desgraça que aconteceu com a Líbia.
A Coreia [do Norte] é um Estado muito militarizado, cercado, que tenta
manter a coesão nacional máxima frente às ameaças
militares, que se expressa por exemplo na continuidade de símbolos de
unidade nacional, como a continuidade da família de Kim Il Sung. Tem
várias coisas que eu acho problemáticas, mas que não estou
preocupado em criticar: para mim, o essencial é a acção do
imperialismo e o cerco feito a esse país. Quando acabar esse cerco
militar, aí a gente pode debater livremente os problemas do regime,
agora não dá para brincar, porque o imperialismo não
brinca em serviço.
A questão que coloco é que em que medida a necessidade de
militarização e defesa de um regime não torna esse poder a
certa altura pouco socialista. Não é possível uma
estratégia de resistência que passe pelo aumento do poder do povo
e da democracia socialista?
Temos que considerar várias coisas. O Brasil é mais militarizado
que a Coreia [do Norte] em termos de violência contra a
população. A República Democrática da Coreia
não sabe o que é ter, todos os anos, 62 mil pessoas assassinadas.
O cidadão norte-coreano não sabe o que é ter, nas favelas,
a polícia todos os dias a agredir e a xingar as pessoas, entrando nas
casas sem mandado e por vezes matando. Essa própria ideia de
militarização tem que ser muito bem contextualizada. Em termos de
segurança do indivíduo em relação ao Estado, a
Coreia [do Norte] desfruta de infinitamente mais democracia que o Brasil.
Segundo ponto, se não existisse legitimidade, e um certo consenso e
apoio na sociedade coreana, nenhum governo ficaria de pé. Durante os
anos 90, o país perdeu o seu principal parceiro económico, que
era a União Soviética, sofreu uma série de
inundações e catástrofes, teve um problema sério de
desnutrição, e o regime continuou de pé com um alto
nível de consenso e apoio. Nos últimos dez anos, a qualidade de
vida da população tem melhorado muito. Houve uma mudança
relativa da orientação que colocava as Forças Armadas em
primeiro lugar. A partir do momento que o país alcançou o
domínio do armamento atómico e mísseis intercontinentais,
a necessidade de ter forças terrestres diminuiu.
"Todo o projecto anti-imperialista só se mantém se tiver uma
forte base de apoio, de outra maneira não se aguentaria um minuto"
A guerra moderna é muito mais definida pelos mísseis,
caças e submarinos do que pelo número de soldados. Há uma
redução do peso na economia do exército e uma passagem
maior de recursos para habitação e para melhorar as
infraestruturas sociais. A Coreia [do Norte] vive um boom da
construção civil. A melhoria da qualidade da
habitação dos trabalhadores, o aumento de
construção de equipamentos colectivos bibliotecas,
parques, ginásios e equipamentos desportivos , é
visível e significativa. Há um debate no partido, respondendo aos
pedidos das bases, que reivindicavam melhores condições de vida e
de consumo. Assim como existe um debate sobre o país se tornar um centro
mundial de criptomoedas e a partir daí quebrar o bloqueio
económico dos EUA, para conseguir recursos para adquirir a
modernização das infraestruturas e melhorar mais a vida das
populações.
A Coreia [do Norte] tem vários problemas, mas está longe de ser
um país sem uma base social de consenso e legitimidade. Eu dou sempre
este exemplo: os média liberais e certa esquerda representam o governo
de Nicolas Maduro como ultra-militarizado e que só se mantém por
causa do apoio do exército. Veja, eu tenho várias críticas
ao governo Maduro, que nos últimos tempos resolveu lançar uma
ofensiva contra o Partido Comunista Venezuelano, mas é uma ilusão
maluca achar que um governo atacado pela maior potência do mundo, os
Estados Unidos, vai conseguir manter-se no poder só pela força,
se não tiver apoio popular. Isso não é possível.
Todo o projecto anti-imperialista só se mantém se tiver uma forte
base de apoio, de outra maneira não se aguentaria um minuto. Não
apenas uma base passiva, mas uma base activa. E isso diferencia a esquerda da
Venezuela em relação à do Brasil. A Dilma [Rousseff] foi
retirada do poder muito facilmente, em 2016, sem nenhuma revolta das massas.
