Nós sabemos fazer um país
Em certo momento da Revolução Russa, Lenin teria afirmado que
não se tratava de fazer um país socialista, mas de garantir um
país minimamente civilizado. Estou convencido que, para o Brasil voltar
a ser um país minimamente civilizado, temos que pensar na alternativa
socialista.
Um país minimamente civilizado exige, hoje no Brasil, uma
reversão profunda da barbárie, isto é, o enfrentamento de
três eixos inadiáveis: a reforma agrária, a reforma urbana
e a garantia das condições dignas de existência. A
questão central para pensarmos o Brasil é responder, primeiro,
quais são as condições para garantir isso; segundo, a quem
interessa esta mudança e quem será contra tais iniciativas, e,
por último, quais são os meios e as formas políticas para
alcançar esta meta.
Quando estudamos os diferentes projetos que procuraram pensar o desenvolvimento
do Brasil (ver, por exemplo,
Estado e Planejamento Econômico no Brasil
de Octávio Ianni, Civilização Brasileira, 1996),
constatamos que nosso país tinha diante de si três projetos
distintos: a) um desenvolvimento capitalista nacional, o que exigiria o
estabelecimento de condições internas de infraestrutura,
industrialização e desenvolvimento tecnológico
próprio; b) um desenvolvimento associado ao imperialismo visando um
crescimento rápido; c) uma alternativa socialista. A primeira
alternativa marca o segundo governo de Getúlio Vargas e é
interrompida com sua morte; a segunda iniciada por Juscelino Kubitscheck e
mantida violentamente pelo golpe de 1964 e pela Ditadura que o seguiu.
Ianni avalia que a terceira alternativa ficou como que suspensa pelo fato de
que a principal força cujo interesse se manifestava em uma proposta
socialista, no período analisado, cujo protagonismo era do PCB, acabou
por se aliar a forças nacionalistas na crença de que o
desenvolvimento de um tipo de capitalismo nacional poderia ser a base para uma
possível passagem para o socialismo. Tal postura foi retomada com a
democratização, de outras formas e por outros motivos, pelo ciclo
de governos democráticos populares protagonizados pelo PT, revivendo a
conciliação de classes na perspectiva de um desenvolvimento
capitalista com geração de emprego, distribuição de
renda e políticas sociais compensatórias.
Conclui-se daí que o que predominou, seja por formas
democráticas, seja por formas abertamente autoritárias, foi a
crença de que o desenvolvimento econômico baseado no "livre
mercado" e na inserção subordinada do Brasil à ordem
econômica mundial (leia-se imperialista) poderia dotar nosso país
de uma economia sólida, deslocando o problema para a questão da
distribuição mais equitativa da riqueza via políticas de
Estado, ou, como no momento atual, a retomada da forma brutal da crença
mítica segundo a qual, garantindo as condições do
crescimento econômico capitalista, todos os problemas um dia se
resolverão. Entretanto, década após década, o que
vemos é que, ao final de um ciclo, a concentração de
riquezas e propriedades aumentam, a miséria persiste e os mesmos
problemas estruturais se agravam, impedindo a dignidade mínima das
condições de existência para a enorme maioria da
população.
Acreditamos que é o momento de retomar uma alternativa que foi
secundarizada, a alternativa socialista. Ela se fundamenta em algumas
evidências: a) é necessário orientar a economia para que
ela tenha como prioridade a criação dos meios necessários
à produção e reprodução em
condições dignas da maioria da população, que
é quem produz de fato esta riqueza e tem direito de usufruí-la;
b) esta reorientação econômica implica em um planejamento
que seja capaz de dispor dos recursos naturais, humanos, tecnológicos,
culturais e outros, de maneira a otimizar a produção e
distribuição de bens e serviços essenciais à vida,
assim como manter as condições de reprodução da
atividade econômica; c) tudo isto implica em uma presença do
Estado, mas de uma outra forma de Estado que possa representar os interesses da
maioria e das classes trabalhadoras contra os interesses de uma minoria que
quer perpetuar sua propriedade, riqueza e privilégios.
