por Samuel Pinheiro Guimarães
[*]
As multinacionais foram apresentadas ao Brasil como agentes do progresso e da
eficiência. O discurso convenceu parte da sociedade, que apoiou as
privatizações. Mas o que dizer dos escândalos que se
sucedem nos EUA com empresas como a WorldCom, que nos fazem lembrar o velho
gangsterismo?
A actual estratégia económica brasileira tem tido como seu vector
central a atracção de capital estrangeiro, quer financeiro, quer
especulativo, quer de investimento directo.
Essa política de atracção de capitais implementou-se
através de um programa de privatizações generoso para com
o capital estrangeiro; pela equalização da empresa estrangeira
à empresa brasileira; pela eliminação de reservas de
mercado; pela liberalização da remessa de lucros, juros,
royalties para o exterior; pela eliminação de requisitos de
actuação, tais como índices de
nacionalização, associação ao capital brasileiro,
metas de exportação; pela redução de tarifas de
importação para componentes; pela aprovação de
legislação favorável aos detentores de patentes; pela
adopção, até 1999, de um câmbio quase-fixo.
As premissas que se encontravam por trás dessas decisões
estratégicas eram de que o investimento directo estrangeiro
modernizaria a economia brasileira; ampliaria a capacidade
instalada; geraria novos e numerosos empregos; ampliaria a
competição no mercado interno; transferiria e geraria tecnologia;
contribuiria para o controlo da inflação; transformaria o Brasil
em uma plataforma exportadora e, ademais, de que haveria abundância
duradoura de capital no mundo.
O ingresso da poupança externa permitiria elevar a taxa de investimento
da economia sem ter o governo de executar políticas internas de aumento
de poupança privada e pública, por vezes de difícil
execução, e que podem encontrar sérios obstáculos
políticos.
ABDICAÇÃO DO ESTADO
Por outro lado, a política de atracção de capitais
estrangeiros julgou necessária a desregulamentação da
economia na área interna e externa, que corresponderia, na
prática, a uma abdicação do Estado de sua
competência para executar políticas de desenvolvimento. Assim, o
destino do desenvolvimento económico brasileiro e a
remoção de estrangulamentos internos à
integração da economia e de obstáculos externos à
expansão das exportações passaram a depender das
megaempresas multinacionais e do livre jogo das forças de
mercado. O destino da sociedade brasileira passou a depender da disponibilidade
mundial de capital e das decisões estratégicas globais dessas
megaempresas, cuja preocupação com o progresso da sociedade
brasileira ou de qualquer outra sociedade periférica é uma
preocupação marginal no contexto de suas estratégias
globais, como hoje bem demonstra a catástrofe argentina.
Essa estratégia teve resultados inesperados para seus formuladores e
executores. Os investimentos estrangeiros dirigiram-se principalmente à
aquisição de empresas estatais e de empresas privadas, com
pequeno efeito sobre o aumento da capacidade instalada. A
modernização da produção não se
traduziu em maior capacidade competitiva dos produtos brasileiros em
nível internacional, pois as exportações brasileiras de
produtos de maior valor agregado não cresceram, assim como não
cresceram as nossas exportações de produtos dos chamados sectores
dinâmicos da economia mundial.
Não houve aumento significativo de geração de tecnologia
no Brasil e, pelo contrário, vários centros de pesquisa, tanto de
empresas estatais privatizadas como de empresas privadas desnacionalizadas,
vieram a ser desactivados pelos novos proprietários. A parcela mais
significativa do capital estrangeiro foi investida em empresas de
serviços, tais como telefonia, bancos e supermercados, que foram
privatizadas ou desnacionalizadas e que se tornaram por vezes grandes
importadoras, sem gerar exportações. O ingresso das megaempresas
aumentou a oligopolização dos mercados e, portanto, a
possibilidade de praticar preços abusivos. A contribuição
das empresas estrangeiras para o controle da inflação não
se verificou como esperava o governo, e até pelo contrário,
devido ao aumento significativo de tarifas de empresas privatizadas na
área de serviços como telefonia, energia eléctrica,
rodovias etc.
A contribuição do capital estrangeiro para a
construção da infra-estrutura brasileira tem sido insuficiente.
De um lado, a crise de energia (cujos graves efeitos ainda não se
manifestaram plenamente e cujas causas ainda não foram inteiramente
superadas) dispensa comentários. Mas a ela se juntam hoje as
dificuldades das empresas de telefonia e das ferrovias que solicitam apoio
financeiro estatal de toda ordem. O seguro apagão é
um caso clamoroso, em que os consumidores brasileiros pagam antecipadamente
para que não ocorra um apagão, arcando com as
consequências do desgoverno energético.
A crise actual do modelo económico brasileiro resulta de que suas
premissas não se verificaram, em especial duas. A primeira, que os
investimentos directos estrangeiros eventualmente gerariam
exportações e um volume de divisas capaz de compensar uma parte
substancial das despesas com os itens de transações correntes.
Caso esta premissa não se verificasse, a segunda e implícita
premissa era de que haveria uma massa de capital disponível no mercado
mundial sempre interessada em refinanciar o Brasil, desde que os fundamentos
fiscais internos fossem sólidos. Em resumo, acreditavam e continuam
acreditando os autores dessa estratégia que desde que exista um
superavit primário capaz de fazer face a boa parte do serviço da
dívida do Estado, quase tudo se resolve.