Só tinha uma base de apoio passiva.
Como é que foi o seu trajecto político do rap para o comunismo?
O Brasil tem uma tradição de uma cultura de rap que nasceu
em São Paulo e que é muito politizada. Nos anos 90, Racionais
Mcs, RZO, GOG, Sabotage falavam de violência policial, racismo e de
desigualdades. Falavam inclusive de líderes revolucionários. O
GOG tem uma música em que diz: "Malcolm X foi a Meca e o GOG ao
nordeste", ele conta a história de Malcolm X, a primeira vez que
ouvi falar dele foi nessa música. Os Racionais MCs tem uma música
chamada "Jesus chorou" em que se fala: "Malcom X, Ghandi,
Lennon, Marvin Gaye, Che Guevara, 2Pac, Bob Marley, e o evangélico
Martin Luther King". O rap historicamente no Brasil, embora hoje menos,
é muito politizado e serve como voz das comunidades periféricas.
Não só para denunciar das mazelas da sociedade, mas como
memória de uma identidade e de luta contra o racismo. Em
formações que eu dava, antes da pandemia, usava muito o rap.
Mas nem toda a gente que ouve o rap vira marxista-leninista.
Há três elementos que contribuíram para isso. Primeiro
elemento central, a produção marxista no Brasil ficou muito
centralizada na universidade. E estas, até aos governos do PT, eram
universidades da classe média e da burguesia, o que tem impacto no tipo
de produção marxista. No meu primeiro contacto com os marxistas
na faculdade, vi que eles não correspondiam à minha realidade.
Só para ter uma ideia, a influência no Brasil era sobretudo uma
leitura eurocomunista de Gramsci, de que dá para construir o socialismo
ampliando a democracia, e que a dominação burguesa hoje se faz
mais pelo consenso do que pela coerção. Só acredita nisso
quem é de classe média. Quem, como eu, nasceu numa favela de
Recife, não consegue levar isso a sério. O meu afastamento desse
marxismo hegemónico na universidade e adesão ao
marxismo-leninismo para mim foi natural na minha própria
experiência empírica. Eu li estas coisas e pensei: "Que
país é esse? O Brasil não é".
"Quem conhece a burguesia brasileira não consegue propor nenhuma
aliança, mesmo que seja táctica, com essa classe"
O segundo elemento, é quando eu criei o hábito de leitura e
decidi organizar-me politicamente. Parei para ler os programas dos partidos
políticos do Brasil. Li os programas do PT, PC do B, PSOL, PSTU, PCR e
da Consulta Popular e por aí vai. Entrei no PCB, na sua
organização da juventude, a UJC, porque era o que deixava mais
claro uma estratégia socialista para a revolução
brasileira. Quem conhece a burguesia brasileira não consegue propor
nenhuma aliança, mesmo que seja táctica, com essa classe.
Um terceiro elemento, chamou-me muita atenção a história
do PCB, quando você estuda no vestibular, para a entrada da universidade,
ouve muito falar do PCB, de Luiz Carlos Prestes, Olga Benário e Ana
Montenegro. E a história do partidão sempre me encantou muito,
principalmente via Prestes. Quando entrei no PCB, deu-me muito orgulho:
"vou militar no mesmo partido que Luiz Carlos Prestes". Foi
também isso que me levou a concordar com o marxismo-leninismo do PCB.
Em Recife, há uns anos, tentou candidatar-se na sua comunidade.
Não o fez porque foi ameaçado. Actualmente, com o domínio
do tráfico de droga e a repressão do Estado, há
espaço nas comunidades para a luta revolucionária?
Há espaço. Mas é muito perigosa e difícil. Na
favela, onde nasci e fui criado, mantive um cursinho popular, chamado
"Novo Caminho", para ajudar jovens a conseguir entrar na
universidade. Consegui manter essa actividade durante dois anos, recrutei gente
para a juventude do partido, houve um reconhecimento social da comunidade para
com o nosso trabalho, mas quando foi a hora de disputar a
associação de moradores o meu caminho foi barrado. E repare que
eu sou prata da casa, sou nascido e crescido na favela do Borborema. Não
consegui avançar nesse negócio. Claro que na época eu
não era ainda organizado no PCB. Tentei concorrer à
associação de moradores sozinho, sem um partido por trás,
o que muda bastante o cenário.
