A concentração do proletariado nas grandes cidades
por Gabriel Landi Fazzio
"[A revolução industrial] desenvolveu por toda a parte o
proletariado na mesma medida em que desenvolveu a burguesia. Na
proporção em que os burgueses se tornavam mais ricos, tornavam-se
os proletários mais numerosos. Uma vez que os proletários somente
por meio do capital podem ter emprego e o capital só se multiplica
quando emprega trabalho, a multiplicação do proletariado
avança precisamente ao mesmo passo que a multiplicação do
capital. Ao mesmo tempo, concentra tanto os burgueses como os
proletários em grandes cidades, nas quais se torna mais vantajoso
explorar a indústria, e com esta concentração de grandes
massas num mesmo lugar dá ao proletariado a consciência da sua
força." Engels, em "Princípios Básicos do
Comunismo".
Nos anos 90, uma onda ideológica burguesa avançou audaciosamente
mesmo sobre as organizações mais combativas do movimento
proletário e camponês, erguendo como suas palavras de ordem: chega
de História; morte à luta de classes; longa vida aos "novos
sujeitos" históricos da sociedade-cidadã! Segundo o mantra
dos especuladores financeiros e dos monopólios tecnológicos, em
breve todos nós viveremos em um mundo em que o trabalho humano se
tornará obsoleto, sendo realizado por completo pelas máquinas.
Há inclusive quem, na "esquerda", se deixe enganar por esses
contos de carochinha burgueses.
O Partido Comunista em particular e os marxistas em geral travam, ainda hoje,
uma dura luta ideológica contra tais mistificações. Toda
essa fraseologia começa aos poucos a mostrar seus limites
práticos, como resultado da crise capitalista mundial declarada em 2008
e a consequente intensificação das lutas de classes. Ainda
há, no entanto, um longo caminho a percorrer para a
organização de uma consciência e de uma prática
revolucionárias da classe trabalhadora.
Sabemos que o coro orgulhoso das classes dominantes está embalado por
uma harmonia de mentiras. No entanto, também sabemos que nenhuma
concepção de mundo pode se generalizar se não contar com
ao menos alguma base material. A própria subordinação
material da classe trabalhadora à classe burguesa é um desses
elementos de base, evidentemente mas, como em toda ideologia, é o
elemento obsceno e velado.
Nesse sentido, a tese do "fim da centralidade do trabalho" para a
economia tem seu alicerce em um conjunto de verdades parciais sobre a mais
recente reorganização produtiva do capitalismo, verdades estas
que são sempre apresentadas de forma desordenada e desconexa.
Uma das teses marxistas que sofre mais ataques, inclusive dentro da esquerda,
é a tese de que a produção capitalista, em seu processo de
socialização da produção, tende a concentrar cada
vez mais o proletariado. Valeria a pena nos debruçarmos sobre esta
afirmação, da qual podemos desdobrar conclusões
importantes.
Em primeiro lugar, esses ataques teóricos tentam pintar os comunistas de
algo como uns "oportunistas caducos". O raciocínio é
mais ou menos o seguinte: a "velha esquerda" existia em uma
época que o capitalismo concentrava os trabalhadores nas grandes linhas
de montagem, facilitando a organização do proletariado. Os
comunistas teriam se aproveitado disso para difundir suas ideias. Como essa
época está superada, por conta da descentralização
global da produção fabril, então essa
"conveniência" não mais existe, e seria apenas por algum
tipo de apego às tradições que os comunistas ainda dariam
tanta importância para a classe trabalhadora
Mas, na verdade, quem raciocinasse assim confundiria duas questões
distintas. Uma coisa que o marxismo há muito tempo constatou é
que o proletariado ocupa uma posição estratégica na
sociedade capitalista por conta da centralidade de seu trabalho no processo
produtivo (além da própria centralidade da divisão social
do trabalho na vida social humana). Outra coisa diferente é a
conveniência organizativa de sua concentração em grandes
fábricas. De fato, ambas as coisas se relacionam, além da
semelhança nas palavras "concentração" e
"centralidade". Mas a concentração não é,
de modo algum, a questão determinante: o proletariado da época
das manufaturas, por exemplo, deu mais exemplos de explosões
insurrecionais do que o proletariado do período fordista, ainda que
aquele primeiro contasse com organizações menos
"profissionais" do que os contemporâneos sindicatos pelegos
[amarelos].
