Brasil: Latifundiários dispõem de fuzis AR15

Latifundiários brasileiros organizam quadrilhas de jagunços e rosnam contra a reforma agrária

por José Carlos Ruy [*]

AR15. As milícias do latifúndio irromperam, em grande estilo, no horário nobre da televisão, quando o Jornal Nacional pôs no ar, no dia 3 de julho, um grupo de 15 jagunços encapuzados, em um latifúndio no Portal do Paranapanema, em São Paulo. Estavam armados com revólveres calibre 38 e equipamentos sofisticados, de uso privativo das Forças Armadas (portanto, de posse ilegal): sete escopetas calibre 12 cano curto, uma espingarda calibre 22, duas carabinas calibre 38 e duas calibre 22, um fuzil ponto 30, outro 762, e um fuzil AR 15, cujo tiro é capaz de atravessar o bloco do motor de um trator. Aquele que parecia o líder do bando disse que tem ordem de atirar para o alto. Mas, “se entrar, a ordem é baixar o cano”.

Para Valmir Sebastião, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Pontal, aquilo foi apenas uma “amostra”. “Tem muito mais gente e armas mais poderosas”, disse. Ele calcula que há mais de 150 jagunços na região. Em setembro de 2002, disse, lavradores que iam ocupar a fazenda Santa Fé em Sandovalina, São Paulo, foram recebidos à bala. “Segundo a própria polícia, foram mais de 200 tiros, e ninguém foi preso por isso”, acusa.

No mesmo 3 de julho, em Tracunhaém, município pobre da Zona da Mata de Pernambuco, foram mobilizados tratores e tropas da Polícia Militar (PM) para desocupar o engenho Prado. Os primeiros, para derrubar as precárias moradias dos ocupantes e suas roças. A PM, para usar legalmente armas contra os pobres do campo. Dois lavradores presos estavam armados com espingardas “soca-soca”, que eles mesmos produzem artesanalmente, e cujo poder de fogo é menos do que limitado.

Estes são, de certa forma, os dois extremos “armados” da luta no campo, que desvendam dramaticamente o vaticínio de gente como João Bosco Leal, presidente do Movimento Nacional de Produtores (MNP), vinculado à União Democrática Ruralista (UDR) – AR 15 de um lado, “soca-soca” de outro.

Naqueles dias, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu uma delegação do MST. Com o espírito de camaradagem entre velhos conhecidos de anos de luta, Lula pôs na cabeça o boné do MST, dando a senha para o coro coordenado contra a reforma agrária e qualquer ameaça ao latifúndio, ao domínio das oligarquias e sua primazia na relação com os governos. Uma reação que recusa – com veemência – o tratamento democrático e igualitário dedicado a trabalhadores rurais e a camponeses.

“O MST é uma organização criminosa que organiza saques e invasões” – foi a consígnia de todas as mais importantes lideranças latifundiárias. O senador Jorge Bornhausen, presidente do PFL, e Luis Antonio Nabhan Garcia, presidente UDR, puxaram o jogral; foram seguidos pelo senador tucano Arthur Virgílio, do PSDB/AM (líder do governo de Fernando Henrique Cardoso no Senado); Antonio Ernesto de Salvo, presidente do Conselho Nacional da Agricultura (CNA); João Bosco Leal, do MNP. Paradoxalmente, esses mesmos dirigentes justificam os fazendeiros que organizam quadrilhas armadas. Nabhan, por exemplo, diz que a UDR não recomenda aos fazendeiros que se armem. “Mas não tiro a razão de quem o faz, pois é desespero”.