Agora é preciso dizer que todo o trabalho de base é perigoso. O
Brasil é um país muito perigoso para se militar. É
perigoso, trabalhoso, exige muita estrutura e planeamento. Exige muita
paciência revolucionária. O PCB tem vários trabalhos em
comunidades, menos do que é necessário para a
revolução brasileira. Militar no Brasil não é como
militar em Paris ou em Londres. O nível de violência a que estamos
submetidos, no continente, só se compara com a Colômbia em que
há um narco-Estado que mata a rodos. Brasil e Colômbia são
os países mais perigosos na região para se militar.
Pode-se dizer que a luta de classes no Brasil tem uma carga de ódio
muito maior devido ao peso da escravatura? Há um ódio da
burguesia ao proletariado aditivado pelo racismo?
Com certeza. José Carlos Mariatégui
[NR]
, o famoso comunista peruano, matou a charada nos anos 20 do século
passado. Tem um texto que mostra que a burguesia crioula se formou não
só a partir de uma identidade classista burguesa, mas também de
uma identidade racial. Fazendo com que a oposição de classe
também assumisse uma forma de oposição racial, inclusive
eugénica, e que essa burguesia se achasse superior aos caboclos, negros,
mulatos e indígenas. Começamos a conversa pela
liquidação da Comuna de Paris, em que a burguesia matou 20 mil
pessoas. Aqui morre muito mais gente. O ódio de classe, quando se soma
com o ódio racial, toma traços neofascistas. É o que
acontece com a burguesia boliviana em Santa Cruz da Serra, a burguesia peruana
em Lima. No Brasil eles se auto-representam como brancos, descendentes directos
dos europeus, e a massa trabalhadora como uma espécie de ralé
racialmente inferior. E trabalham a partir de discursos de extermínio
camuflados em ideologia da segurança pública, em que
"bandido bom é bandido morto", "tem que se matar o
traficante". A grande diferença daqui e do discurso do Hitler
é que este afirmava claramente que odiava judeus, enquanto no Brasil e
em outros países mascara-se os genocídios com políticas de
segurança pública, mas no final o resultado é o
mesmo.
Concorda que as categorias de capitalismo, racismo e patriarcado fazem parte do
mesmo quadro da luta de classes?
Totalmente, desde a obra de Marx e Engels que já está colocada a
multiplicidade de formas de expressão da luta de classes. Essa luta
nunca foi só o conflito capital e trabalho no âmbito da
fábrica. Estou-me a lembrar, por exemplo, no
Manifesto Comunista,
Marx e Engels colocavam na luta de classes a luta pela
libertação da Polónia, que era uma luta de
emancipação nacional. Assim como põem, no mesmo texto, a
importância da luta contra a opressão da mulher. Engels no seu
famoso
Anti-Duhring
e no seu mais célebre capítulo intitulado
Do Socialismo Utópico ao Socialismo Ciêntífico
, repete a célebre frase de Charles Fourier, em que o grau de
emancipação de uma sociedade é medido pelo grau de
emancipação da mulher nessa sociedade. Assim como na
Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado,
Engels defende que a mulher é o proletariado do homem. E que o
aparecimento da propriedade privada significou a derrota mundial do sexo
feminino, por ter provocado um processo de exploração, no
âmbito doméstico, do homem sobre a mulher, numa estrutura
patriarcal.
" Os comunistas lutaram contra o apartheid. Isso faz parte
também da luta de classes"
Diria mais, Domenico Losurdo, no seu livro
A Luta de Classes, uma História Filosófica e Política,
demonstra que desde a obra de Marx e Engels há uma compreensão
sobre três níveis interligados de exploração e
opressão: o âmbito da vida doméstica, com o patriarcado e a
exploração da mulher; o âmbito nacional, com a retirada de
mais-valia a partir da exploração do proletariado; e o
âmbito internacional, a partir da exploração dos
países e povos colonizados. Esses três níveis articulam-se
directamente e fazem com que a luta de classes passe também por lutas
contra a exploração, o imperialismo, o machismo e o racismo. Algo
que foi materializado muito bem na história do movimento comunista.