Assim, a política económica poderia se limitar a gerar
superávites primários custasse o que custasse, criando novos
tributos e cortando despesas. Necessidades adicionais de financiamento seriam
atendidas colocando títulos públicos ainda que a taxas
astronómicas de juros. Mas, este superavit primário se verifica
em reais e não em dólares, e é útil para servir a
dívida em reais, enquanto que o serviço dos capitais externos, as
amortizações e as importações devem ser pagos em
dólares.
A ESTAGNAÇÃO
A política para alcançar um superavit primário substancial
levou à estagnação da economia, ao desemprego, à
violência, à marginalização, à precariedade
da infra-estrutura física (estradas, saneamento, energia etc) e social
(escolas, hospitais etc). Portanto, tornaram a economia menos atraente para os
investimentos directos e até mesmo para os capitais especulativos. A
incerteza quanto à capacidade de saldar compromissos na área
externa, devido à demanda crescente por dólares e insuficiente
oferta, leva a flutuações cambiais significativas, mas sempre com
viés de alta e, portanto, à incerteza para os investidores
estrangeiros quanto à conversão da sua remuneração
em reais para fim de remessa.
A incerteza na área interna quanto à capacidade do governo de
honrar os compromissos com a dívida interna leva à necessidade de
oferecer juros elevados e prazos curtos para poder rolar a
dívida, isto é, colocar novos títulos. As taxas elevadas
desestimulam os investimentos produtivos e provocam a estagnação
da economia. Esta é a armadilha fiscal/cambial/social em que o governo
colocou a sociedade brasileira para criar os sólidos
fundamentos da economia, hoje simplesmente ignorados pelas agências
de risco e os megabancos.
Agora, surge um novo aspecto de interesse para a questão do investimento
directo. O capital estrangeiro directo, em especial as megaempresas
multinacionais, foram apresentados à sociedade brasileira como agentes
da modernidade, do progresso, da competição, da eficiência
e, ademais,
last but not least
, como diriam os anglófilos, de seriedade e honestidade empresarial.
Seus executores seriam uma espécie de semideuses modernos diante de seus
congéneres tupiniquins. Essa competência profissional, essa
dedicação à empresa, essa honestidade de comportamento
é que explicariam também a eficiência daquelas megaempresas
e sua superioridade quando comparadas às empresas nativas.
EUA: ESCÂNDALOS EM SÉRIE
Os escândalos se sucedem nos Estados Unidos: Enron, World Com, Xerox,
Adelphia, Kmart, Lucent, Tyco, Vivendi etc. etc. etc. Sua característica
central é o gangsterismo sofisticado dos executivos que manipularam a
contabilidade, inflaram lucros, promoveram a alta dos preços das
acções, receberam acções, venderam essas
acções e enriqueceram enquanto suas supostas
eficientíssimas empresas, um exemplo para as
empresas e empresários brasileiros, iam à falência, assim
como se evaporavam as poupanças dos pequenos investidores e os empregos
dos trabalhadores, eternas vítimas.
Essas operações contaram com a conivência de gigantescas
empresas de auditoria que, aliás, prestavam consultoria àquelas
mesmas empresas e a seus executivos e de enormes corretoras de valores, como a
famosa Merryl Lynch. É de se esperar que a contabilidade das filiais
dessas empresas estrangeiras no Brasil não utilize as mesmas
práticas de maquilhagem contabilística, com o auxílio
daquelas mesmas firmas de auditoria que queimaram documentos para dificultar
investigações e que a Comissão de Valores
Mobiliários (CVM) seja mais eficiente do que a SEC (Security and
Exchange Commission) diante das mágicas de contabilidade e de auditoria
das filiais dessas empresas no Brasil ...
CORRUPÇÃO SISTÉMICA
Esses escândalos parecem cada vez mais revelar uma
corrupção sistémica de que participam executivos que se
movem das megaempresas para a Administração, da
Administração para o FMI /BIRD e que levou a um recorde de 368
concordatas em 2001 e 2002 que atingem centenas de bilhões de
dólares. E académicos e funcionários de agências
internacionais, cuja competência o Prémio Nobel Stiglitz considera
reduzida, volta e meia ousam propor a administração directa, por
esse tipo de especialistas estrangeiros honestos e eficientes, da
economia de países periféricos.
Todavia, foram esses mesmos peritos, académicos, executivos que levaram
às crises ao propor e insistir em políticas
desastrosas nos países da periferia. Hoje, acham que os economistas e
dirigentes locais não teriam a elevada competência e a honestidade
necessária para conduzir a política económica de seus
países...
A ONG Transparência Internacional poderia bem se ocupar de reavaliar os
seus índices e classificação de países para que
reflictam a megacorrupção que ocorre nos Estados Unidos, com
efeitos muito mais severos para a economia mundial, e por consequência
para as economias periféricas, ao invés de enfatizar a
ocorrência de corrupção nos países
periféricos, cujos dirigentes, aliás, aceitam propinas muitas
vezes dessas mesmas megaempresas envolvidas hoje em escândalos de
megacorrupção.
[*]
Embaixador, ex-chefe do Departamento Económico do
Ministério das Relações Exteriores do Brasil (Itamaraty) e ex-director do
Instituto de Pesquisas em Relações
Internacionais (IPRI) do Itamaraty. O original deste artigo encontra-se em
CartaMaior
.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info