As lideranças do MST acusam: o alvo do clima de violência e chantagem criado pelos latifundiários são o governo Lula e aquilo que eles entendem como ameaças a seus interesses. E resistem. “A luta camponesa abriga hoje 23 milhões de pessoas. Do outro lado há 27 mil fazendeiros. Essa é a disputa”, disse João Pedro Stédile, da coordenação nacional do MST. João Paulo Rodrigues, um líder jovem do movimento, é taxativo: “Não temos conflito que possa parar a reforma agrária no Brasil; não tem latifúndio que possa impedir”. O advogado Elmano de Freitas, do MST, diz que as ocupações diminuem quando o governo assenta famílias sem terra, e não quando há violência. E constata: os donos de terras “não vão aceitar a reforma agrária”. A responsabilidade pela violência no campo é dos próprios fazendeiros, denuncia o bispo Dom Tomás Balduino, presidente da Comissão Pastoral da Terra. As milícias “são a semente da convulsão social. Devemos temer uma convulsão social mais da parte de quem está apegado ao status quo”, pois as ocupações “não contribuem para uma convulsão, mas para manter acesa a chama da luta no campo”.

O movimento dos donos de terras é antigo e confronta a modernidade de que o país e o povo precisam. Foi mobilizando grupos semelhantes de desordeiros que os fazendeiros e as classes dominantes criaram, na Europa, na primeira metade do século XX, o braço armado do fascismo e do nazismo. Os tristemente célebres “camisas negras” italianos não eram nada mais do que milícias armadas e uniformizadas que tinham a tarefa de reprimir trabalhadores inconformados, dissolver seus atos públicos, atemorizar, espancar, assassinar os que se rebelavam. O filme “1900”, do italiano Bernardo Bertolucci, é um registro artístico primoroso dessa realidade. O grau de desenvolvimento democrático da sociedade brasileira dificulta que as quadrilhas formadas pelos latifundiários tenham uniformes, articulação nacional e comando centralizado. Aqui, elas não alcançaram esse estágio de organização que precedeu ao fascismo na Europa, e sua ação é semiclandestina. Isso não diminui seu caráter ameaçador e os desafios à lei e à democracia que representam.

Mesmo assim houve um chamamento à articulação nacional. No Paraná, no dia 16 de julho, o presidente de um autodenominado Sindicato Nacional dos Produtores Agrícolas (Sinapro), Narciso da Rocha Clara, convocou os latifundiários a “radicalizar pela direita”. Divulgou a contratação, numa “última tentativa de defesa da propriedade”, de uma empresa de segurança privada para proteger latifúndios em São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco e Bahia. Anunciou também uma carreata (manifestação) de fazendeiros em Curitiba, contra o procedimento do governador do Paraná, Roberto Requião, nos casos de reintegração de posse de áreas ocupadas: ali, a PM só faz desocupações à luz do dia e na presença da imprensa e de membros do Ministério Público e do Poder Judiciário.

Mas o levantamento da ficha criminal de Rocha Clara pela Secretaria de Segurança Pública do Paraná expôs a promiscuidade da articulação direitista com o crime. Ele esteve preso acusado de estelionato em Carapicuíba, São Paulo, estado do qual só pode se ausentar com ordem judicial. Além disso, o Sinapro não tem registro oficial, o que caracteriza crime de falsidade ideológica. A polícia paranaense pediu a prisão preventiva daquele candidato a líder direitista, frustrando a articulação em seu nascedouro.

A reação do Planalto ao confronto expresso na imprensa e na movimentação de latifundiários e sem terra foi de cautela, reafirmação do caráter democrático do governo e da imposição do cumprimento da lei. “Não se pode tolerar a formação de milícias”, disse o ministro José Dirceu. Para ele, “é melhor que o MST seja legalizado”, e atue abertamente. O deputado comunista Aldo Rebelo, líder do governo na Câmara Federal, tem opinião semelhante. “O principal problema do governo”, para ele, “seria se não existissem interessados na reforma agrária. Havendo interesse, o governo pode até ter um critério de seleção para dirigir para os assentamentos: os que estejam mais aptos e mais adaptados a produzir e fazer com que a reforma agrária cumpra seu objetivo, que não é apenas social, mas econômico, dar trabalho e produzir”. O Poder Judiciário seguiu pelo mesmo diapasão. Enquanto o ministro Maurício Corrêa, presidente do Supremo Tribunal Federal, dizia que a propriedade deve ser respeitada dentro “dos limites previstos pela Constituição”, o procurador geral da República, Cláudio Fonteles, dizia que qualquer “invasão” é crime, mas onde há latifúndio e a terra é usada para especulação, as ocupações são legítimas e legais. “A Constituição diz isso. O Papa diz, em documentos, que pesa uma hipoteca social” sobre a propriedade, lembra ele, recusando o tratamento policial e repressivo da questão.

