João Amazonas,
um revolucionário irrepetível
Miguel Urbano Rodrigues
A morte de grandes figuras políticas suscita sempre comentários
que expressam avaliações diferentes, por vezes
antagónicas, do significado da sua intervenção na
historia.
Isso acontece não somente entre os adversários, mas também
entre aqueles que admiraram o desaparecido e se situam no mesmo quadrante
ideológico.
Incluo nessa categoria de homens João Amazonas, falecido a 27 de Maio pp.
A dificuldade que enfrento, o escrever sobre o revolucionário e o
amigo, não a encontro na sua personalidade nem no seu percurso de
combatente. Dele se pode dizer que foi um comunista exemplarmente coerente.
É em mim que encontro a dificuldade. O PC do B nasceu em 1962 da
crise profunda que abalou o Partido Comunista Brasileiro após o XX
Congresso do PCUS.
Sendo um comunista português, as circunstancias da luta levaram-me a
militar, simultaneamente, como internacionalista, no Partido Comunista
Brasileiro. Com ele fiquei após a cisão que golpeou a maior
força política da esquerda brasileira, anunciadora das que se
produziriam nos anos da ditadura.
Não teria sentido entrar aqui na apreciação das
polemicas então travadas em torno do Relatório do XX Congresso,
de Stalin e da estratégia posterior de Kruchev. Apenas recordarei, por
ser inseparável do tema deste artigo, que me distanciei das
posições maximalistas assumidas então com paixão.
Sempre separei o homem Stalin cuja personalidade e métodos me
inspiravam repulsa do juízo de valor sobre a URSS da sua
época, prestigiada universalmente pela vitoria sobre a Alemanha nazi,
e da contribuição decisiva para a descolonização e
as grandes conquistas económicas e sociais que fizeram da pátria
de Lenine um pais desenvolvido e o único adversário respeitado
pelo imperialismo.
Este esclarecimento prévio facilita a compreensão de uma
evidencia que para muitos intelectuais de esquerda continua a não ser
obvia: transcorridas quatro décadas sobre a crise de 62, o PC do B
não pode, naquilo que é hoje, como partido marxista-leninista
revolucionário, ser cabalmente compreendido apenas através da
exegese dos acontecimentos ocorridos na URSS depois da morte de Stalin.
Não obstante o PC do B ter, ao longo dos anos, reafirmado a fidelidade a
posições assumidas durante o conflito sino-sovietico, não
é também na aceitação das teses chinesas sobre a
estratégia da tomada do poder e, portanto numa aproximação
ao maoismo, que poderemos encontrar a explicação de um
fenómeno político que desconcerta os analistas da burguesia: a
sobrevivência de um pequeno partido que, perseguido com ferocidade pela
ditadura dos generais, foi na luta crescendo enquanto se enraizava
progressivamente entre os trabalhadores.
O que define a intervenção na historia de um partido comunista
é, antes do mais, o seu comportamento como organização
revolucionaria no pais onde se formou e actua. É a sua atitude no
combate diário perante o inimigo a classe dominante e o
imperialismo a fidelidade aos objectivos traçados, o respeito
pelo funcionamento interno da democracia socialista (tão espezinhado na
URSS) e a permanente consciência de que o povo é o sujeito da
historia.
O PC do B terá sido desde o seu aparecimento o mais severamente
criticado dos partidos da esquerda marxista brasileira, o mais maltratado pela
intelligentsia
burguesa, o mais ignorado pelos mass media. Apesar disso, foi o único
que cresceu na luta. Não abdicou dos ideais, dos princípios e
da pratica comunista quando, nos anos 70 e 80, o PCB entrou no processo de
degenerescência culminado com a renuncia ao nome e aos símbolos e
com a metamorfose que deu origem ao Partido Popular Socialista (PPS),
caricatura do antigo partido de Luiz Carlos Prestes.
Foi nesse contexto que a tríada formada por João Amazonas,
Maurício Grabois e Pedro Pomar desempenhou um papel fundamental,
dirigindo um pequeno e acossado partido revolucionário. Foi com
assombro que nas grandes cidades do Sul, submetidas ao terror da ditadura, se
tomou conhecimento de que o Exercito mobilizava milhares de homens para
combater algures, nas selvas do baixo Araguaia, uma guerrilha
fantasmática, de perfil quase legendário, que desafiava o poder
de contornos fascistizantes que oprimia o povo brasileiro.
Eram os combatentes da força que entraria na historia com o nome de
Guerrilha do Araguaia. Quase todos pereceram nessa tragica epopeia.
Um quarto de seculo depois, em 1996, tive em Brasilia o privilegio de
participar, como ex-parlamentar português, numa audiencia promovida pela
Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados para ouvir
depoimentos sobre a chacina dos últimos guerrilheiros do PC do B, acto
político em que a principal intervenção esteve a cargo de
João Amazonas.
Não esqueço que nessa tarde, ao intervir na discussão,
alertei os presentes para duas questões que me preocupavam e continuam,
alias a preocupar, relacionadas com a ética e a paixão no debate
ideológico travado dentro da esquerda, com o sectarismo e o dogmatismo e
também com a coerência nas lutas revolucionarias.
