O enigma Lula
:
Fausto, Maquiavel ou Riobaldo?
O modelo de sociedade e de economia implantado pelo governo de Fernando
Henrique Cardoso faliu. Disseminamos, em larga escala, insegurança e
incerteza na vida do nosso povo, que hoje vê diante de si um futuro
opaco, no qual grandes massas humanas não têm mais lugar. Temos o
maior desemprego da história: um brasileiro ou brasileira em cada grupo
de cinco procura trabalho. A massa salarial, ou seja, a soma dos rendimentos
recebidos pelos trabalhadores, está em queda livre há bem mais de
um ano. O crescimento da economia oscila em torno de zero. A taxa de juros
mantém-se entre as duas ou três maiores do mundo. A dívida
interna líquida atingiu R$ 800 mil milhões, e seu crescimento
está fora de controle. No próximo ano, os pagamentos previstos
aos credores internacionais somam, em média, US$ 1000 milhões por
semana. O Estado nacional tornou-se refém do sistema financeiro. A
desnacionalização da base produtiva atingiu níveis
inéditos, conferindo a agentes externos amplo controle sobre nossas
possibilidades de desenvolvimento e nossa inserção internacional.
As exportações estão diminuindo (o resultado da
balança comercial melhorou graças a uma queda ainda mais
acentuada nas importações, por causa da recessão).
Surpreendentemente, nesse contexto, há pressões
inflacionárias latentes.
A falência do modelo ainda não é completamente
visível para o cidadão comum, na forma de uma crise de tipo
argentino, porque mais uma vez, por decisão política do Estado
norte-americano, o FMI garantiu um aporte de recursos externos, que se soma ao
estoque de dívida já existente. Assim, a bicicleta financeira
poderá girar mais um pouco, garantindo aos credores mais tempo para
retirar-se ordenadamente, sem perdas. Ninguém ignora, no entanto, que
será muito grave a situação brasileira já no
início de 2003. Quando o novo presidente tomar posse, poderá
dispor de reservas cambiais suficientes para garantir apenas um mês de
importações. O acordo com o FMI, que permite a
redução das reservas brasileiras até o nível
irrisório de US$ 5 mil milhões em 31 de dezembro, foi mais um ato
de alta traição.
Seja qual for o desdobramento da crise atual, o desafio colocado para os
próximos anos não diz respeito à viabilidade de manter
esse modelo, que já funciona na UTI (Unidade de Tratamento Intensivo),
com respiração artificial, mas sim ao tipo de
repactuação, interna e externa, que a sociedade brasileira
será forçada a realizar. Quais os seus termos? Quais os agentes
relevantes? Que partes do modelo falido serão sepultadas, que partes
dele sobreviverão? Quem pagará a conta do mais recente ciclo de
endividamento em que fomos lançados? As eleições
presidenciais deste ano definirão o agente, ou conjunto de agentes, aos
quais a sociedade brasileira delegará a condição de
principal articulador dessa repactuação.
Quando um modelo ou regime entram em processo de falência,
múltiplos atores apressam-se a formular propostas alternativas. Muitas
vezes, guiados pelas evidências, pelos interesses da hora ou pelo simples
instinto, convergem em uma mesma direção. Alguns vêm de
fora do pacto dominante, na condição de forças de
oposição; outros vêm de dentro, sob a forma de
dissidências do sistema de poder. Foi assim no fim do regime militar.
Naquela ocasião, excetuando-se um núcleo duro do autoritarismo,
que se tornou claramente anacrônico, do dia para a noite todos viraram
democratas.
Mutatis mutandis
, hoje todos são desenvolvimentistas.
Nesses contextos, os políticos brasileiros seguiram até hoje um
comportamento-padrão: tendem a buscar uma liderança capaz de
unir a oposição já quase vitoriosa, sem no entanto
defenestrar os que ainda detêm o poder. Solução de
compromisso, que ao fim e ao cabo sempre serviu ao conservadorismo. Para
cumprir esse papel, tal liderança não pode identificar-se
claramente com nenhuma das partes em conflito; em vez disso, deve
identificar-se
parcialmente
com todas, ou quase todas. É um caminho que exige complexa e engenhosa
engenharia política. Qualquer semelhança com Tancredo Neves
não é mera coincidência.
Transformar Lula no Tancredo antineoliberal ou seja, em um candidato em
que todos os atores relevantes, da Fiesp ao MST, do Citibank ao PcdoB, possam
reconhecer-se um pouco tem sido a estratégia do núcleo
dirigente do PT, executada com grande coerência. Se cada um desses
atores chegar à conclusão de que não conseguirá
impor o seu próprio projeto, eles tenderão a convergir para esse
candidato de múltiplas faces. Dependendo de como evoluírem as
demais circunstâncias, tal estratégia pode conferir à
candidatura Lula muitos apoios e possibilidades reais de vitória,
principalmente se as forças da situação se dividirem, como
está ocorrendo.
Porém, se voltarmos à comparação com Tancredo,
há dificuldades à vista.
