Brasil: Latifundiários dispõem de fuzis AR15
Latifundiários brasileiros organizam quadrilhas de jagunços e
rosnam contra a reforma agrária
As milícias do latifúndio irromperam, em grande estilo, no
horário nobre da televisão, quando o
Jornal Nacional
pôs no ar, no dia 3 de julho, um grupo de 15 jagunços
encapuzados, em um latifúndio no Portal do Paranapanema, em São
Paulo. Estavam armados com revólveres calibre 38 e equipamentos
sofisticados, de uso privativo das Forças Armadas (portanto, de posse
ilegal): sete escopetas calibre 12 cano curto, uma espingarda calibre 22, duas
carabinas calibre 38 e duas calibre 22, um fuzil ponto 30, outro 762, e um
fuzil AR 15, cujo tiro é capaz de atravessar o bloco do motor de um
trator. Aquele que parecia o líder do bando disse que tem ordem de
atirar para o alto. Mas, se entrar, a ordem é baixar o cano.
Para Valmir Sebastião, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) no Pontal, aquilo foi apenas uma amostra. Tem
muito mais gente e armas mais poderosas, disse. Ele calcula que
há mais de 150 jagunços na região. Em setembro de 2002,
disse, lavradores que iam ocupar a fazenda Santa Fé em Sandovalina,
São Paulo, foram recebidos à bala. Segundo a própria
polícia, foram mais de 200 tiros, e ninguém foi preso por
isso, acusa.
No mesmo 3 de julho, em Tracunhaém, município pobre da Zona da
Mata de Pernambuco, foram mobilizados tratores e tropas da Polícia
Militar (PM) para desocupar o engenho Prado. Os primeiros, para derrubar as
precárias moradias dos ocupantes e suas roças. A PM, para usar
legalmente armas contra os pobres do campo. Dois lavradores presos estavam
armados com espingardas soca-soca, que eles mesmos produzem
artesanalmente, e cujo poder de fogo é menos do que limitado.
Estes são, de certa forma, os dois extremos armados da luta
no campo, que desvendam dramaticamente o vaticínio de gente como
João Bosco Leal, presidente do Movimento Nacional de Produtores (MNP),
vinculado à União Democrática Ruralista (UDR) AR 15
de um lado, soca-soca de outro.
Naqueles dias, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu uma
delegação do MST. Com o espírito de camaradagem entre
velhos conhecidos de anos de luta, Lula pôs na cabeça o
boné do MST, dando a senha para o coro coordenado contra a reforma
agrária e qualquer ameaça ao latifúndio, ao domínio
das oligarquias e sua primazia na relação com os governos. Uma
reação que recusa com veemência o tratamento
democrático e igualitário dedicado a trabalhadores rurais e a
camponeses.
O MST é uma organização criminosa que organiza
saques e invasões foi a consígnia de todas as mais
importantes lideranças latifundiárias. O senador Jorge
Bornhausen, presidente do PFL, e Luis Antonio Nabhan Garcia, presidente UDR,
puxaram o jogral; foram seguidos pelo senador tucano Arthur Virgílio, do
PSDB/AM (líder do governo de Fernando Henrique Cardoso no Senado);
Antonio Ernesto de Salvo, presidente do Conselho Nacional da Agricultura (CNA);
João Bosco Leal, do MNP. Paradoxalmente, esses mesmos dirigentes
justificam os fazendeiros que organizam quadrilhas armadas. Nabhan, por
exemplo, diz que a UDR não recomenda aos fazendeiros que se armem.
Mas não tiro a razão de quem o faz, pois é
desespero.
