por Duarte Pereira
Alguma coisa tem que estar errada na atual disputa eleitoral. Como pode uma
frente política ser popular e progressista e, ao mesmo tempo, ser
apoiada por Sarney, ACM e Maluf, por elevado número de pastores
evangélicos conservadores, por grandes industriais e grandes
banqueiros?
O neoliberalismo significou, essencialmente, desestatização,
desregulamentação e desproteção. Como pode ser
antineoliberal uma frente que não defende a reestatização
de empresas estratégicas, o controle da entrada e saída de
capitais externos, sobretudo especulativos, ou que promete, em termos
ambíguos, uma reforma da legislação trabalhista para
garantir a prevalência da negociação sobre a
legislação? Aliás, como pode ser antineoliberal uma frente
coligada com o Partido Liberal?
Lula tem afirmado, reiteradamente, que todo político é bom,
até prova em contrário. De que provas adicionais precisamos para
saber o que representam Sarney, ACM, Maluf ou Luís Medeiros, para ficar
apenas nesses exemplos? Mudou a direita, ou mudaram as correntes de centro e de
esquerda?
Numa mesma frase, Lula promete que vai respeitar todos os contratos assinados e
todos os acordos e compromissos assumidos pelo governo do presidente Fernando
Henrique, e que, no entanto, vai mudar a política econômica que
arruinou o país. É possível mudar sem mudar?
O Brasil não é uma colônia, nem mesmo um país
semicolonial e semifeudal. É um país dependente, sem
dúvida, mas capitalista e razoavelmente desenvolvido. Já efetivou
sua revolução burguesa, ainda que por uma via
"prussiana" ou "burocrático-reacionária".
Pela origem colonial e escravista, e por sua tradição de realizar
transformações burguesas "pelo alto", é um
país capitalista marcado por profundas desigualdades sociais e por uma
tradição autoritária e paternalista arraigada. Num
país com essas características estruturais, que sentido tem
preconizar, como faz Lula, a união nacional entre trabalhadores e
empresários como o signo de sua candidatura e de seu futuro governo? O
PT ocupou espaço na esquerda atacando o programa
"nacional-democrático" e a aliança com a
"burguesia nacional", entendida como uma camada ou setor da burguesia
brasileira. Agora, num estágio mais avançado e mais perverso do
desenvolvimento capitalista no mundo e no Brasil, o PT retoma o programa
"nacional-democrático", numa versão mais moderada, e
propõe a aliança dos trabalhadores, não com um setor dos
empresários, mas com toda a burguesia, indistintamente. Dá para
entender?
União nacional contra quem? A exploração econômica,
a opressão política e a alienação cultural da
maioria esmagadora de nossa população são causadas apenas
por forças externas? As responsabilidades por nossos problemas cabem
apenas ao FMI, às grandes potências capitalistas, aos Estados
Unidos e a alguns e individualizados agentes brasileiros desses interesses?
Não têm a ver com a fração de classe
hegemônica da burguesia brasileira? Nossa dependência não
é estrutural, não se apóia numa aliança entre
interesses externos e internos, não se entrelaça com o
domínio político, o proveito econômico e o controle
cultural dos grandes banqueiros, dos grandes industriais, dos grandes
proprietários de terra - brasileiros? As agudas
contradições de nossa sociedade podem ser resolvidas apenas pelo
diálogo, por um bom pacto social, pela capacidade negociadora de Lula,
pela união de todos os brasileiros e brasileiras, independentemente de
suas posições e interesses de classe? Se as
contradições e os problemas do Brasil não foram resolvidos
até agora, é somente porque ainda não tinha aparecido um
líder suficientemente hábil para reunir todas essas forças
sociais e políticas em torno de uma mesa, arrancando delas um grande
acordo nacional? Ressalva-se que se trata de um acordo para retomar o
desenvolvimento. Mas que desenvolvimento? Sendo capitalista, pode ser
independente, pode ser igualizador? É viável o desenvolvimento
capitalista nacional e harmônico do Brasil, ainda mais no século
21? Voltamos ao "etapismo" do antigo PCB, que o PT dos primeiros
tempos tanto criticava?
Enquanto isso, o ex-presidente da UNE José Serra, que se diz mais
à esquerda do que Lula, faz propaganda do "verde-amarelo"
contra o "vermelho". Exibe depreciativamente, em seu programa
eleitoral, as bandeiras de Cuba e do MST. Comunga em Aparecida e reza com
pastores evangélicos, devidamente filmado. Explora a estratégia
do medo, a mesma utilizada por Collor em 1989 ou pelos golpistas em 1964.
Promete um "choque de valores" tradicionalistas e conservadores,
ressuscitando a tríade "Deus, Pátria e Família".