Primeiro: em meados da década de 1980, a necessidade de reconstruir um
regime democrático era praticamente consensual, enquanto a alternativa
ao atual modelo econômico embora falido é bastante
obscura. O grau de consenso, hoje, é muito menor.
Segundo: a engenharia política que garantiu a vitória de
Tancredo foi tremendamente eficaz em eleições indiretas,
praticadas em um colégio eleitoral de cerca de 500 pessoas, enquanto
hoje a decisão passa pela opinião, menos controlável, de
110 milhões de eleitores.
Terceiro: a história mostra, à exaustão, que
alianças assim construídas logo produzem paralisia e
frustrações. O amplo espectro que o PT aglutinou não
resistirá aos primeiros meses de governo. As margens de manobra em
2003, para qualquer presidente, serão estreitíssimas. O
país negociará falido com o FMI o que significa que
será um jogo de soma negativa , e as forças conservadoras
terão presença decisiva no Poder Legislativo e nos governos
estaduais, exercendo poder de veto sobre quaisquer decisões importantes.
A arquitetura institucional brasileira e a configuração
estrutural do nosso capitalismo, no período atual, deixam espaços
exíguos para políticas redistributivas minimamente eficazes,
feitas de cima para baixo. Nesse contexto, o caminho que o PT escolheu para
mudar o Brasil padece de uma contradição intrínseca:
quanto mais intensas são as articulações de bastidores e
mais amplas as alianças, menos autenticidade, clareza e capacidade de
mobilização tem o candidato. Ele depende, cada vez mais, de dois
instrumentos que só as elites podem lhe dar: acesso à
mídia e recursos financeiros, pois são muito caras as campanhas
sem militância espontânea. Para garanti-los e, nesta
eleição, o PT não tem do que reclamar quanto a isso
, Lula tem ido mais longe do que se poderia esperar. Afastou-se dos
movimentos sociais, chegando a classificar de brincadeira a
notável mobilização em torno do plebiscito da Alca.
Silenciou sobre bandeiras históricas da esquerda, assumiu várias
da direita. Evitou temas polêmicos. Abandonou a luta de idéias.
Passou a tratar as grandes questões da sociedade como problemas
administrativos. Adotou radicalmente o
marketing
como forma de comunicação com a sociedade, legitimando a
atividade política como uma variante do mercado, cujo
público-alvo é o indivíduo-consumidor. Além dos
lugares-comuns da retomada do crescimento e da geração de
empregos, tem reafirmado apenas seu compromisso com a reforma agrária
pois sabe que a acumulação do grande capital não
passa mais pelo controle direto da terra e com programas assistenciais.
Fala para o povo no varejo, cede às elites no atacado. Tem propostas
para tudo, menos para o que é essencial.
Assim enquadradas, as eleições têm sido um momento
privilegiado para difundir e legitimar aspectos centrais da ideologia
conservadora. O que era um meio tornou-se um fim em si mesmo. A campanha
atual em nada contribui para difundir o senso crítico do povo em
relação ao sistema dominante e fortalecer sua capacidade
autônoma de mobilização, ou seja, sua vontade de tomar para
si a construção do próprio destino. O resultado imediato
é a reafirmação de um amplo descrédito na atividade
política. Pois, se não há grandes alternativas em jogo,
então não há lugar para engajamentos coletivos movidos a
entusiasmo, sem os quais não se produzem mudanças.
Mesmo assim, é Lula quem ainda preenche o imaginário de boa parte
da esquerda. Continua a despertar esperanças. Sua eventual
vitória trará novo ânimo para muita gente, levantará
demandas latentes. Sua possível ascensão à
Presidência continua a ter forte carga simbólica. Por tudo isso,
é muito difícil dizer qual será seu papel. Lula tornou-se
um enigma, talvez até para si mesmo. Não temos como
decifrá-lo agora. Tudo dependerá das circunstâncias, nas
quais cada um de nós está incluído.
Se ganhar a eleição e honrar as garantias que vem dando aos
poderosos, Lula será Fausto, o personagem de Goethe que vendeu a alma ao
diabo e obteve com isso o que sempre almejara. Se ganhar e conseguir virar o
jogo, mostrando-se fiel aos setores populares que sempre o apoiaram,
terá realizado uma impressionante operação
política, digna de Maquiavel, que poderá mudar a história
do Brasil. Se perder a eleição em um segundo turno com
José Serra, por exemplo por ter sido abandonado pelas elites que
vem tentando cativar com tanta paz e amor, lembrará Riobaldo Tatarana.
Ao entrar para o cangaço, o antológico narrador de
Grande sertão: veredas
também vendeu a alma ao diabo. Comportou-se sempre de acordo com o
pacto. No fim da vida, porém, perplexo e solitário, descobriu
que o diabo não a havia comprado.
Fausto, Maquiavel ou Riobaldo. O futuro dirá qual foi o papel de Lula
na história contemporânea do Brasil.
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Jornalista brasileiro. O original deste artigo encontra-se na revista
Caros amigos
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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