A formação de quadrilhas de jagunços e a articulação de direita não são novos no Brasil. No passado, grupos de jagunços formavam a base do poder dos coronéis do interior, que impunham sua lei, agiam à margem do poder do Estado e muitas vezes conflagravam suas regiões em guerras privadas. Alguns ficaram célebres, como Horácio Matos, no Vale do Rio São Francisco, na Bahia. O poder desses senhores da guerra começou a ser quebrado depois de 1930, quando a presença do Estado passou a ser mais efetiva. Mas sua derrota não foi completa, e eles sobrevivem junto com o latifúndio, que os alimenta e mantém.

Nas jornadas das Ligas Camponesas das décadas de 1950 e 1960, as quadrilhas de jagunços a serviço do latifúndio voltaram a agir multiplicando crimes, assassinatos e massacres, dos estados do Nordeste ao interior de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul.

Quando José Sarney anunciou o Plano Nacional de Reforma Agrária, em 1985, elas voltaram para o centro do cenário. Contra o movimento pela democratização da posse da terra, iniciado pela Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), os latifundiários organizaram a UDR e proliferaram pelo país os grupos armados. O campo brasileiro foi regado pelo sangue de sindicalistas rurais e lutadores pela reforma agrária, assassinados por pistoleiros a serviço da manutenção da propriedade da terra.

Paralelamente à mobilização armada contra a reforma agrária, luminares da manutenção do latifúndio, como Xico Graziano e Raul Jungman (que fizeram parte do núcleo que definiu a política ruralista do governo de Fernando Henrique Cardoso) apregoam que a modernização agrária já se completou no Brasil, e sua expressão são as grandes empresas rurais. Que, nas condições dessa modernidade conservadora, a distribuição de terras já não é necessária nem se justifica, sendo bandeira de um grupo cujo programa, na verdade, seria a tomada do poder e a passagem ao socialismo. O senador Arthur Virgílio (PSDB/AM) completa esse argumento dizendo que a ação do MST e a reforma agrária ameaçam o setor da economia que mais cresce no Brasil, a agricultura empresarial, podendo comprometer a balança comercial do país.

Além de ocultar a confissão do fracasso que seria o país voltar a ser apenas exportador de matérias-primas e produtos agrícolas (programa inconfessado dos neoliberais), esses argumentos têm a antiguidade da defesa do latifúndio e da propriedade privada no país. Eles foram usados, por exemplo, há mais de cem anos contra aqueles que queriam abolir a escravidão. A defesa da propriedade, móvel ideológico mais profundo da sociedade burguesa, foi também o último argumento dos escravocratas mais empedernidos. Na época da votação da lei do Ventre Livre, em 1871, o deputado Almeida Pereira dizia que aquele projeto desfraldava “velas por um oceano onde vagava também o navio pirata denominado Internacional”. O jornalista Alencar Araripe, por sua vez, escreveu que o principal obstáculo para a Abolição dos escravos era fazê-la “sem quebra do direito de propriedade nem abalo na riqueza pública”. Na sessão do Parlamento onde a abolição foi finalmente aprovada, em 13 de maio de 1888, o conservador Barão de Cotegipe foi premonitório: “Decreta-se que neste país não há propriedade, que tudo pode ser destruído por meio de uma lei, sem atenção nem a direitos adquiridos nem a inconvenientes futuros!”, disse ele, alertando: “Daqui a pouco se pedirá a divisão das terras”. A divisão das terras continua sendo o programa não realizado da democracia brasileira, contra o qual os latifundiários organizaram e organizam suas quadrilhas armadas.

Publicado originalmente no jornal A Classe Operária , n° 227, 28/jul/2003

[*] Jornalista, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil e editor do jornal A Classe Operária


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