E condena um eventual governo Lula, inapelavelmente, ao "estelionato
eleitoral" ou à "ruína" -- ele que já
apoiou o PT ou foi apoiado pelo PT em outras ocasiões. E quanto mais
investe contra o PT e as forças de esquerda, mais o ex-ministro esquece
as responsabilidades do PSDB, do presidente Fernando Henrique e dele
próprio pela guinada à direita de 1994, e pelas conseqüentes
dificuldades econômicas e sociais que o Brasil e seu povo hoje enfrentam.
Afinal, não foi Lula quem governou o Brasil nos últimos oito
anos! Não foi Lula quem enxergou na globalização imperial
uma época histórica progressiva, equiparável à do
Renascimento!
A perplexidade do observador aumenta se resolve examinar os Programas de
Governo propostos pelos candidatos Lula ou Serra. Não existe entre eles
nenhuma diferença relevante. Os programas confluem, mas as campanhas se
exacerbam: dá para entender? A convergência programática,
que marca as atuais campanhas, evidencia dois traços da
situação que o país atravessa. Por um lado, não
existe espaço para propostas e partidos abertamente conservadores. Por
outro lado, as condições subjetivas não amadureceram para
transformações socialistas. As propostas e as forças de
centro dão as cartas. Essas forças, unindo-se entre si e com as
correntes de esquerda, poderiam construir um bloco político e social
poderoso e implementar um programa de reformas democráticas, nacionais e
sociais, que fortaleceriam a soberania nacional, aliviariam os graves problemas
materiais e culturais enfrentados pelo Brasil e pela maioria de seu povo,
ampliariam a participação popular na vida política do
país e, assim, o aproximariam do objetivo histórico de um
socialismo renovado e democratizado. Mas, digladiando-se entre si e com as
correntes de esquerda nos pleitos eleitorais e nos movimentos sociais, essas
forças de centro são empurradas para alianças com
forças de direita, de que se tornam reféns. Aconteceu com as
correntes de centro do PSDB, acontecerá também com as correntes
de centro do PT. Como pode ser realizado, então, o programa de reformas
com que acenam para os eleitores? Ou os programas não são
sinceros, ou as alianças estão erradas.
Não é preciso muito debate para admitir que uma
transformação democrático-avançada e socialista de
nosso país ainda não amadureceu. Mas é preciso resgatar as
lições de nossa história e não perder de vista
também que nenhum bloco democratizante e reformador se sustentará
e avançará sem apoiar-se num salto da consciência popular,
no estímulo à organização independente dos
trabalhadores, numa combinação orgânica da
atuação institucional com a luta extra-administrativa e
extra-parlamentar dos movimentos populares. Mesmo um programa de reformas
antineoliberais não poderá ser levado à prática de
maneira golpista, às escondidas, prometendo uma coisa na campanha e
fazendo outra no governo. É preciso esclarecer, unir e mobilizar as
forças que sustentarão o programa de reformas. Mas como essas
forças podem ser preparadas com uma campanha desmobilizadora? Como a
consciência popular pode avançar com um debate eleitoral marcado
por tantos silêncios e por tantos sinais confusos e trocados? Como pode
fortalecer-se a autoconfiança, a organização independente
e a mobilização dos trabalhadores, se todos os esforços se
concentram em tranqüilizar o FMI e os mercados financeiros, em atrair
empresários, em disputar o apoio de pastores evangélicos
conservadores, e em garantir que os problemas serão resolvidos, num caso
pelas decisões competentes de Serra, noutro pela capacidade negociadora
de Lula?
A verdade é que o Brasil não avançará nem pela via
tecnocrática de um, nem pelo consenso passivo de outro. Como não
avançará se as forças de centro insistirem em aliar-se com
setores da direita e não em aglutinar um bloco de centro-esquerda,
democratizante e reformador, tanto na esfera política, quanto nos
movimentos sociais. Ou será que, em oito anos, o Brasil mudou tanto que
toda a burguesia brasileira se tornou nacionalista, a direita se converteu
à social-democracia e reformas progressistas podem, finalmente, ser
feitas sem resistência significativa, sem conflitos, sem lutas, pelo
diálogo, pela escolha soberana e respeitada das urnas? Nos tempos
guerreiros de Bush, da hegemonia unilateral e prepotente dos Estados Unidos,
dos mercados financeiros globalizados, do predomínio do pensamento
neoliberal, da avassaladora influência da mídia dos
monopólios: que extraordinário país será esse
Brasil cordial?
Se as antigas e as novas esquerdas não andavam totalmente equivocadas,
durante todos esses anos, alguma coisa tem que estar errada na atual disputa
eleitoral e no atual debate de idéias.
São Paulo, 23 de outubro de 2002.
Este artigo encontra-se em
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