As lideranças do MST acusam: o alvo do clima de violência e
chantagem criado pelos latifundiários são o governo Lula e aquilo
que eles entendem como ameaças a seus interesses. E resistem. A
luta camponesa abriga hoje 23 milhões de pessoas. Do outro lado
há 27 mil fazendeiros. Essa é a disputa, disse João
Pedro Stédile, da coordenação nacional do MST. João
Paulo Rodrigues, um líder jovem do movimento, é taxativo:
Não temos conflito que possa parar a reforma agrária no
Brasil; não tem latifúndio que possa impedir. O advogado
Elmano de Freitas, do MST, diz que as ocupações diminuem quando o
governo assenta famílias sem terra, e não quando há
violência. E constata: os donos de terras não vão
aceitar a reforma agrária. A responsabilidade pela violência
no campo é dos próprios fazendeiros, denuncia o bispo Dom
Tomás Balduino, presidente da Comissão Pastoral da Terra. As
milícias são a semente da convulsão social. Devemos
temer uma convulsão social mais da parte de quem está apegado ao
status quo, pois as ocupações não contribuem
para uma convulsão, mas para manter acesa a chama da luta no campo.
O movimento dos donos de terras é antigo e confronta a modernidade de
que o país e o povo precisam. Foi mobilizando grupos semelhantes de
desordeiros que os fazendeiros e as classes dominantes criaram, na Europa, na
primeira metade do século XX, o braço armado do fascismo e do
nazismo. Os tristemente célebres camisas negras italianos
não eram nada mais do que milícias armadas e uniformizadas que
tinham a tarefa de reprimir trabalhadores inconformados, dissolver seus atos
públicos, atemorizar, espancar, assassinar os que se rebelavam. O filme
1900, do italiano Bernardo Bertolucci, é um registro
artístico primoroso dessa realidade. O grau de desenvolvimento
democrático da sociedade brasileira dificulta que as quadrilhas formadas
pelos latifundiários tenham uniformes, articulação
nacional e comando centralizado. Aqui, elas não alcançaram esse
estágio de organização que precedeu ao fascismo na Europa,
e sua ação é semiclandestina. Isso não diminui seu
caráter ameaçador e os desafios à lei e à
democracia que representam.
Mesmo assim houve um chamamento à articulação nacional. No
Paraná, no dia 16 de julho, o presidente de um autodenominado Sindicato
Nacional dos Produtores Agrícolas (Sinapro), Narciso da Rocha Clara,
convocou os latifundiários a radicalizar pela direita.
Divulgou a contratação, numa última tentativa de
defesa da propriedade, de uma empresa de segurança privada para
proteger latifúndios em São Paulo, Minas Gerais, Paraná,
Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco e
Bahia. Anunciou também uma carreata (manifestação) de
fazendeiros em Curitiba, contra o procedimento do governador do Paraná,
Roberto Requião, nos casos de reintegração de posse de
áreas ocupadas: ali, a PM só faz desocupações
à luz do dia e na presença da imprensa e de membros do
Ministério Público e do Poder Judiciário.
Mas o levantamento da ficha criminal de Rocha Clara pela Secretaria de
Segurança Pública do Paraná expôs a promiscuidade da
articulação direitista com o crime. Ele esteve preso acusado de
estelionato em Carapicuíba, São Paulo, estado do qual só
pode se ausentar com ordem judicial. Além disso, o Sinapro não
tem registro oficial, o que caracteriza crime de falsidade ideológica. A
polícia paranaense pediu a prisão preventiva daquele candidato a
líder direitista, frustrando a articulação em seu
nascedouro.
A reação do Planalto ao confronto expresso na imprensa e na
movimentação de latifundiários e sem terra foi de cautela,
reafirmação do caráter democrático do governo e da
imposição do cumprimento da lei. Não se pode tolerar
a formação de milícias, disse o ministro José
Dirceu. Para ele, é melhor que o MST seja legalizado, e atue
abertamente. O deputado comunista Aldo Rebelo, líder do governo na
Câmara Federal, tem opinião semelhante. O principal problema
do governo, para ele, seria se não existissem interessados
na reforma agrária. Havendo interesse, o governo pode até ter um
critério de seleção para dirigir para os assentamentos:
os que estejam mais aptos e mais adaptados a produzir e fazer com que a reforma
agrária cumpra seu objetivo, que não é apenas social, mas
econômico, dar trabalho e produzir. O Poder Judiciário
seguiu pelo mesmo diapasão. Enquanto o ministro Maurício
Corrêa, presidente do Supremo Tribunal Federal, dizia que a propriedade
deve ser respeitada dentro dos limites previstos pela
Constituição, o procurador geral da República,
Cláudio Fonteles, dizia que qualquer invasão é
crime, mas onde há latifúndio e a terra é usada para
especulação, as ocupações são
legítimas e legais. A Constituição diz isso. O Papa
diz, em documentos, que pesa uma hipoteca social sobre a propriedade,
lembra ele, recusando o tratamento policial e repressivo da questão.
