A cruenta implosão de uma sociedade condenada
por Henrique Júdice Magalhães
[*]
Com 2,7% da população mundial, o Brasil concentra mais de 10% dos
assassinatos no planeta. Em 2016, foram 61,6 mil, além de 49,5 mil
estupros e 12 mil suicídios que também dizem algo sobre esta
sociedade. Das 50 cidades mais violentas do mundo, 25 ficam aqui.
As duas bases oficiais de dados (ocorrências policiais e registros de
óbitos) contêm falhas e divergências, mas a explosão
de violência letal é visível a olho nu e não
só nas metrópoles. Aliás, os números reais
são maiores, pois, pelo estigma que recai sobre as vítimas,
muitos suicídios são registrados como acidentes e inúmeros
estupros nem denunciados são.
Quanto aos assassinatos, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), agência oficial, destaca que muitos se ocultam sob o
rótulo "morte violenta com causa indeterminada". Em S.Paulo,
Minas Gerais e Bahia, que concentram metade da população
brasileira, esses registros equivaliam, em 2015, a respectivamente, 42,9%,
30,4% e 30,3% dos homicídios reconhecidos. Por certo, as 71,8 mil
desaparições registradas em 2016 também escondem muitas
mortes não naturais.
Tanto quanto a disparada do número de mortes violentas, estarrecem a
crueldade de muitas delas e a futilidade de seus motivos.
Decapitações filmadas e difundidas por redes de dados no contexto
de desavenças associadas ao varejo
[1]
de drogas proibidas; uma mãe morta ao esperar sua criança na
porta da escola; dois rapazes executados pelo segurança de um
restaurante devido à quantidade de sachês de catchup que queriam
levar para casa; uma trabalhadora rendida ao sair de um plantão noturno
e trucidada a golpes de chave de fenda após entregar tudo aos
assaltantes; e outro envenenado e esquartejado por um colega para roubar-lhe o
dinheiro da rescisão são exemplos citados a esmo de crimes
ocorridos nos dois últimos anos na região metropolitana de Porto
Alegre.
Pseudociência e mistificações
Chega a surpreender que o aparato ideológico composto pela imprensa
mercantil monopolista, instituições oficiais de pesquisa e
algumas ONGs admita a existência dessa orgia de sangue. Que explique como
ela se coaduna com a visão rósea que tanto propagou sobre a
evolução da sociedade brasileira durante os oito anos de governo
do PSDB e à parte atritos de outro tipo os 13 do PT, ou
identifique com alguma precisão e honestidade suas causas, seria pedir
muito.
O morticínio em curso no Brasil não se compreende por nenhuma das
teses com que, a partir de cálculos viciados e da pseudociência
social burguesa de matriz estadunidense, intelectuais orgânicos do
sistema tentam explicá-lo. Este artigo não desvenda os mecanismos
que impelem parte das massas empobrecidas à autofagia, mas desmente
mistificações em voga, sopesa elementos importantes e aponta
causas profundas.
Juventude
No estudo
Efeito da mudança demográfica sobre a taxa de homicídios
no Brasil,
publicado em 2015, Daniel Cerqueira, diretor do IPEA no governo da senhora
Roussef, e Rodrigo Leandro de Moura, da Fundação Getúlio
Vargas (FGV), dizem que um quarto do crescimento dos assassinatos entre 1991 e
2000 e metade entre 2000 a 2010 se devem à existência de jovens do
sexo masculino no Brasil (em outros países, ou não há
homens, ou eles saltam da infância à maturidade...).
Cerqueira e Moura admitem nada saber sobre os autores dessas mortes nem
poderiam, pois a estimativa mais otimista sobre elucidação de
homicídios no Brasil diz que, em 80% dos casos, nem se chega a ter um
suspeito. Mas como 92% das vítimas entre 2005 e 2015 eram homens entre
15 e 29 anos, deduzem que os assassinos também são e que a
quantidade de homicídios varia em função do peso relativo
desse segmento populacional.