No caso específico do Brasil, esta mudança implicaria na
implementação de alguns eixos prioritários e imediatos que
passamos a enumerar:
-
Reversão das privatizações nos setores
estratégicos da economia como energia, transportes, portos e aeroportos,
mineração, extração e refino de petróleo,
etc.
-
Estatização do sistema financeiro acabando com o enorme poder
dos monopólios financeiros e os Bancos que de fato dirigem a economia e
as contas públicas para a prioridade da saúde do capital
financeiro.
-
Suspensão, auditoria e não pagamento da dívida externa
e interna.
-
Reforma Agrária e nova política agrícola que reverta a
prioridade do agronegócio (eufemismo com o qual se identificam os
interesses monopolista e capitalista no campo) na direção da
produção e distribuição de alimentos.
-
Reforma Urbana que altere radicalmente o modelo de cidade a serviço
do capital, com todas as implicações que daí derivam para
as políticas de moradia, transporte, segurança, serviços
essenciais, saneamento, cultura, etc.
-
Uma política de desenvolvimento científico,
tecnológico, educacional e cultural que projete metas ambiciosas de
formação de uma sólida base humana de compreensão
do pais, seus desafios e necessidades e os meios de enfrentá-los na
perspectiva da maioria da população.
Esta lista está longe de ser exaustiva, mas acreditamos que são
as bases imediatas para pensar a reconstrução do Brasil em novas
bases e para nos perguntar a quem interessa e a quem não interessa esta
mudança, assim como os meios para implementá-las. As três
primeiras visam gerar os recursos para realização das três
seguintes, mas há ainda uma questão central a ser resolvida e ela
se vincula à anterior sobre quais segmentos sociais e classes se
interessam em garantir esta direção das mudanças e quem se
colocará contra esta direção.
Nos parece evidente que reorganizar o pais nesta direção
interessa aos trabalhadores urbanos, à juventude, aos trabalhadores do
campo, aos segmentos médios empobrecidos que vivem no limite de suas
possibilidades, as enormes populações de nossas cidades obrigadas
a viver em condições precárias, sobrevivendo de trabalhos
precários e em condições sub-humanas, aos povos
indígenas que lutam pelo direito a sua terra e sua identidade cultural.
É por demais evidente que isto forma a maioria da
população brasileira.
Como crescemos lendo Bete Lobo e Clovis Moura, sabemos que a classe
trabalhadora e esta imensa quantidade de setores que só têm sua
força de trabalho como recurso de sobrevivência, grande parte
vendendo em condições precárias ou não conseguindo
vendê-la, têm pelo menos dois sexos (minha querida Amanda Palha que
o diga) e é formada majoritariamente por negros. É sobre as
mulheres e os negros que recai o maior peso desta ordem desigual, injusta e
opressiva: não por acaso são estes segmentos que têm se
mobilizado e estado na linha de frente das lutas sociais em suas mais
diferentes formas. No Brasil, a questão de classe é
inseparável da questão feminista e da luta contra o racismo, mas
devemos afirmar em igual medida que a luta de mulheres, a luta dos negros, dos
povos indígenas, a luta LGBT, hoje no Brasil é a luta
anticapitalista, uma vez que a forma de sociabilidade do capital se apropriou
funcionalmente da opressão sobre estes segmentos.
Reorganizar nosso país na perspectiva apontada ataca na base a raiz da
opressão, ainda que não seja suficiente para erradicar as chagas
do machismo, do racismo, da homofobia e outras. Transformar nossas cidades e o
campo colocando as necessidades humanas no centro de nossas prioridades cria um
campo favorável para o enfrentamento das opressões que ainda
cobram muita luta e esforços.