Há um exemplo que eu gosto muito de dar: hoje todo o mundo gosta de
Nelson Mandela, que virou um ícone mundial, mas quando ele estava preso,
os Estados Unidos chamavam-no de "terrorista", e eram os comunistas
que apoiavam a luta contra o
apartheid.
E Cuba mandou milhares de soldados para lutar, ao lado dos
revolucionários africanos, contra o
apartheid
e pela independência das ex-colónias portuguesas em
África. Os comunistas lutaram contra o
apartheid.
Isso faz parte também da luta de classes. Não se pode ter uma
visão redutora e economicista da luta de classes.
Contesta algumas acusações de correntes da esquerda, e até
de alguns activistas anti-racistas, de que o marxismo é eurocentrista,
em que as questões raciais não estão devidamente
espelhadas na teoria comunista?
Estas críticas só se sustentam na base da
falsificação histórica. O marxismo é a
tendência teórica política que, depois do liberalismo, teve
mais alcance mundial. O que significa que é possível encontrar de
tudo no marxismo: há marxismo estruturalista, marxismo humanista,
marxismo analítico, marxismo existencialista, marxismo weberiano,
marxismo pós-moderno. O que você procurar vai achar em algum canto
do mundo. Existiram e existem marxistas eurocêntricos, marxistas que
não dão atenção às lutas anticoloniais e
anti-racistas. Agora existe também toda uma larga tradição
do marxismo que deu um papel fundamental, no século XX, às lutas
anti-racistas e coloniais.
"O marxismo ser um negócio de brancos e que não deu
atenção às lutas anticoloniais e anti-racistas é
uma afirmação que não se sustenta sob nenhum prisma"
Três exemplos básicos: os principais líderes das lutas de
libertação nacional na África negra ou eram marxistas ou
tinham relações com o marxismo. Amílcar Cabral, Samora
Machel, Agostinho Neto e Thomas Sankara eram marxistas. E os que não
eram marxistas, como Lumumba, tinham óptimas relações com
os marxistas e contavam com o movimento comunista como aliado das suas lutas de
libertação. Segundo exemplo importante, nos EUA só houve o
sufrágio universal uma cabeça, um voto em 1965,
quando acabou a segregação racial. A principal
organização de luta contra a segregação racial
é o partido das Panteras Negras, uma organização
marxista-leninista que o FBI considerou a maior ameaça ao capitalismo
estado-unidense. O terceiro exemplo, muito significativo, é que o
processo de descolonização da Ásia passou pela
liderança dos partidos comunistas: o chinês, o vietnamita, o
coreano, o do Laos. Mesmo na Índia, os partidos comunistas têm um
papel importante, e até hoje na região de Kerala há uma
grande tradição comunista enraizada nas massas.
O marxismo ser um negócio de brancos e que não deu
atenção às lutas anticoloniais e anti-racistas é
uma afirmação que não se sustenta sob nenhum prisma, a
não ser que se reduza o marxismo às suas expressões
eurocêntricas, a figuras como Kaustky ou, actualmente, a Zizek. E queria
acrescentar mais um elemento: o Portugal fascista, dominado pelo salazarismo,
foi aceite pelo Ocidente, entrou na NATO, e a nossa amiga Hannah Arendt,
famosa pela sua teoria sobre o totalitarismo, que tentava igualar a
União Soviética ao nazismo, não colocou o fascismo
salazarista como totalitário, dizia que era apenas autoritário.
Esse discurso acaba por fazer o jogo do liberalismo que se relacionou muito bem
com o fascismo salazarista. Escondendo, por exemplo, que os comunistas
organizados no PCP, que eram a principal força de resistência
contra o fascismo, apoiaram as lutas anticoloniais de África, enquanto
os EUA apoiavam o regime colonialista e fascista. Quando se diz que o marxismo
é eurocêntrico, não só se está a falsificar a
história como se está apoiar os liberais que foram aliados
históricos do salazarismo.