Um dado que consta de seu próprio estudo os desmente: no período
analisado (1991-2010), enquanto a taxa de homicídios cresceu 30%, o peso
relativo do segmento masculino entre 15 e 29 anos sobre a
população brasileira diminuiu levemente e o da
fração de 15 a 23 (considerada a mais perigosa na literatura
estadunidense em que se baseiam) despencou.
Não há um só indício de correlação
muito menos causalidade entre quantidades relativas de homens
jovens e de assassinatos. Ao contrário: no Brasil, a matança
é simultânea ao envelhecimento da sociedade. De 1960 a 2015, a
média de filhos por mulher cai de 6 para 1,7 e a expectativa de vida
sobe de 48 para 75,5 anos (dados do IBGE). De 1980 (quando começa a
haver estatísticas de homicídios e os nascidos em 1960 tinham 20
anos) a 2015, os assassinatos sobem de 11,4 para quase 30 por 100 mil
habitantes.
A única conclusão que isso permite é a que li na Argentina
como palavra de ordem e se aplica ao Brasil como constatação
científica: os meninos não são perigosos, estão em
perigo.
Famílias
Em 2009, a FGV conferiu o grau de doutor em Economia a Gabriel Chequer
Hartung por seus
Ensaios em Demografia e Criminalidade.
Com a chancela de seu orientador, Samuel Pessôa, ele diz que a
proporção de famílias monoparentais com crianças de
5 a 15 anos num determinado tempo e local se reflete na taxa de assassinatos 10
anos depois, quando elas têm entre 15 e 25.
Sem demonstrar ou sequer descrever a relação de causa e efeito
sem a qual essa coincidência numérica verificada em alguns lugares
é só ilusão de ótica, Hartung conclui que filhos de
mães sozinhas têm maior propensão a matar e que a
criminalidade violenta se reduziria pelo aborto eugênico deles
(não prega explicitamente sua eliminação após
nascidos, mas para bom entendedor...).
26,8% das famílias brasileiras com filhos tinham apenas um adulto (em
regra, a mãe) segundo dados do IBGE para 2015. Cotejados com os do
Eurostat para 2016, eles nos colocam entre a Dinamarca (30%) e a Suécia
(25%) nesse quesito.
Se essa configuração familiar fosse fator de letalidade, as taxas
dinamarquesa e sueca de homicídios seriam similares à nossa. Mas
são próximas de zero: 0,58 e 1,07 assassinatos por 100 mil
pessoas em 2015, respectivamente. Mesmo no cotejo entre essas
nações escandinavas, parecidas em todo o resto, o impacto da
monoparentalidade sobre a violência letal é nulo: a campeã
mundial de mães solteiras tem menos crimes de morte que sua vizinha.
Armas
Túlio Kahn, alto funcionário das
administrações Alckmin e Serra
[2]
em São Paulo, sustenta que o número de armas de fogo entre a
população determina a taxa de homicídios.
O dedo no gatilho é só o último elo da cadeia de eventos
que desemboca num assassinato, e nem assim a disponibilidade de pistolas e
revólveres ajuda a compreender o que se passa no Brasil: segundo o
governo federal, 650 mil foram entregues voluntariamente entre 2004 e o
início de 2014.
Não localizei dados de igual amplitude sobre apreensões. Mas
só as entregas espontâneas já permitem afirmar que o
aumento dos homicídios se deu enquanto o estoque de armas entre a
população caía expressivamente.
No documentário
Tiros em Columbine,
Michael Moore mostra que o Canadá, com uma população
tão armada quanto a dos EUA, tem muito menos assassinatos (1,7 contra
4,9 por 100 mil habitantes em 2015, segundo o site Countryeconomy; nos dois
casos, muito mais armas e menos mortes que no Brasil). E que se pode e deve
condenar a demência do fetiche armamentista sem confundir o instrumento
do crime com sua causa.