Quase todos os que num passado relativamente próximo, como dirigentes ou
simples militantes de partidos e organizações revolucionarias
e estavam na sala alguns se tinham batido em múltiplas
frentes contra a ditadura terrorista haviam durante anos, reflectindo a
atmosfera da época, não somente falando e actuando como se a
estratégia do seu partido, na luta contra o inimigo comum fosse
não apenas a mais lúcida e adequada ao momento histórico
como a única aceitável, mas assumindo também na critica
perante os companheiros de outros sectores da esquerda revolucionaria uma
atitude arrogante e dogmática.
Quantos não haviam, então, prejudicado com o seu sectarismo os
objectivos por que se batiam? A grande maioria. Pelo que me dizia respeito,
fazia ali acto de
mea culpa.
Ora, contemplados já com algum distanciamento aqueles anos, chegava-se
à conclusão que nenhum partido tinha então concebido, como
os factos demonstraram, uma estratégia infalível que levasse
à vitoria. Nem isso era possível no contexto histórico e
com a relação de forças existente.
Recordando o panorama de lutas da época, o que me comovia na audiencia
que ali nos reunia naquele salão da Câmara de Deputados era o
profunda admiração que todos nos, homens e mulheres que
havíamos militado em partidos diferentes, sentíamos agora pelos
guerrilheiros do Araguaia e por quantos, noutras frentes, haviam levado a sua
coerência de revolucionários, comunistas e não comunistas,
até à entrega do bem supremo que é vida. Evoquei, numa
transposição de cenário, o combate heróico e
consequente dos dirigentes dos movimentos de libertação das
colónias portuguesas no tempo em que os governantes fascistas de
Lisboa os definiam como «bandoleiros e assassinos». E, contudo
sublinhei passados 16 anos, os presidentes das jovens Republicas
Africanas nascidas desse combate eram aplaudidos de pé no parlamento
português e iam dormir nas camas dos antigos reis de Portugal, no
Palácio de Queluz.
Na pessoa de João Amazonas, ali presente, eu prestava homenagem aos
guerrilheiros do Araguaia, independentemente da correcção ou
não da estratégia que os levara às selvas
amazónicas ao encontro da morte, na fidelidade a um ideal de
transformação revolucionaria do mundo.
- x -
João Amazonas não esta mais connosco. Mas o seu exemplo
permanece como lição.
Identifico nele o paradigma do revolucionário que responde aos sonhos
da juventude que hoje recusa a hegemonia do sistema de poder imperial dos
EUA e denuncia a ameaça que a sua irracionalidade agressiva representa
para a humanidade.
João Amazonas faz lembrar, noutro contexto, os revolucionários
profissionais russos que, mobilizando o seu povo, tornaram possível a
Grande Revolução de Outubro de 17. Operário,
sindicalista, agitador, constituinte em 45 , dirigente do Partido ainda jovem,
preso múltiplas vezes, clandestino em largas temporadas, forçado
ao exílio, produtor de ideologia, foi confrontado pela vida com a
exigência de opções de que iriam depender o rumo do seu
Partido, e, mais tarde a vida de muitos camaradas.
Nunca lhe ouvi em longas e repetidas conversas que mantivemos na sede da
Rua Major Diogo, em São Paulo, onde comparecia pontualmente todas as
tardes às 4 horas um comentário, uma frase da qual
transpirasse orgulho ou vaidade. A sua firmeza de convicções era
incompatível com atitudes de suficiência. Nunca ocultou o seu
desejo de aprender enquanto procurava transmitir, e muito era, o saber
teórico e pratico adquirido numa existência de lutador. Os
camaradas gostavam nos últimos anos de lembrar que ele fora no Brasil
um dos primeiros comunistas a chamar a atenção para o perigo
mortal da política de Gorbatchev, denunciando-a como «via de
consolidação do regresso da URSS ao capitalismo». Os seus
camaradas identificam nele «o ideólogo e o construtor do Partido
Comunista do Brasil.
João Amazonas foi, como outros grandes dirigentes políticos, o
produto de uma época. As suas lutas não podem ser dissociadas do
Brasil em que viveu, do meio em que se moldou o seu caracter, do
circunstancialismo histórico. Mas a relação harmoniosa
existente entre o cidadão e o revolucionário e o cenário
humano, social e cultural do Brasil contemporâneo permitiu que
qualidades incomuns imprimissem à sua intervenção pessoal
na historia marcas inapagáveis.
A sua travessia do seculo XX nasceu em 1912 acompanha a historia
do Partido que dirigiu ao longo de um período simultaneamente
trágico e maravilhoso, assinalado por guerras, conquistas sociais e
cientificas e também actos de barbárie que transformaram a vida
na Terra mais do que ela o fora nos últimos trezentos anos.
A confiança no homem e a consciência de que são
temporárias as derrotas que adiaram a concretização dos
ideais da Revolução de Outubro nunca abalaram minimamente a sua
convicção de que o comunismo acabará por se tornar
realidade, precisamente porque responde a valores eternos da
condição humana.
As suas cinzas, de acordo com desejo por ele manifestado, serão
lançadas sobre a região do Araguaia, onde um punhado de
heróicos guerrilheiros do PC do B caiu sob as balas da ditadura,
lutando pela liberdade, pela democracia, pela ideia de revolução.
Flores vermelhas e de muitas cores brotarão dessas cinzas no silencio da
selva. O verde infinito da maior floresta do mundo torna-se moldura da
esperança comunista, também infinita, de João Amazonas,
revolucionário irrepetível..
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