No entanto, se estes segmentos tendem a se beneficiar da direção
destas mudanças, nos parece óbvio que confrontam outros
interesses e eles são facilmente identificáveis: os grandes
monopólios capitalistas da indústria, do agronegócio, do
comércio, das finanças, dos transportes, da
mineração, dos serviços, em síntese, da grande
burguesia monopolista, que somados não chegam a 3% da
população economicamente ativa e representam 1% que concentra a
riqueza neste país.
Colocado nesses termos, o mistério é: por que a maioria
esmagadora da população se curva aos interesses desta minoria? O
problema é que esta minoria tem a seu dispor os meios políticos e
ideológicos para garantir sua ordem. Estes meios se materializam em um
conjunto de instituições, formas políticas, aparatos
privados de hegemonia que logram o efeito de apresentar sua proposta
plutocrática como se fosse a vontade e os interesses do país. A
eficiência desta dominação se comprova quando um segmento
dos explorados e oprimidos se empenham em defender aqueles que os exploram e
oprimem. Neste ponto é que qualquer programa transformador esbarra na
questão do poder político e da forma do Estado burguês no
Brasil.
A atual forma política se mostrou eficiente para garantir a ordem, seja
nos termos de uma "democracia de cooptação", seja de
forma aberta cínica e brutal como agora. A constatação
inevitável para aqueles que apostam na direção das
mudanças é que, mesmo estas medidas iniciais, que não
são propriamente socialistas, mas que apontam nesta
direção, não são possíveis mantendo-se esta
forma política.
A própria crise se encarregou de mostrar os limites desta forma que
literalmente faliu e se dissolve aos olhos de todos. As famosas premissas que a
teoria política da burguesia se esmerou em defender se transformam em
ilusão consciente, em hipocrisia deliberada. A divisão de
poderes, na qual quem governa não faz a lei, quem faz a lei não
governa e quem julga não faz a lei nem governa, se embaralham para
revelar os fios que ligam os fantoches àqueles que o controlam.
A democracia brasileira se revelou uma fraude. Poderosos interesses
econômicos (aqueles mesmos que descrevemos acima) financiam as
eleições, controlam os eleitos, ditam o que os governos decidem e
definem o que os magistrados julgam. Os meandros da democracia representativa
criam uma imagem invertida da sociedade nas instituições
"representativas" nas quais as minorias sociais se transformam em
maiorias parlamentares e as maiorias, em minorias. Quando o esquema fraudulento
falha por algum motivo, ainda que limitadamente, todos os mitos da neutralidade
jurídica e da ordem institucional são jogados pelos ares,
presidentes(as) são depostos, vereadora assassinada a tiros, leis e
garantias são rasgadas, e o arbítrio impera.
A ordem jurídica e a democracia já eram descartáveis para
a maioria de nossa classe em seu quotidiano. Você tem direito a uma vida
digna, mas é obrigado a viver na miséria; você tem direito
ao devido processo legal, mas é jovem e negro e será executado
para depois se forjar flagrantes e autos de resistência; todos são
iguais perante a lei, mas você é mulher e negra e está
condenada à opressão e à violência; você
é de uma nação indígena e tem direito à
demarcação de suas terras, mas terá que esperar a maioria
do congresso do agronegócio definir os termos da
demarcação que lhes retirará o solo sobre o qual vive; sua
sexualidade é livre no âmbito privado, desde que você
não saia de casa, do quarto, do armário; você tem direito
à livre manifestação, mas será espancado pela
polícia, se for no campo será assassinado como os 70 companheiros
e companheiras que foram mortos só em 2017; todos têm direito
à vida, a menos que você viva no Pará.
A ordem "democrática representativa" faliu, mas a burguesia
que a vendia como bálsamo redentor desde o século XVIII, quando
revelasse seus limites, descarta a democracia em nome do seu domínio sem
máscaras e flerta com o fascismo.