A formação de quadrilhas de jagunços e a
articulação de direita não são novos no Brasil. No
passado, grupos de jagunços formavam a base do poder dos coronéis
do interior, que impunham sua lei, agiam à margem do poder do Estado e
muitas vezes conflagravam suas regiões em guerras privadas. Alguns
ficaram célebres, como Horácio Matos, no Vale do Rio São
Francisco, na Bahia. O poder desses senhores da guerra começou a ser
quebrado depois de 1930, quando a presença do Estado passou a ser mais
efetiva. Mas sua derrota não foi completa, e eles sobrevivem junto com o
latifúndio, que os alimenta e mantém.
Nas jornadas das Ligas Camponesas das décadas de 1950 e 1960, as
quadrilhas de jagunços a serviço do latifúndio voltaram a
agir multiplicando crimes, assassinatos e massacres, dos estados do Nordeste ao
interior de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul.
Quando José Sarney anunciou o Plano Nacional de Reforma Agrária,
em 1985, elas voltaram para o centro do cenário. Contra o movimento pela
democratização da posse da terra, iniciado pela
Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), os
latifundiários organizaram a UDR e proliferaram pelo país os
grupos armados. O campo brasileiro foi regado pelo sangue de sindicalistas
rurais e lutadores pela reforma agrária, assassinados por pistoleiros a
serviço da manutenção da propriedade da terra.
Paralelamente à mobilização armada contra a reforma
agrária, luminares da manutenção do latifúndio,
como Xico Graziano e Raul Jungman (que fizeram parte do núcleo que
definiu a política ruralista do governo de Fernando Henrique Cardoso)
apregoam que a modernização agrária já se completou
no Brasil, e sua expressão são as grandes empresas rurais. Que,
nas condições dessa modernidade conservadora, a
distribuição de terras já não é
necessária nem se justifica, sendo bandeira de um grupo cujo programa,
na verdade, seria a tomada do poder e a passagem ao socialismo. O senador
Arthur Virgílio (PSDB/AM) completa esse argumento dizendo que a
ação do MST e a reforma agrária ameaçam o setor da
economia que mais cresce no Brasil, a agricultura empresarial, podendo
comprometer a balança comercial do país.
Além de ocultar a confissão do fracasso que seria o país
voltar a ser apenas exportador de matérias-primas e produtos
agrícolas (programa inconfessado dos neoliberais), esses argumentos
têm a antiguidade da defesa do latifúndio e da propriedade privada
no país. Eles foram usados, por exemplo, há mais de cem anos
contra aqueles que queriam abolir a escravidão. A defesa da propriedade,
móvel ideológico mais profundo da sociedade burguesa, foi
também o último argumento dos escravocratas mais empedernidos. Na
época da votação da lei do Ventre Livre, em 1871, o
deputado Almeida Pereira dizia que aquele projeto desfraldava velas por
um oceano onde vagava também o navio pirata denominado
Internacional. O jornalista Alencar Araripe, por sua vez, escreveu que o
principal obstáculo para a Abolição dos escravos era
fazê-la sem quebra do direito de propriedade nem abalo na riqueza
pública. Na sessão do Parlamento onde a
abolição foi finalmente aprovada, em 13 de maio de 1888, o
conservador Barão de Cotegipe foi premonitório: Decreta-se
que neste país não há propriedade, que tudo pode ser
destruído por meio de uma lei, sem atenção nem a direitos
adquiridos nem a inconvenientes futuros!, disse ele, alertando:
Daqui a pouco se pedirá a divisão das terras. A
divisão das terras continua sendo o programa não realizado da
democracia brasileira, contra o qual os latifundiários organizaram e
organizam suas quadrilhas armadas.
Publicado originalmente no jornal
A Classe Operária
, n° 227, 28/jul/2003
[*]
Jornalista, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil e
editor do jornal
A Classe Operária
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