Esse tema sobre o período chamado pós-fordista é complexo,
e não podemos esgotá-lo aqui. A questão, contudo, é
que os comunistas não escolhem desenvolver seu trabalho político
prioritariamente entre as camadas proletárias apenas porque sua
concentração facilite o trabalho de organização.
São os oportunistas que, como sempre (alheios ao método
revolucionário, que demanda uma rigorosa análise da realidade
para sua transformação radical) e pouco firmes em matéria
de princípios), debandam do mundo do trabalho rumo à apologia de
cada nova forma espontânea de luta que surja, cada vez que uma nova
dificuldade surge diante da tarefa de organizar politicamente e de modo
independente a classe trabalhadora.
Lenin nos oferece uma brilhante síntese, a esse respeito, em sua
brochura ""Quem são os 'Amigos do Povo' e como eles combatem
os social-democratas".
[1]
Levando em conta esta exposição é preciso, em segundo
lugar, estabelecer uma autocrítica de uma compreensão limitada
que se enraizou na tradição comunista; uma compreensão que
também foi amplamente difundida pela social-democracia ao longo do
último século: a compreensão de que a tese da crescente
concentração do proletariado está ligada fundamentalmente
ao local imediato do trabalho. Ao longo do último século, o
advento do fordismo (no curso do desenvolvimento do chamado estágio
monopolista do capitalismo), associado a uma elevada taxa de adensamento
fabril, permitiu que muitos intelectuais e militantes da classe trabalhadora
reduzissem a tese da crescente concentração a uma caricatura, a
tese da crescente concentração no chão de fábrica.
As últimas décadas reverteram nitidamente tal tendência,
por inúmeros fatores, e são parte da base material em cima da
quase se ergue a crítica à tese marxista mal-apreendida.
Na verdade, não seria o caso de rever a validade de tal tese, e sim de
apreendê-la corretamente. Por um lado porque mesmo nesse aspecto sua
validade se confirma, de modo totalmente novo: terá havido momento na
história onde a indústria estivesse mais concentrada em meia
dúzia de países, reduzindo os maiores contingentes do operariado,
o proletariado fabril, a uma meia dúzia de nacionalidades aparentes? O
caso da China é emblemático a esse respeito, com um contingente
de mais de 200 milhões de operários concentrado no país!
Por outro lado, como lidar com tal tese nos países que, em franca
desindustrialização, veem crescer seus setores de serviços
ou, mesmo nos setores industriais, percebem uma crescente
descentralização e pulverização do proletariado
(fabril ou não) ao longo do território geográfico?
Nesse último caso, precisamos recobrar a compreensão exposta
já em Marx e Engels, como mencionado já na abertura do texto: a
concentração do proletariado nas grandes cidades. Se pegarmos
apenas o exemplo brasileiro, teremos elementos suficientes para essa
constatação: em 1940, 30% da população do
país habitava as cidades, proporção que atingiu 55,9% em
1970, e 82,2% nos anos 2000! Segundo a ONU, no ano de 2005 o Brasil tinha uma
taxa de urbanização de 84,2% e, de acordo com algumas
projeções, até 2050, a porcentagem da
população brasileira que habitará centros urbanos deve
pular para 93,6%.
Atualmente, mais de metade da população brasileira vive em apenas
5% dos municípios. Com 21 milhões de habitantes, a região
metropolitana de São Paulo reúne 10% da população
nacional. No mundo todo essa é a tendência, em ritmos diversos
em 2014, segundo a ONU, 54% da população mundial passou a
viver em cidades. É desnecessário dizer a que classe pertence a
ampla maioria dessa população urbana: ainda que essas grandes
cidades possuam uma gigantesca "camada média" de pequenos
proprietários, podemos tomar o exemplo da cidade de São Paulo,
que conta com um contingente de, pelo menos, mais de 60% de assalariados.
[2]
De que modo poderíamos falar tanto em "êxodo rural" ou
em "urbanização" e, ao mesmo tempo, querer refutar a
tese da crescente concentração do proletariado? Não
podemos nos confundir sobre o significado disso tudo. Não é que a
luta de classes tenha sido substituída por uma "luta pelo direito
à cidade" ou coisa que o valha. Mas é nosso papel,
justamente, as formas que a luta de classes assume ao longo do espaço
urbano e buscar formas de melhorar nossa organização,
agitação e propaganda levando em conta as
transformações do processo produtivo e da
composição do proletariado brasileiro, diante do fenômeno
da crescente desindustrialização.