Algo, mas não tudo
Outras explicações tocam em importantes aspectos da
tragédia brasileira, que se vinculam ao banho de sangue em curso mas
não o explicam em toda profundidade.
Evasão escolar
O sociólogo e ex-deputado Marcos Rolim é um pesquisador
sério, dedicado à preservação e a melhoria da vida
da juventude pobre. Ao estudar a violência em que ela está imersa,
não busca sua raiz nos cromossomos nem nas mães dos jovens, mas
no que o Estado lhes sonega.
Em sua tese de doutorado
A formação de jovens violentos Estudo sobre a etiologia da
violência extrema,
apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rolim
busca desvendar não tanto a quantidade de assassinatos, mas sua
desmesurada crueldade. Para isso, entrevistou adolescentes que haviam matado
futilmente e outros que, vindos de um quadro sociofamiliar semelhante ao dos
primeiros, construíram suas vidas fora do crime. A diferença que
ele identificou entre os dois grupos é que os membros do primeiro haviam
sido violentados na infância, excluídos da escola e recrutados por
adultos que os ensinaram a agir brutalmente.
O desprezo pela integridade física e emocional das crianças e a
falta de uma escola pública forte, capaz de suprir o que lhes falta em
casa e na vizinhança em termos culturais e de socialização
sadia, são as maiores dívidas do Brasil para com seu povo e dados
basais da tragédia que vivemos. Mas não parece que a
evasão escolar seja a
causa
do fenômeno em tela: as crianças e adolescentes permanecem, hoje,
muito mais anos na escola (ruim) do que nas décadas de 70 e 80
para não falar nas de 50 e 60, quando era comum que o início da
vida laboral ou o insucesso no exame de admissão ao ginásio
encerrassem o ciclo escolar aos 10/11 anos de idade. Ainda que a evasão
escolar seja um dado importante na vida dos autores dos crimes pesquisados por
Rolim, ela caiu enquanto tais crimes aumentavam.
Drogas
Uma parte enorme dos assassinatos no Brasil está associada
à cocaína e seus subprodutos (não à maconha e
outras drogas). De todas as variáveis analisadas, esta é a
única cujo crescimento coincide no tempo com a escalada de crimes de
morte.
Vários são cometidos sob o efeito delas ou da ânsia causada
por sua abstinência, e muitos mais na disputa por pontos de varejo,
punição a devedores e outras desavenças vinculadas
à sua compra e venda inclusive extorsões e queimas de
arquivo
[3]
perpetradas por policiais contra pequenos traficantes e usuários.
Todavia, embora sejam um forte catalisador da violência, essas
substâncias não explicam, sozinhas, a dimensão que ela
assumiu em nosso país. Seu comércio atividade, em si,
não violenta existe no mundo inteiro, mas só aqui e em
alguns países da América Central se faz acompanhar por tal
letalidade. Mesmo no México, considerado em colapso por causa do
narcotráfico, há em torno de 20 homicídios por 100 mil
pessoas e não 30, como aqui.
Raízes profundas
Como raízes mais profundas do fenômeno, restam dois aspectos da
dinâmica social brasileira:
1 O legado de uma instituição brutal que foi, aqui,
particularmente violenta: a escravidão. No Brasil, o Estado, as classes
dominantes e a maior parte dos setores médios nunca reconheceram valor
algum à vida das massas negras e pardas, vistas ora como mercadoria, ora
como ameaça a ser reprimida ou eliminada; nem das massas camponesas,
submetidas à servidão ou expulsas da terra para se juntar, na
cidade, aos descendentes de escravos.