Um autor dos EUA, Asad Haider, afirma que o racismo não
é produto das raças, mas as raças é que são
produto do racismo. E que a luta anti-racista tem como objectivo a
liquidação da ideia de raças e as desigualdades que por
ela são sustentadas e não a criação de qualquer
"negritude". Concorda?
Concordo plenamente, inclusive li a entrevista do Asad Haider no
AbrilAbril,
uma entrevista muito boa, como sempre. É um autor muito qualificado e
o que ele fala não é uma ideia nova, baseia-se muito nas ideias
do Frantz Fanon. Defende uma perspectiva que eu gosto de chamar de humanismo
radical. Comprende que a divisão do mundo em raças é um
produto da modernidade, a partir da acumulação primitiva de
capital que se consolida no capitalismo, e que a questão, em
última instância, não é uma sociedade de igualdade
racial, mas é uma sociedade desracializada. Evidentemente, que enquanto
elemento táctico nós vamos reivindicar elementos da positividade
do negro na luta anti-racista. Só que isso não significa que a
gente abra mão do horizonte último de
desracialização; da mesma forma que o objectivo de acabar com a
classe trabalhadora enquanto classe, no socialismo, em que todos serão
trabalhadores, não implica que, nas lutas imediatas, no capitalismo, a
gente não organize sindicatos para melhorar os salários: apesar
disso reproduzir o assalariamento. Como na luta de classes, no caso do racismo
acontece o mesmo. Usamos os elementos de positivação de ser
negro, frente à inferiorização do ser negro, que
são intrínsecos à ideologia racista. Mas o horizonte
último é a desracialização da sociedade. Frantz
Fanon estava correctíssimo, fazer com que o signo raça deixe de
ser um marcador e um estruturador de relações sociais.
O capitalismo vive em permanente crise e ela parece, cada vez, mais aguda. Mas
por que é que parece mais possível uma catástrofe natural
ou a invasão de extraterrestres, para usar uma imagem de Fredric
Jamenson, do que a simples superação do capitalismo?
Vivemos uma época contra-revolucionária da qual não nos
libertamos totalmente. A queda da União Soviética e a derrota do
socialismo foi muito grande. E há um processo de
reconstrução do movimento revolucionário. Essa
reconstrução é muito tímida, está mais
avançada nuns países que em outros. Há ainda uma busca de
horizontes revolucionários que não estão claros. Há
muitos debates sobre pós-marxismo, sobre socialismo
revolucionário no século XXI, sobre populismo de esquerda,
debates que não têm consequências práticas, mas ainda
vamos ter um caminho muito longo para que o marxismo-leninismo renovado, com
todos os novos problemas do século XXI, consiga dar respostas aos
desejos das massas. Ainda vai demorar muito a construir um movimento
revolucionário mundial e conseguir colocar na ordem do dia, como
já esteve, o fim do capitalismo.
Não pode haver necessidade de uma adequação teórica
aos novos tempos e uma necessidade de identificar o que será hoje um
sujeito revolucionário para a transformação, e o que
é hoje essa "classe operária" revolucionária e
ainda como criar um movimento revolucionário a partir desse sujeito?
Acho que sim, mas a resposta para isso não está em abandonar o
marxismo-leninismo, mas em renovar a teoria assimilando novos problemas,
acompanhando as transformações do sistema capitalista. Vou dar um
exemplo, há um processo claro no Ocidente de
desindustrialização com a deslocação de
várias indústrias para a Ásia, com a
recomposição da economia do mundo em que a China é a
fábrica do planeta. Isso faz com que cresça, no chamado Ocidente,
o trabalho informal e o assalariamento nos sectores do comércio e
serviços, uma mudança no perfil da classe trabalhadora. Hoje faz
muito mais sentido falar de assalariados urbanos do que falar em classe
operária, no sentido fordista. Isso é um problema do ponto de
vista organizativo e em relação às novas
reivindicações. A classe trabalhadora brasileira é
maioritariamente feminina, mesmo a que tem emprego formal; a classe
trabalhadora informal para além de ser maioritariamente feminina
é muito negra. Então, a figura da mulher negra e mãe
solteira é muito presente no exército industrial de reserva.