Se é verdade que esse processo de concentração ocorre na
medida em que cada vez mais o proletariado se concentra nas grandes cidades;
essa mesma dinâmica também é verdade no que diz respeito
à dinâmica centro-periferia nestas cidades.
O chamado
Centro Expandido" de São Paulo
é um ótimo exemplo. Segundo o censo de 2010, 17% dos habitantes
de São Paulo (2.102.851 pessoas em 2012) residem no chamado Centro
Expandido. Por outro lado, a região concentra o absurdo índice de
64,1% dos postos de trabalho da cidade! Significa que mesmo se todos habitantes
da região trabalharem efetivamente nela, ainda haverá 47,1% dos
postos de trabalho de São Paulo concentrados ali, requerendo para seu
preenchimento o deslocamento diário de imensas massas populacionais,
vindas de todos os cantos da cidade senão mesmo de cidades no
entorno, como Franco da Rocha, Francisco Morato, Mairiporã,
Itaquaquecetuba, Arujá, Poá, Santana do Parnaíba, Osasco,
Cotia, Barueri, etc.
É verdade que a concentração em uma mesma fábrica
facilitava em boa medida o trabalho de organização da classe
proletária. Por outro lado, será à toa que as
organizações sindicais desse período fordista tivessem
traços tão fortes de corporativismo, de estreiteza profissional?
Trabalhar pela organização de um proletariado que, apesar de
estar concentrado imensamente em alguns poucos quilômetros quadrados,
apresenta uma diversidade imensa em termos profissionais, de quem são
seus empregadores, de suas origens geográficas, etc
isso coloca
diante de nós imensos desafios e, ao mesmo tempo, um grande
potencial político de que essa organização, caso
bem-sucedida, não se limite ao sindicalismo economicista, à luta
imediata e adquira contornos de uma luta de classes cada vez mais
política.
Na ausência de "locais de trabalho" diretos que concentrem
vastas quantidades de trabalhadores, não seria o caso de concebermos a
própria cidade, e notadamente seu centro, como um amplo "local de
trabalho" indireto, onde se concentra toda sorte de assalariados?
"Para a porta das fábricas!", foi o imperativo que guiou a
agitação comunista ao longo de quase um século. "Para
as periferias onde moram as massas trabalhadoras!", dizem hoje grandes
parcelas da esquerda, buscando oferecer uma alternativa aos impasses da
desindustrialização.
Não que esse novo mote esteja equivocado. Mas será que nossa
tentativa de deitar raízes nessa massa proletária será
mais eficiente de que modo? Se dividimos nossas forças em dezenas de
frentes, baseando todos os nossos esforços em pequenos grupos esparsos
em dezenas de bairros, ou se concentramos parte significativa de nossas
forças em uma atuação nas regiões urbanas centrais,
pela qual transitam diariamente imensas parcelas dos trabalhadores e
trabalhadoras que moram nas periferias? Uma tal atuação, em
conjunto com as iniciativas já existentes na periferia, poderia oferecer
maiores resultados do que nossa contínua pulverização.
Queremos uma revolução social, que ponha fim à
opressão e à exploração, e que reorganize a
sociedade não em torno do lucro privado de uns poucos, mas em torno das
necessidades efetivas da grande maioria do povo. Se verdadeiramente queremos
isso, é impossível renunciar ao trabalho político nesse
setor estratégico do povo, a classe proletária. Apenas soldando o
movimento comunista revolucionário à classe trabalhadora,
através de um longo e paciente trabalho de agitação,
propaganda e organização; apenas assim será
possível transformar a sociedade radicalmente, deste os seus alicerces.
Notas
[1] "A socialização do trabalho pela produção
capitalista não consiste, em absoluto, em pessoas trabalhando sob um
mesmo teto (isso é apenas uma pequena parte do processo), mas na
concentração do capital sendo acompanhada pela
especialização do trabalho social, por uma
diminuição no número de capitalistas em cada dado ramo da
indústria e um aumento no número de distintos ramos da
indústria em muitos processos produtivos separados sendo fundidos
em um só processo social de produção.
Quando, nos dias de tecelagem artesanal, por exemplo, os próprios
pequenos produtores teciam o fio e o transformavam em tecido, tínhamos
alguns poucos ramos da indústria (a fiação e a tecelagem
eram fundidas).