2 A intoxicação dessas massas por uma contrapropaganda que
levou parte delas a incorporar os antivalores de uma classe dominante em
decomposição: consumismo, individualismo possessivo, imediatismo,
ostentação, narcisismo. Christopher Lasch (
A Rebelião das Elites e a Traição da Democracia
) e Richard Sennett (
A Cultura do Novo Capitalismo
) analisaram esse fenômeno no país do qual o Brasil vem se
tornando, desde 1964, uma cópia mal feita: os EUA. João Manuel
Cardoso de Melo e Fernando Novais (
Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna
) e, especialmente, Jurandir Freire Costa (
O Vestígio e a Aura
) identificaram-no aqui. "
A violência emerge como uma conseqüência da avidez na busca
dos objetos supérfluos, estimulados pela publicidade.
Essa distorção não começou com o miserável
que porta a arma, mas sim com a elite que deu a norma da
destruição
" dizia Freire Costa numa entrevista em 2004.
Estado assassino
Sobre essa combinação de fatores, o Estado promove o banho de
sangue.
Fardadas e em horário de expediente, as polícias matam mais que
os ladrões: em 2016, o Brasil teve 2.703 ocorrências de
latrocínio (roubo com morte) e 4.224 de "mortes por
intervenção policial". Esses números não
incluem o "trabalho" das milícias paraestatais que vicejam no
Rio, nem dos grupos da PM
[4]
de SP que matam com o rosto coberto ("bandido pelo menos mostra a
cara", ouve-se comumente na periferia paulistana).
Além de matar com as próprias mãos, o Estado organiza
grupos para extermínio (inclusive recíproco) de pobres
seja pela lucrativa associação de políticos e
funcionários a máfias emaranhadas à estrutura policial,
como denuncia, há tempos, o professor José Cláudio Alves
de Sousa; seja enviando traficantes e ladrões de pouca monta a
presídios cuja administração terceiriza (não de
graça) a facções que os recrutam à força e
transformam vários deles em delinquentes violentos, como assinala Rolim.
A concentração do foco prisional nessas pessoas é
também uma maneira de deixar livres os matadores, cuja
posição nas facções é mais alta.
Se houver dúvida sobre a quem servem essas ações, ou sobre
a interpenetração entre as altas esferas do mercado ilegal de
drogas e as do Estado, basta lembrar que vivemos, hoje, sob um governo que tem
dois ministros (Blairo Maggi e Aloysio Nunes) e um secretário (Gustavo
Perrella) envolvidos com transporte e armazenamento atacadista de
cocaína.
"De ir à guerra se trata"
A mais sombria concepção sobre o Estado (a de Hobbes) pregava a
submissão a ele como preço da garantia da vida e integridade
física de seus súditos. Quando ele não é capaz de
prover isso, há uma crise que não será resolvida dentro de
seus marcos.
O drama brasileiro é que a corrosão terminal das estruturas
estatais antecedeu em anos (décadas?) o amadurecimento da única
possibilidade histórica de supera-la: uma revolução.
Construí-la nesta sociedade degradada é trabalho hercúleo
e arriscadíssimo, mas premente.
As dúvidas que podem existir sobre sua conveniência e
custo-benefício quando ela envolve romper a paz dos cemitérios
não têm lugar quando ela é o único meio para
estancar a perversidade e a violência fomentadas pelo Estado. Se a
mortandade intrínseca ao andamento "normal" desta sociedade
já é a de uma guerra, "de ir à guerra se trata",
como dizia, num verso composto com límpida consciência em outro
contexto, Idea Vilariño.
[1] Varejo: retalho
[2] Alckmin e Serra: ex-governadores do estado de S. Paulo, ambos do PSDB
[3] Queima de arquivos: execução de possíveis
testemunhas
[4] PM: Polícia Militar
Do mesmo autor em resistir.info:
Forças Armadas e polícias numa pseudodemocracia agonizante
Três momentos da integração subordinada
A proteção à infância e às famílias pobres no Brasil e na Argentina
A recolonização programada da África
Reforma genocida da Segurança Social no campo
Seria bom se fosse verdade
[*]
Jornalista, brasileiro.
O original encontra-se em
anovademocracia.com.br/no-211/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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