Idéias curtas
A previsível vitória de Luís Inácio Lula da Silva
na eleição presidencial deste ano já provoca
murmúrios em setores intelectuais modernizantes, nos quais
se ouve, com a monotonia de um mantra, a cantilena que diz: não
vai dar certo.
Igor Fuser, na revista
Época
(14.10.2002), diz que, no poder, os oprimidos abandonam (ou são
obrigados a abandonar) teses acalantadas durante anos de luta. Apontou, como
exemplos, os governos de Ramsay MacDonald que, em 1924, foi o primeiro
trabalhista a assumir o poder na Gã-Bretanha e que, com altos e baixos,
dirigiu país de 1929 até o começo dos anos 30; de Lech
Walesa, que liderou a central sindical polonesa Solidariedade, década de
1980 e foi o primeiro governante eleito após o fim do comunismo, em
1990; de Nelson Mandela, eleito presidente da África do Sul em 1994,
depois de passar quase três décadas nas prisões do
apartheid
. Isso sem contar a referência à fugaz passagem de Emiliano Zapata
pelo governo do México, levado ao poder pela revolução
mexicana de 1911. Todos teriam fracassado, assegura Igor Fuser. No poder,
frustraram sonhos e esperanças. O julgamento peremptório do
governo de Nelson Mandela sintetiza a opinião do comentarista sobre
aqueles governos: o
apartheid
racial deu lugar ao
apartheid
social.
Na mesma edição da revista das Organizações Globo,
a psicanalista e colunista Maria Rita Kehl teoriza sobre partido,
oposição e poder. Sob o mote de que viver é melhor
que sonhar, ela diz que, quando (ou se?) Lula for eleito,
começará a temível realidade. O argumento é
singelo: durante os vinte anos que foi oposição, o PT acalentou e
fomentou sonhos que, na presidência, não vai (ou não
poderá) realizar. Sonhar foi bom, mas ninguém
desce impunemente do céu platônico das idéias
puras, diz ela.
Igor Fuser foi, durante muito tempo, um jornalista ligado à esquerda;
chegou a assessorar o candidato em campanhas passadas de Lula à
presidência. Maria Rita Kehl foi, desde os anos 70, musa de uma certa
esquerda contrária à ditadura do proletariado. Não
são estranhos, assim, ao núcleo de onde sairá o
próximo presidente da República. Destacaram-se, nos
últimos anos, pela defesa da democracia, da ética e da cidadania,
e suas idéias curtas transparecem no medo que manifestam de um
possível governo Lula.
Seu pensamento moderno recusa a luta de classes como categoria
teórica central do confronto político. Enfatizam o
indivíduo e suas características pessoais e a
sedução e corruptibilidade do poder para explicar o bom ou mau
desempenho dos governantes. Esta alegada modernidade também
supõe que há um fosso entre as idéias e sua
realização prática, entre princípios
puros e as contingências do exercício do governo.
Colocam um sinal de igualdade entre governo, Estado e poder, sem compreender a
dialética sutil e conflitiva entre estas esferas. Supõe que,
alcançada a presidência da República, basta a moralidade, a
honestidade, ou a vontade, do dirigente para que seu programa vire realidade.
Vencer ou perder depende, única e exclusivamente, de suas qualidades
pessoais.
A dura realidade da luta de classe não combina com esta visão
idealizada. Contrariamente ao que pensam os pregoeiros dessa modernidade
ambígua, a luta de classes nunca deixou de existir. É ela que
explica a vitória neoliberal nos anos 80, e ajuda a entender o fracasso
daquele modelo. Levou Fernando Henrique ao poder, na eleição de
1994, embalado no enganoso projeto que prometia o paraíso da
estabilidade do real aos trabalhadores (lembram-se do frango a 1 real o quilo,
comemorado por FHC em 1995?), ao mesmo tempo em que, na surdina, garantia
biliões ao grande capital brasileiro e internacional. Essa mesma luta de
classes foi a escola onde os trabalhadores e setores progressistas aprenderam a
dura lição daquele engano.
A luta de classes que não termina com a conquista da presidência
da República, como não terminou quando MacDonald, Zapata, Walesa,
Mandela chegaram ao poder. Este é outro engano
modernizador: o de reduzir o confronto apenas aos embates
eleitorais. No Brasil, o dia 27 de outubro não marcará o fim da
luta de classes e da disputa política que, ao contrário, se
aprofundarão com a possível eleição de Lula e sua
posse na presidência. A governabilidade, a implantação das
medidas previstas no programa da frente Lula Presidente, a
correção de rumo, colocando o país no caminho do
desenvolvimento autônomo tudo isso depende do presidente, mas
também da capacidade que as forças progressistas terão de
juntar apoio efetivo e organizado ao programa de renovações. E
isso vai depender daquilo que aqueles setores modernizantes
consideram chato ou atrasado: esforço,
mobilização, confiança na capacidade do povo brasileiro
tomar seu destino em suas próprias mãos.
Igor, Maria Rita e outros que pensam da mesma forma podem posar de analistas
desinteressados mas, para o bem da democracia, da ética e da cidadania
que pregam, deveriam ser mais ousados e claros, e assumir sua
posição neste embate fixando seus nomes no frágil andor
que leva José Serra até a eleição do dia 27 de
outubro.
__________
[*]
Jornalista. Membro do Comitê Central do PCdoB. Foi da
redação do jornal
Movimento
na década de 70, editor da revista
Retrato do Brasil
(1985 a 1989), colaborador do jornal
Tribuna da Luta Operária
(1981 e 1988). Atualmente é do conselho editorial da revista
Princípios
e diretor do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
|