A ideia de classe operária estava ligada à produção
de mais-valia, isso só era possível em trabalhos que criassem
valor. O marxismo excluía desse quadro a distribuição, os
serviços e o comércio. Hoje, ao considerar-se que na nova classe
trabalhadora estão, por exemplo, os distribuidores da Uber Eats,
não há uma mudança na teoria valor-trabalho?
Não creio que haja uma mudança teórica, mas uma
mudança nas formas de exploração. Quando Marx escreveu o
livro I de
O Capital,
a maioria da população era explorada via colonialismo; o
trabalho assalariado, como forma dominante de exploração,
é da segunda metade do século XX. Quando a Internacional
Comunista é criada, a maioria da população era colonizada
e vivia em formas de semi-escravidão. A teoria do valor-trabalho e do
fulcro do capitalismo com a exploração estava valendo, agora
nós temos outras transformações, só que o essencial
da coisa continua: a propriedade privada dos meios de produção, a
existência de um contingente gigantesco da população que
não tem mais do que a sua força de trabalho para vender e a
apropriação privada da riqueza socialmente criada. A partir daqui
vamos pensar em novas tácticas e formas de organização e
comunicação para organizar os explorados e oprimidos, mas eles
continuam explorados e oprimidos. O núcleo da questão continua a
ser explicado pela teoria marxista.
Num filme muito conhecido,
Matrix,
a humanidade estava presa numa ilusão gerada por um programa
computorizado e só era possível combater essa ilusão
desconectando-se dele. É possível fazer luta
revolucionária no quadro do capitalismo de vigilância e das
tecnologias de comunicação e redes sociais?
Totalmente, mas é preciso uma política leninista séria.
Hoje, no Brasil, é mais fácil arrecadar dinheiro, do que era no
tempo da ditadura militar. Também é muito mais fácil a
vigilância, mas escapar dela exige um nível de planeamento e de
organização e estrutura... Inclusive uma
organização revolucionária que se preze tem de ter um
departamento interno de
hackers
e segurança da informação. Tem de aprender a actuar,
fazer guerrilha virtual, uma área que é muito dominada pelos
anarquistas, os cyber-punks, e os marxistas-leninistas estão a dormir
nessa área. Há algumas experiências existentes
interessantes mas é necessário voltar a ter a ideia leninista de
uma política planeada e organizada. O espontaneísmo, numa altura
que se tem as maiores capacidades de vigilância, é facilmente
derrotado, aliás sempre o foi.
Usa as redes para fazer política, mas foi uma acção
espontânea. O PCB nada teve a ver com isso.
(Risos) Eu acho errado, isso devia ter sido discutido politica e internamente.
Acho que até partidos leninistas precisam de mais leninismo. Há
um conservadorismo muito grande. É muito difícil debater uma
política
hacker
com qualquer comunista. Usou o termo de "capitalismo de
vigilância". Conheço várias pessoas que o usam, acho
interessante o debate, mas colocando a pergunta de Lénine, eu quero
saber é "o que fazer?" E aí não se vê uma
reacção prática concreta. Pode-se dizer que o capitalismo
tem a maior capacidade de vigilância da história, é
verdade. Mas cadê o nosso sistema de comunicação
criptografado que não passe pelo Google? Qual é o nosso
recrutamento direccionado para pessoas das Tecnologias de
Informação para que possamos fazer uma guerrilha que
impeça essa vigilância? Isso é um problema, há um
certo tradicionalismo, muito forte, que não percebe que a mudança
das relações de produção capitalistas e nas formas
de dominação exigem alterações tácticas, de
organização e comunicativa. Do mesmo jeito que Engels, no famoso
prefácio a
As Lutas de Classes em França,
defendeu que a táctica de barricadas já não era eficaz
com o desenvolvimento da ciência militar, e que era preciso outras formas
de acção, é preciso hoje encontrar essas novas formas.
É difícil? É. Temos de ter uma criatividade
política sem sair do marxismo-leninismo, é esse o 'x' da
questão, sem andar com teorias eclécticas da moda.
15/Junho/2021
[NR] Obras de Mariátegui podem ser descarregadas
aqui
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O original encontra-se em
www.abrilabril.pt/...
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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