Mas quando a produção se torna socializada pelo capitalismo, o
número de ramos separados da indústria aumenta: a
fiação de algodão é feita separadamente e assim
também a tecelagem; essa divisão e a concentração
da produção dão origem a novos ramos
construção de máquinas, mineração de
carvão e assim por diante. Em cada ramo da indústria, que agora
se tornou mais especializado, o número de capitalistas diminui
constantemente. Isso significa que o laço social entre os produtores se
torna cada vez mais forte, os produtores estão atados em um único
conjunto.
Os pequenos produtores isolados realizavam várias
operações simultaneamente e, portanto, eram relativamente
independentes uns dos outros: quando, por exemplo, o próprio
artesão semeou o linho, e ele próprio o cozeu e o teceu, ele era
quase independente dos outros. Foi esse (e só esse) regime de produtores
de mercadorias pequenos e dispersos que justificavam o ditado: "Cada um
por si e Deus por todos", isto é, uma anarquia das
flutuações do mercado.
O caso é completamente diferente sob a socialização do
trabalho que foi alcançado devido ao capitalismo. O fabricante que
produz tecidos depende do fabricante do fio de algodão; o segundo
depende do plantador capitalista que cultiva o algodão, do dono das
obras de engenharia, da mina de carvão, e assim por diante. O resultado
é que nenhum capitalista pode se realizar sem os outros. É claro
que o ditado "cada um por si" é completamente
inaplicável a tal regime: aqui cada um trabalha para todos e todos para
cada um (e nenhum espaço é deixado para Deus seja como uma
fantasia super-mundana ou como um mundano "bezerro de ouro").
O caráter do regime muda completamente. Quando, durante o regime de
pequenas empresas isoladas, o trabalho chegou a um impasse em qualquer um
deles, isso afetou apenas alguns membros da sociedade, não causou
qualquer confusão geral e, portanto, não atraiu a
atenção geral e não provocou interferência
pública. Mas quando o trabalho chega a um impasse em uma grande empresa,
que se dedica a um ramo altamente especializado da indústria e,
portanto, trabalha quase para toda a sociedade e, por sua vez, depende de toda
a sociedade (para simplificar, um caso em que a socialização
chegou ao ponto culminante), o trabalho está fadado a parar em todos os
outros empreendimentos da sociedade, porque eles só podem obter os
produtos de que precisam a partir deste empreendimento, eles só podem
dispor de todas as suas próprias mercadorias se as mercadorias deste
estão disponíveis. Todos os processos de produção,
portanto, se fundem em um único processo de produção
social; no entanto, cada ramo é conduzido por um capitalista separado,
depende dele e os produtos sociais são sua propriedade privada.
Não está claro que a forma da produção entra em
contradição irreconciliável com a forma de
apropriação? Não é evidente que esta última
deve adaptar-se à primeira e deve tornar-se social, isto é,
socialista? Mas o inteligente filisteu de reduz a coisa toda para trabalhar sob
o mesmo teto. Poderia algo ser mais equivocado!? (Eu descrevi apenas o processo
material, apenas a mudança nas relações de
produção, sem tocar no aspecto social do processo, o fato de que
os trabalhadores se tornam unidos, atados e organizados, já que isso
é um fenômeno derivado e secundário.)"
[2] Os dados mais recentes que obtivemos, em uma rápida pesquisa, dizem
respeito ao ano de 2012: São Paulo possuía cerca de 5
milhões de proletários com carteira de trabalho assinada, cerca
53,1% da população (vale ressaltar: contra 42% dez anos antes, em
2003). Além disso, 6,5% da população é composta por
empregadas domésticas. Até aqui tratamos de uma camada
assalariada. Independentemente das formas de consciência
hegemônicas em tal ou qual fração dessa camada, em cada
ramo da economia, tratamos aqui de uma imensa maioria proletária. O dado
se complica quando tratamos dos 11% de trabalhadores sem carteira assinada no
setor privado, proletários excluídos da
regulamentação trabalhista fordista e alijados das
organizações sindicais ou seja, sujeitos a toda sorte de
relações de trabalho informais ou mesmo familiares que dificultam
a construção de uma ação política e
consciência classistas. De resto, 15,7% da população
paulistana trabalha por conta própria, seja como camadas mais
estáveis da pequena burguesia, seja como as mais precárias
camadas advindas da massa proletária desempregada (ambulantes,
camelôs, etc); 6,2% são militares ou servidores públicos
estatutários; e apenas 4,5% são empregadores, sejam burgueses ou
pequeno-burgueses.
11/Dezembro/2018
O original encontra-se em
pcb.org.br/portal2/21618/a-concentracao-do-proletariado-nas-grandes-cidades/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|