A mudança exige uma nova forma política, mas qual é esta
forma? De certa maneira esta é uma pergunta que está mal
colocada, pois não se trata de adivinhar formas ideais e
utópicas. As formas políticas são expressão de
formas societárias e das relações sociais de
produção e formas de propriedade que estão em sua base. A
própria burguesia não sabia quais as formas que lhe serviriam,
demorou muito para chegar à ordem institucional e política que
agora está ruindo sob seus pés. Todos os grandes teóricos
da democracia, a começar pelo maior deles que é Rousseau,
duvidavam que a democracia fosse viável. A pergunta correta talvez
fosse: qual a fonte de novas formas políticas?
A ordem burguesa quer nos fazer crer que a única fonte do direito e da
alteração das formas institucionais que pretendem organizar a
vida são os seus próprios espaços instituídos;
neste caso, o executivo que governa, o parlamento que faz leis e o
judiciário que julga (com capas pretas chiquíssimas e solenes) a
partir da ordem jurídica instituída. Mas esta própria
ordem política e jurídica não surgiu destes espaços
e só foi instituída por um longo processo de
revoluções que se levantaram contra e por fora do que havia de
instituído.
O parlamento não tem o monopólio da política. O direito ao
voto, antes de norma instituída, foi luta pelo voto; a igualdade formal
entre homens e mulheres foi antes luta feminista, a união homoafetiva,
antes de ser lei, é a realidade daqueles que amam e vivem junto; a
abolição da escravidão foi antes luta abolicionista e
resistência secular dos escravos; os direitos dos trabalhadores, agora
retirados, foram greves, confrontos, sangue de mártires e muita luta; a
moradia é só letra morta do direito sem a luta dos que ocupam o
solo urbano, assim como a terra improdutiva é tomada pelo trabalho de
quem luta por ela.
Ao lado da velha forma política constituída existe outra forma
política que contra ela resiste e pulsa. Nas resistências
quotidianas dos trabalhadores, nos movimentos sociais, nas
organizações políticas e nos sindicatos, nas massas que
explodem em ira e paixão como em 2013, na vida cultural que canta nossas
dores e nossa alegria, em cada poro em que a vida resiste contra a morte e a
barbárie desta ordem desumana.
A questão é em qual forma as pretensões transformadoras
irão apoiar sua governabilidade. Uma coisa é estarmos obrigados a
viver em uma ordem política e jurídica instituída, outra
é se render aos limites desta ordem. Quando a vida e nossos direitos (os
que existem e aqueles que necessitamos) se chocam com as formas
instituídas, é hora de criar novas formas. E vamos
criá-las, já a estamos criando. Nossa classe hoje vive em
quilombos modernos, parte criados por nós, parte nos foram impostos, mas
é lá que vivemos, criamos nossas leis, nossos juízos e
nosso destino diário.
Chamamos isso de Poder Popular, um conjunto de formas instituídas e a
serem criadas, que teriam por função apresentar os interesses
desta maioria como vontade política com força e legitimidade, em
um primeiro momento ao lado e muitas vezes contra a ordem instituída.
Formas dentro das quais possamos exercitar uma democracia direta e
substantivamente superior a esta velharia que agora desmorona. É nestas
formas que devemos apoiar a governabilidade para mudar este pais. Elas
não servem apenas para levar líderes nos braços, elas
são o verdadeiro poder, sua fonte, sua raiz, a força que os
verdadeiros líderes sabem de que apenas são expressão.
Nós sabemos como transformar esta catástrofe em um pais, mas para
isso precisamos derrotar aqueles que ganham muito transformando este pais em
uma catástrofe.
26/Abril/2018
[*]
Professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do
NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e
membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro
O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência
(Boitempo, 2002) e colabora com os livros
Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as
ruas do Brasil
e
György Lukács e a emancipação humana
(Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio.
O original encontra-se
blogdaboitempo.com.br/2018/04/26/nos-sabemos-fazer-um-pais/
e em
pcb.org.br/portal2/19484/nos-sabemos-fazer-um-pais
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