O FMI e o Brasil: Quem salva quem
O que está em jogo nas eleições para a Presidência
não é se o Brasil vai conquistar as boas graças das
finanças globais, mas se o Brasil vai continuar pelos próximos
quatro anos a depender das boas graças das referidas finanças.
Com a liberdade de que os gestores da riqueza financeira vem gozando de retirar
seus capitais do país sempre que o desejam, o crescimento da economia
real fica totalmente condicionado às idas e vindas dos capitais
globalizados. A saída dos capitais desvaloriza o real, o que detona
imediatamente aumentos das tarifas dos serviços públicos
privatizados e dos preços dos derivados do petróleo. Esses
aumentos pressionam os índices de preços, obrigando o Banco
Central a cortar o crédito e a elevar os juros sobre a dívida
pública, para defender suas metas de inflação.
Com o aumento da despesa financeira, o governo federal é obrigado a
cortar o gasto público, para preservar o superávit
primário. As conseqüências disto são a
contração da demanda efetiva, queda das vendas no varejo,
inchaço insuportável dos estoques, corte da
produção, demissões. A economia mergulha em
recessão, que se agrava com o aumento do desemprego,
redução das rendas familiares, dos gastos de consumo e das
inversões etc.
É o que estamos assistindo nos últimos três meses, mas
já nos vem acontecendo intermitentemente desde 1995. As candidaturas de
oposição, em especial a de Lula, têm como razão de
ser mudar esse modelo, pôr um fim ao condicionamento da economia real aos
fluxos sempre especulativos dos capitais globalizados, para fora e para dentro
do país.
Quando se tornou evidente que uma destas candidaturas poderia se tornar
vitoriosa nas eleições, os capitais globalizados decidiram deixar
o Brasil, com os efeitos esperados sobre a conjuntura da economia real. Este
movimento foi interpretado pelo governo e pela mídia que o apóia
como um prenúncio do que acontecerá ao Brasil se ousar eleger
alguém não comprometido a conquistar a qualquer custo as boas
graças daqueles capitais.
Trata-se duma falácia, pois foi uma decisão política que
deu aos capitais globalizados este poder olímpico de estrangular
financeiramente o país sempre que o desejem. Decisão esta que
pode ser revogada por outra, que devolva ao governo eleito pelos brasileiros o
poder de controlar a movimentação dos capitais e assim de
defender a economia real do veto destes últimos.
Agora os capitais globalizados elegeram o FMI como o seu salvador, já
que ele pode em princípio fornecer ao governo brasileiro dólares
que seriam usados para repor os que estão fugindo. Em 1998/99, um acordo
dessa espécie não impediu que a fuga de capitais continuasse
até que o Banco Central desistisse de defender o valor externo da moeda.
Em 2002, a assistência do FMI não teria mais efetividade do que
então. Mas ela serviria para esterilizar as candidaturas de
oposição, obrigadas a se comprometer solenemente com uma
política econômica que deveriam substituir.
Um acordo pré- eleitoral do Brasil com o FMI em nada garantiria a
economia real, mas igualaria todas as candidaturas perante a questão
crucial das relações de poder entre o eleitorado brasileiro e os
que representam e manipulam a riqueza financeira globalizada.
Há cerca de um mês Soros, o grande especulador, disse com todas
as letras que ou elegemos Serra ou ele e seus colegas transformarão o
Brasil em caos. É uma ameaça que devemos repelir, mas que, com as
regras vigentes hoje, é real. A única resposta séria e
efetiva, à ameaça de Soros, que explicitou o que o conjunto dos
capitais globalizados estão fazendo, é propor um pacto
pré-eleitoral entre todas candidaturas à Presidência de
restauração da soberania econômica do Brasil, pelo qual
qualquer um que for eleito se compromete a regular a movimentação
dos capitais sobre nossas fronteiras de modo que a economia real não
fique mais a mercê de fugas dos capitais globalizados.
Originalmente o FMI foi concebido como representante dos governos dos
países-membros, interessado em ajudar países ameaçados de
insolvência por choques externos adversos. Hoje ele representa sobretudo
o governo dos Estados Unidos e através dele os capitais globalizados.
Ele empresta divisas a países que solicitam sua assistência em
troca de compromisso com metas de política fiscal e monetária,
que visam garantir sobretudo os direitos dos credores externos destes
países.
Em geral, os países "assistidos" já estão em
recessão e as políticas impostas pelo FMI agravam a
recessão, inviabilizando por isso as metas acordadas, o que acarreta a
suspensão dos empréstimos do Fundo e o início de nova
negociação. Assim, a submissão dos países
importadores de capitais ao FMI torna-se crônica, como a
experiência brasileira dos últimos anos comprova. As
exigências draconianas do FMI à Argentina indicam um agravamento
do desvio de função que vem tornando o Fundo o algoz de seus
próprios membros mais vulneráveis.
A interferência do mercado financeiro no processo eleitoral tem sido
apresentado como fatal, já que ela ocorre na maioria dos países.
Mas isso não é verdade. Nem todos os países se submetem
aos desejos dos capitais globalizados. Países como China, Índia e
Malásia não se sujeitam a fugas de capitais e se mostram
invulneráveis às crises financeiras que varrem outros
países asiáticos, latino-americanos e do oriente europeu. Nem por
isso aqueles países foram excluídos dos mercados mundiais de
mercadorias e de capitais. O seu crescimento intenso e ininterrupto funciona
como ímã que atrai investimentos diretos, apesar dos controles a
que são submetidos.
O Brasil tem portanto ao menos duas opções: persistir no modelo
atual, hoje rejeitado pela maioria dos brasileiros, ou forjar um outro, que nos
proteja das crises financeiras, garantindo crescimento econômico
estável com vulnerabilidade externa decrescente.
Para que os eleitores possam decidir qual opção preferem é
preciso que as candidaturas de oposição não cedam à
chantagem e não abram mão de sua razão de ser. Precisamos
salvar nossos direitos democráticos das imposições do FMI,
cuja assistência é deletéria econômica e
politicamente.
_______________
[*]
Economista brasileiro, ex-secretário municipal do Planejamento de
São Paulo (na gestão de Luiza Erundina), professor titular da
Faculdade de Economia e Administração da Universidade de
São Paulo.
O original deste artigo encontra-se no jornal
Valor Econômico
, nº 555, de 22/7/2002
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
|